segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Retalhos das viagens ao vale.

Área de lazer atingida e morta. Um morador descreveu que nessa passagem rolaram tratores, carros, casas, fogões, máquinas de lavar, telhados, casas inteiras se desfazendo, pontes, cavalos, vacas, capivaras, bichos de todo tipo.
Impressionante é o mínimo que expressa o sentimento. Devastação apocalíptica nos povoados de Mariana, onde as pessoas parecem anestesiadas, sem acreditar no que estão vendo, na destruição plena e contaminada. Parece uma daquelas pancadas que se sente o choque e se sabe que a dor virá em seguida, surgindo com o tempo, do fundo abalado pela porrada. A devastação resultante é como um rastro da morte que passa em massa e arrasta tudo o que encontra pela frente. Na beira dos rios, ribeirinhos pobres se instalaram, desde sempre, em área de ninguém, se arriscando nas enchentes, se prevenindo com lugares mais altos, protegendo suas pequenas importâncias ou perdendo o pouco que têm, pra conseguir tudo de novo aos poucos, numa seqüência de cair e levantar comum aos mais pobres. Pescadores, lavradores, garimpeiros viviam nas beiras dágua, muitos com família, em barracos improvisados, de taipa, estuque, chão batido, telhados de palha, criando seus patos, às vezes porcos, galinhas, lavouras variadas. Estavam tranqüilos, não havia chuva, não havia perigo de enchente, quando ficam todos de orelha em pé no nível do rio. Ninguém os avisou, eles não tinham como se informar. Pelo Gualaxo do Norte, pelo rio do Carmo até o Rio Doce, o volume da lama de rejeitos da mineração subiu as encostas, arrancando árvores, levando casas, pontes, máquinas, carros, tratores, tudo, num estrondo enorme. No meio, essa gente ignorada, invisível na sociedade, que não entrou na conta dos mortos.



“Com os troncos vieram pedaços de gente, orelha, braço, costelas, pés, tudo picado pela madeirama, não deu pra contar. Na frente da troncarada tinha dois corpos inteiros, que a gente tirou e a turma da Samarco levou.” Dono do posto na cidade de Rio Doce.

Em Rio Doce ficou a maior aglomeração de troncos que eu vi na região. Desceram da serra enquanto a inclinação é forte, em Rio Doce o vale já ameniza a inclinação, o peso dos troncos os faz parar.
“Eles tão vendendo essa madeira toda. Tão separando as de qualidade pras madeireiras, as sem qualidade pras carvoarias. Eles não perde nada.” Funcionário terceirizado pela Samarco, num dos canteiros de obras improvisados em Rio Doce, a cidade.

“A gente ouviu falar, telefonaram pra cá avisando que a barragem tinha rompido. Mas são oitenta quilômetros de lá até aqui, era pra lama ter acabado pelo caminho. Ninguém acreditou, ninguém tomou providência, ninguém tava preparado.” Papagaio, ex-garimpeiro e faz tudo na prefeitura de Barra Longa.

Quintais envenenados, hortas atropeladas pelos metais pesados.

“Parecia o rugido de mil bichos, urrando pelo escuro, de madrugada, cobrindo esses terreno tudo, chegando nos quintais, subiu por aqui, foi lá em cima, acabou com tudo que tava plantado, e foi descendo rio abaixo aquele rugido medonho. Aqui tinha de tudo, horta, fruta, cana, feijão, criação, até pros passarinhos a gente plantava, preles vir cantar.” Rômulo, dono da birosca feita em sua casa, onde comemos peixe vindo de outro lugar, trazido pelo Papagaio.

O departamento de márquetim da Samarco é um dos mais exigidos depois do rompimento da barragem. O “janeiro cultural” que a empresa armou pra entreter e ocupar os flagelados pela lama química, além de gerar ótimas imagens com os sorrisos que esperavam nas crianças, não teve muita adesão, ninguém se interessou. Eles preferiam ter suas casas de volta, seu trabalho, suas hortas e criações, suas ocupações cotidianas. Isso a Samarco não pode nem pretende dar.
Mas o departamento de márquetim é persistente. Agora chamam os flagelados, os quase mortos, os que perderam tudo, de “beneficiários”. Incrível. A cara de pau não tem limites.

A ponte que leva ao grupo de casas onde uma é a do cacique krenak Rondon. Foi danificada numa enchente em 2013. Sem água nem acesso, receberam caixas dágua da samarco. A que vi na casa dele estava quase vazia. A água do rio era a água deles, usada pra tudo. "O Watu era nossa vida. Mataram o Watu e mataram nós, o nosso espírito."
“Ninguém avisou a gente, a gente não sabia de nada, quando viu era o rio morrendo e morrendo tudo dentro dele. Minha mãe tinha sonhado na outra noite, contou pra gente e eu não consegui dormir, pensando no sonho dela. A morte tá vindo pelo rio, ela disse. Eu levantei de madrugada, sem sono, fui pra beira do rio. Tava amanhecendo quando eu vi chegar essa lama, aquele monte de peixe morto na frente da onda. Parecia uma coberta, não vinha na água, vinha cobrindo a água, como uma pele, um cobertor, por cima da água.” Rondon, cacique no território krenak.

Do outro lado da área devastada dos krenak, além da morte do rio que dava a vida, os trens não páram, dezenas e dezenas todos os dias, subindo vazios e descendo lotados de minério, o  mesmo cuja extração desmedida gerou a maior destruição ambiental da história das Américas. Ao passar pela terra indígena, os maquinistas apitam, todos. Alguma regra da empresa, com certeza. Parece deboche, uma humilhação a mais ao povo indígena, uma afirmação de vitória dessa civilização monstruosa.
Agora, na área dos krenak, só os cães e os urubus andam entre as pedras do rio Doce. Carniça contaminada.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

De Linhares a Baixo Guandu

Muitos bichos nas lagoas visivelmente contaminadas. As garças parecem estranhar o ambiente, algo no ar, na água e na terra.

Os oitenta quilômetros de Linhares a Baixo Guandu são melancólicos. Paisagens lindas, ilhas, plantações, café, cacau, banana, coco, criações de cabras, gansos, bovinos, porcos, mas um clima parado, sem ação, parece um suspense vazio, não se sabe o que vai ser e vai-se vivendo. Poucos se perguntam o porquê de tamanho desastre, a dimensão é tão grande que não se vê, muito menos de dentro. Ainda não se assimilou o tamanho, a dimensão, a duração desta morte do rio Doce que, apesar de sujo, destratado, ainda trazia a vida, de muitas formas. São mais de três milhões de habitantes em todo o vale, desde o alto da serra em Minas até Regência, no Espírito Santo.

A Lagoa Nova foi atingida nos primeiros dias, por um canal que a liga ao rio Doce. Esse canal foi fechado como o de Linhares e hoje a Lagoa "limpou, já dá pra tomar banho, brincar, andar de pedalinho. As pessoas vêm, nos finais de semana tá lotando normal, como sempre", disse a moça do restaurante, um tanto incisivamente pra inibir qualquer contestação. Quem sou eu pra contestar...
Aí a "barreira".
Do outro lado, a ponte danificada pela onda tóxica recebe reparos.
Ali a água do canal interrompido, na direção da lagoa.

Um bebedouro de animais freqüentado, a julgar pelas pegadas. Freqüentado e contaminado.

As plantações, muitas, vão precisar de outra fonte de irrigação. Aí são bananeiras. 

Fonte de vida do maior rio do sudeste brasileiro, agora o rio Doce é fonte de morte.

Nos períodos secos, havia praias intermináveis. Agora são veneno forte, tarja preta, mortal.

Imagino a quantidade de passeios familiares, proibidos em definitivo.

Colatina nasceu nessa colina, às margens de um rio limpo, que lhe dava água em abundância, beleza e muitos locais de encontros, diversão, esportes, lazer. Cidade que mais dependia da água, colapsou geral, com as falcatruas político-empresariais, que fizeram faltar até água de beber. Houve tumulto e quebra-quebra, carros pipa foram seqüestrados, virados, vandalizados.

Entramos na cidade, paramos pra abastecer, conversei com o frentista, comé que tá o problema da água? "Agora tá normalizado, voltou a ter água nas torneiras", ele disse. Perguntei se ele bebia dessa água, ele riu, "eu não, não dá pra confiar. Tô tomando água mineral." Eu ri também, "tu não usa filtro de barro, não?" Não usava, planejava começar a buscar água de beber e de cozinhar na roça da irmã, "água boa, do alto da serra, longe do rio Doce".

Mais um afluente contaminado, os rejeitos subiram por aí, estragando tudo em que tocava. Periferia de Colatina, abandonada como toda periferia, relegada a último plano nas ações "oficiais" ou empresariais.

Canoas abandonadas, milhares ao longo do vale, no rio Doce e nos afluentes.

Um pequeno afluente lança sua água na lama dos minérios, faz uma linha onde dilui a concentração. Até se diluir.

Cada canoa abandonada, um trabalhador sem trabalho...


Os animais seguem sua vida. Parecem perplexos e não é pra menos. A cada dia estranham, parece que esperam acordar de um pesadelo incompreensível.

As casas não foram atingidas pelo tsunami químico, mas as vidas foram atingidas em cheio.

Ao longo de todo vale, as cores dos metais pesados. Desde Bento Rodrigues até Regência.

Tudo pode parar, menos os trens cheios de minério que descem o rio Doce pros portos de exportação. A ganância e a cobiça que destruíram a maior bacia hidrográfica da região sudeste continua sua sanha exploradora, dominante que é do aparato público, de governantes, legisladores e juristas.

Composições enormes, puxadas por duas, às vezes três locomotivas.

Não quero falar em punição de culpados, já se fala demais nisso por aí. Nem vou cair na esparrela de repetir idiotices acomodativas como "o ser humano tá destruindo o planeta". Se há necessidade de falar em culpas, comecemos por nós mesmos, que compomos docilmente uma sociedade dominada e comandada por banqueiros e mega-empresários que impuseram um sistema social controlado por esse punhado de parasitas podres de ricos. Queremos o que nos foi induzido e nos comportamos como fomos condicionados. Competitivos, gananciosos, egoístas, louvamos os desenvolvimentos tecnológico e econômico e nem lembramos, como programados que somos, do progresso moral necessário, sem o que vemos imoralidades se naturalizando, perversidades rotineiras, a usurpação dos direitos básicos, humanos, fundamentais e constitucionais da esmagadora maioria da população, justo a parte mais necessária pra fazer tudo funcionar, tudo acontecer, tudo ser feito. O que se deseja é "vencer na vida", encher o rabo de dinheiro, privilégios e facilidades, sente-se superioridade quando se tem o acesso, que é negado à maioria, a uma educação de qualidade, mesmo enquadradora, que prepare presse absurdo "mercado de trabalho", cheio de intermediários, de correntes, de ameaças, de cobranças, de ofensas morais, de desumanidade. 

E qual é a opção, me perguntariam. Não sei. E não sabia o que faria quando, definitivamente, me recusei a seguir pelos caminhos convencionais, aprovados pelas regras "intrinsicadas" na mentalidade convencional. "Não sei pra onde vou, nem o que vai ser, mas não vou por aí. Pra viver assim prefiro não viver." Aos dezenove anos aceitei a morte como alternativa possível, pra não seguir caminhos angustiantes e sem sentido além dos falsos sentidos que se impõem nos caminhos sociais estabelecidos. E aconteceu que não morri. Ainda. Vivi pra aprender a olhar essa estrutura social de fraudes, farsas e desumanidades. Pra colocar o que penso no meu trabalho, as evidências que estão na cara de todo mundo e parece que todo mundo não vê. Bueno, há exceções e é um prazer encontrar por aí.

O vale do rio Doce está morto. Grandiosamente morto, por muito tempo, fala-se em centenas, em mil e quinhentos anos, uma catástrofe apocalíptica que se imporá aos poucos. O destino não tem pressa. E as dores são ensinamentos, quando andamos distraídos. Nesta etapa do caminho humano, há dores coletivas anunciadas e em curso, a serem aproveitadas na limpeza da visão de mundo, dos valores e dos comportamentos.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

De Carapebus a Regência

















No terraço da casa de Patrícia e Adilson, se vê o mar e a nuance.


As praias cheias, ainda que a cor da água lembre a lama diluída


















Era o final da manhã quando começamos a subir o litoral norte do Espírito Santo. Há trinta anos atrás eu andei por estas praias, época de angústias e dúvidas, de opções e decisões definitivas a respeito da vida e dos seus caminhos. Se reclamava do minério do porto de Tubarão, no ar e na água do mar. No rumo norte, eram longe os povoados, muito mato e espaço até Barra do Riacho. O minério continua no ar, a fuligem preta toma Carapebus. Do terraço da casa que nos abrigou, ao norte da siderúrgica de Tubarão e de Vitória, vimos o mar com leve nuance barrenta, com uma faixa mais densa lá no fundo, a alguns quilômetros da praia. Será a lama da Samarco, imagino, pelas notícias já chega na praia da Costa, em Vila Velha, início do litoral sul. Agora, além do eterno minério, há os resíduos da extração deste minério, metais pesados, cancerígenos, diluídos na água em quantidades impensáveis, desde mil quilômetros, do alto das Minas Gerais e sendo vomitado pela boca do rio Doce, direto no mar antes claro.


Um vago aviso, ignorado pela maioria.


Saímos de Carapebus, pegamos a via litorânea. Não havia mais espaço aberto, tudo construído, o trânsito congestionado. As praias se seguiram, dia de sol quente, cheias de gente, uma atrás da outra, Manguinhos, Jacaraípe, Nova Almeida, ninguém parece dar importância à lama da mineração, ao colapso do rio Doce e seus resíduos sendo despejado no mar, às toneladas, infestando norte e sul da foz, abrindo um leque avermelhado oceano adentro e ao longo dos litorais. Numa sociedade humana que merecesse este nome, o poder público estaria esclarecendo sobre os perigos mortais do contato com esses resíduos, indicando nas praias a contaminação gravíssima, contaminação que leva a gravíssimos problemas de saúde, desde doenças neurológicas até variados cânceres. Mas o poder empresarial fala mais alto que a consciência das chamadas autoridades e dos funcionários qualificados pra mentir sobre a realidade.


Nova Almeida, cada vez mais ao norte, a mesma indiferença.


Perto de Barra do Riacho, em território guarani, encontramos umas barracas com artesanatos indígenas de vários tipos, paramos pra assuntar. Das duas uma: ou aquelas pessoas temem responder perguntas ou não sabiam de nada, nem sobre o bloqueio de ferrovia e rodovias – “aquilo foram os tupiniquins, não nós” -, nem sobre a lama tóxica, nem sobre os motivos que levaram os tupiniquins àquela atitude. Os tupiniquins estavam em Comboios, em sua terra, distante ainda. Seguimos.

Vários congestionamentos pelo caminho, tudo parecia estar normal em seu movimento de verão. Não pude evitar um sentimento de nojo pelas administrações públicas em suas sucessivas omissões – em sua cumplicidade irrestrita com o poder econômico e em prejuízo permanente da população. Ali estavam milhares e milhares de pessoas sem a menor noção do perigo. Um vendedor de picolé me esclareceu que a lama estava passando a 25 quilômetros mar adentro, tinha passado longe dali e chegado em Vitória e na Praia da Costa, em Vila Velha. Ele viu na televisão, não tinha perigo...
Entramos no território tupiniquim de Comboios, já vínhamos em estradas de terra desde Vila do Riacho, deixamos o caminho pra Regência ao passar no marco da terra indígena. Estrada precária, cheia de costelas, íamos devagar quando fomos ultrapassados por um carro pequeno, com cinco jovens indígenas dentro. Buzinaram em saudação, respondi da mesma forma e eles seguiram na frente até sumir de vista. Poucos quilômetros depois, chegamos ao fim da linha. Era um grupo de casas na beira de um rio, todas fechadas, ninguém à vista, e a estrada fazia a volta. Paramos pra pensar e o carro deles apareceu atrás de nós. Estiveram nos observando. Fizemos a volta e paramos do lado deles, pra conversar. Expressão desconfiada, disseram que o cacique tinha viajado e só voltava quarta-feira. Perguntei se era o cacique que tinha virado pastor evangélico, eles falaram entre si e responderam que aquilo fora no ano passado e que o pastor não era mais cacique, tinha outro no lugar. Senti a resistência cultural, cacique convertido, cacique destituído. O campo pra conversa era bem pequeno, a desconfiança vibrava no ar. Imaginei o estrago que aquela conversão fez na comunidade, o cacique pastor deve ter arrebanhado muitas ovelhas antes de ser substituído. Agradeci e fomos embora, destino Regência, só estrada de terra.


Foz do rio Piraqueaçu, que passa nas terras indígenas.


A uns dez quilômetros de Regência eu vi, à esquerda da estrada, um agrupamento de casas e várias bandeiras vermelhas do MST. Olhei melhor e vi as lonas pretas – um acampamento. Paramos. Entramos em contato com os primeiros moradores, próximos ao portão. Expliquei nossa viagem e propósito, eles ofereceram café. Na conversa soubemos do canal aberto pra levar água do rio Doce pra uso industrial da Aracruz Celulose, através da Fíbria, que prepara celulose pra Aracruz, desfaz o eucalipto em massa. Nós havíamos passado em frente, uma indústria grande, imponente, soltando fumaça pelas chaminés modernosas. Nos campos em frente, do outro lado da estrada, o cheiro é forte e dá mal estar, dor de cabeça, trava na garganta. Vimos espaços como grandes pastos, mas cobertos de um material entre branco e cinza, onde o vento levanta uma espuma incompreensível, pois parece areia suja, sólida. Agora os caras nos mostravam o canal, a um quilômetro do acampamento. Construído pela Aracruz pra levar água do rio Doce até a indústria da celulose, azarou a pesca no baixo rio Doce até a foz e produziu peixe farto. Isso trouxe um monte de famílias pobres de pescadores pra viver junto ao canal, ganhando a vida. E assim viviam, apesar das águas já contaminadas mas não mortais ainda e cheias de peixes. Até chegarem os rejeitos da mineração, a lama vermelha da Samarco. Não havia uma barreira na entrada, o rio Doce escorria pra dentro sem obstáculo. O canal é uma linha reta até onde se pode ver, de uns quinze metros de largura por um e meio de profundidade, água translúcida que deixava aparecer marcas avermelhadas na cor da lama. Nos dias em que os rejeitos da mineração chegaram, com seu aspecto grosso e avermelhado, os peixes passavam desesperados, fugindo, entrando pelos pequenos canaletes e afluentes do canal, aos enxames, “dava pra pegar com a mão, aos punhados”, como disseram os moradores do acampamento. E morreram todos os peixes, pois todos os afluentes foram penetrados pela morte da mineração. Durou pouco a vermelhidão do canal, as máquinas da indústria seriam danificadas com os detritos metálicos, em pouco tempo a água clareou, ainda que deixando sua impregnação vermelha de resíduos sólidos no fundo, nas folhas, nos troncos submersos. Então é possível filtrar de algum modo os rejeitos da mineração, desde que haja interesse empresarial, no caso, da Aracruz em manter suas máquinas. Por que não usam o mesmo sistema no rio Doce, ainda que adaptado pro volume muito maior? Certamente pelos custos da operação. Existe como, mas não há interesse e não se divulga. A água ali, embora turva, está translúcida, num enorme contraste com a do rio Doce, que nem água parece. Bueno, não é.


A ponte sobre o canal e a turma do acampamento.
A folha boiava, verde por cima, lama tóxica por baixo.



Uma draga limpa constantemente o canal.

O tronco submerso em água transparente mantém o vermelho.


Entre os moradores, se apresentou um casal, ele claramente indígena, ela branca, de cabelo comprido, sem brincos, no estilo evangélico. Era primo do cacique destituído, aparentemente convertido também. Disse que o cacique estava na região, perguntei se era o pastor e ele disse que sim. Concordou com relutância sobre a substituição do primo e, perguntado, afirmou ter se “esquecido” o nome do novo cacique. Falsidade no ar, fomos embora.
O dia já se despedia quando nos aproximávamos de Regência. Passamos pela base de operações da Tamar, seguimos adiante, paramos ao por do sol. Faltavam poucos quilômetros pro povoado, estacionamos solitários ao lado da estrada e caminhamos meio quilômetro pra chegar no mar. Olhei as marcas da maré cheia, revi as cores que vi em Mariana, em Bento Rodrigues, Camargos, Paracatu de baixo. Estavam ali, em cima da areia da praia. O mar, avermelhado, mas diluído perto da densidade do rio Doce. Claro, estavam misturados rio e mar. Não havia ninguém, a praia vazia, alguns aglomerados de madeiras atirados pelas ondas na areia, talvez também vindas, talvez, lá do alto da serra, de Mariana. O mar cheio de ondas, espalhando aquela espuma com tonalidades do tóxico letal, deu uma sensação de fim de mundo próximo... de um mundo, pro nascimento de outro.


Em Regência, todo mundo investiu no verão, como sempre, temporada de salvação das dívidas, de acumulação pro ano inteiro. Ninguém contava com a morte que viria pelas águas do rio Doce.


A lama veio e foi limpa. Interesses empresariais. Ou limpa a água ou páram as máquinas. "Milagrosamente", as águas foram limpas. Mas não as do rio Doce.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Indo pro litoral norte, depois de expor em Vitória.

A exposição em pleno curso, no oásis Gruta da Onça, centro de Vitória.
Fotos - Maria Clara

Saímos ontem de Vitória, onde fomos bem recebidos num oásis do centro da cidade, o parque Gruta da Onça, casa de Filipe e Patrick, um foco de produção cultural independente e anárquico - até onde vi, sem teorias extemporâneas. Os dois dias de exposição garantiram uma autonomia de viagem de alguns dias. A quantidade de pessoas com olhar brilhante que conheci foi bem grande. A hospitalidade e a cordialidade deram o tom do contato. Gente que pensa por si - ou se dedica a esse trampo - é sempre rara e agradável de encontrar.

             




Juliana, Patrick, Filipe, Eduardo e Clara, na foto da despedida.


Agora seguimos o litoral norte do Espírito Santo, sabendo que esse mar já contém os metais pesados dos resíduos de mineração que saem pela foz do rio Doce, às toneladas, desde novembro, todos os dias e noites, sem parar. A cor da água nas praias não é vermelha, mas se percebe nuances cor de terra diluída, em várias áreas. Há notícias da passagem por Vitória das primeiras diluições desses metais cancerígenos, anunciando o que vem atrás, se alastrando em todas as direções, levado pelas correntes, pelos ventos, em área cada vez maior. O assunto não se fala, as praias estão cheias. No que depender do poder público ou da samarco ou da vale e, claro, da mídia, o silêncio vai prevalecer. Quem quer se informar sobre o assunto tem que buscar outras fontes. E elas não faltam.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.