sábado, 13 de fevereiro de 2016

De Linhares a Baixo Guandu

Muitos bichos nas lagoas visivelmente contaminadas. As garças parecem estranhar o ambiente, algo no ar, na água e na terra.

Os oitenta quilômetros de Linhares a Baixo Guandu são melancólicos. Paisagens lindas, ilhas, plantações, café, cacau, banana, coco, criações de cabras, gansos, bovinos, porcos, mas um clima parado, sem ação, parece um suspense vazio, não se sabe o que vai ser e vai-se vivendo. Poucos se perguntam o porquê de tamanho desastre, a dimensão é tão grande que não se vê, muito menos de dentro. Ainda não se assimilou o tamanho, a dimensão, a duração desta morte do rio Doce que, apesar de sujo, destratado, ainda trazia a vida, de muitas formas. São mais de três milhões de habitantes em todo o vale, desde o alto da serra em Minas até Regência, no Espírito Santo.

A Lagoa Nova foi atingida nos primeiros dias, por um canal que a liga ao rio Doce. Esse canal foi fechado como o de Linhares e hoje a Lagoa "limpou, já dá pra tomar banho, brincar, andar de pedalinho. As pessoas vêm, nos finais de semana tá lotando normal, como sempre", disse a moça do restaurante, um tanto incisivamente pra inibir qualquer contestação. Quem sou eu pra contestar...
Aí a "barreira".
Do outro lado, a ponte danificada pela onda tóxica recebe reparos.
Ali a água do canal interrompido, na direção da lagoa.

Um bebedouro de animais freqüentado, a julgar pelas pegadas. Freqüentado e contaminado.

As plantações, muitas, vão precisar de outra fonte de irrigação. Aí são bananeiras. 

Fonte de vida do maior rio do sudeste brasileiro, agora o rio Doce é fonte de morte.

Nos períodos secos, havia praias intermináveis. Agora são veneno forte, tarja preta, mortal.

Imagino a quantidade de passeios familiares, proibidos em definitivo.

Colatina nasceu nessa colina, às margens de um rio limpo, que lhe dava água em abundância, beleza e muitos locais de encontros, diversão, esportes, lazer. Cidade que mais dependia da água, colapsou geral, com as falcatruas político-empresariais, que fizeram faltar até água de beber. Houve tumulto e quebra-quebra, carros pipa foram seqüestrados, virados, vandalizados.

Entramos na cidade, paramos pra abastecer, conversei com o frentista, comé que tá o problema da água? "Agora tá normalizado, voltou a ter água nas torneiras", ele disse. Perguntei se ele bebia dessa água, ele riu, "eu não, não dá pra confiar. Tô tomando água mineral." Eu ri também, "tu não usa filtro de barro, não?" Não usava, planejava começar a buscar água de beber e de cozinhar na roça da irmã, "água boa, do alto da serra, longe do rio Doce".

Mais um afluente contaminado, os rejeitos subiram por aí, estragando tudo em que tocava. Periferia de Colatina, abandonada como toda periferia, relegada a último plano nas ações "oficiais" ou empresariais.

Canoas abandonadas, milhares ao longo do vale, no rio Doce e nos afluentes.

Um pequeno afluente lança sua água na lama dos minérios, faz uma linha onde dilui a concentração. Até se diluir.

Cada canoa abandonada, um trabalhador sem trabalho...


Os animais seguem sua vida. Parecem perplexos e não é pra menos. A cada dia estranham, parece que esperam acordar de um pesadelo incompreensível.

As casas não foram atingidas pelo tsunami químico, mas as vidas foram atingidas em cheio.

Ao longo de todo vale, as cores dos metais pesados. Desde Bento Rodrigues até Regência.

Tudo pode parar, menos os trens cheios de minério que descem o rio Doce pros portos de exportação. A ganância e a cobiça que destruíram a maior bacia hidrográfica da região sudeste continua sua sanha exploradora, dominante que é do aparato público, de governantes, legisladores e juristas.

Composições enormes, puxadas por duas, às vezes três locomotivas.

Não quero falar em punição de culpados, já se fala demais nisso por aí. Nem vou cair na esparrela de repetir idiotices acomodativas como "o ser humano tá destruindo o planeta". Se há necessidade de falar em culpas, comecemos por nós mesmos, que compomos docilmente uma sociedade dominada e comandada por banqueiros e mega-empresários que impuseram um sistema social controlado por esse punhado de parasitas podres de ricos. Queremos o que nos foi induzido e nos comportamos como fomos condicionados. Competitivos, gananciosos, egoístas, louvamos os desenvolvimentos tecnológico e econômico e nem lembramos, como programados que somos, do progresso moral necessário, sem o que vemos imoralidades se naturalizando, perversidades rotineiras, a usurpação dos direitos básicos, humanos, fundamentais e constitucionais da esmagadora maioria da população, justo a parte mais necessária pra fazer tudo funcionar, tudo acontecer, tudo ser feito. O que se deseja é "vencer na vida", encher o rabo de dinheiro, privilégios e facilidades, sente-se superioridade quando se tem o acesso, que é negado à maioria, a uma educação de qualidade, mesmo enquadradora, que prepare presse absurdo "mercado de trabalho", cheio de intermediários, de correntes, de ameaças, de cobranças, de ofensas morais, de desumanidade. 

E qual é a opção, me perguntariam. Não sei. E não sabia o que faria quando, definitivamente, me recusei a seguir pelos caminhos convencionais, aprovados pelas regras "intrinsicadas" na mentalidade convencional. "Não sei pra onde vou, nem o que vai ser, mas não vou por aí. Pra viver assim prefiro não viver." Aos dezenove anos aceitei a morte como alternativa possível, pra não seguir caminhos angustiantes e sem sentido além dos falsos sentidos que se impõem nos caminhos sociais estabelecidos. E aconteceu que não morri. Ainda. Vivi pra aprender a olhar essa estrutura social de fraudes, farsas e desumanidades. Pra colocar o que penso no meu trabalho, as evidências que estão na cara de todo mundo e parece que todo mundo não vê. Bueno, há exceções e é um prazer encontrar por aí.

O vale do rio Doce está morto. Grandiosamente morto, por muito tempo, fala-se em centenas, em mil e quinhentos anos, uma catástrofe apocalíptica que se imporá aos poucos. O destino não tem pressa. E as dores são ensinamentos, quando andamos distraídos. Nesta etapa do caminho humano, há dores coletivas anunciadas e em curso, a serem aproveitadas na limpeza da visão de mundo, dos valores e dos comportamentos.

6 comentários:

  1. Olha, quis escrever um comentário... mas tão me faltando as palavras. Só penso, só sinto. E deixo um elogio para as fotos, que tão demais. Pena que por detrás dessa beleza tem tanta tragédia.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Prioridade é uma palavra extinta na categoria 'vontade humana' pelo predador cego que denomino Demonio padrão em qualquer Ambiente Indiferente Coletivo Ignorante e Inconsciente

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  4. A nossa omissão frente as mãos e pés pesados do poder nos transformam em cúmplices, em coniventes algozes de uma velha, surrada e nodosa estrada. O rio é mais uma das vítimas e por sua vez fez milhões a mais da mesma dor. Sinto um torpor, uma sensação ruim de adormecimento, dessas que envergonham mas se justificam pela falta de energia, de outras mãos para mexer nesse tonel de absurdos. Como você disse, e bem, também escolhi me afastar desse formato sufocante da sociedade e segui por qualquer caminho, menos aquele que me fizesse sentir culpado.

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  5. Quanta saudade de Linhares. Lagoas azuis lindas!

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  6. Quanta saudade de Linhares. Lagoas azuis lindas!

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