Aos dezenove anos eu pensava que não viveria além dos trinta anos - "não chego nos trinta". Pela vida que eu vivia, tinha a convicção de que "minha hora" a qualquer momento "chegaria". Vi "chegar a hora" de várias pessoas e muitos bichos, vi mortes de muitos tipos, às vezes com a sensação de que não tinha sido minha vez a cada vez que escapava - às vezes "milagrosamente". Depois vieram os filhos e, da primeira vez que bala zumbiu na minha orelha em tempos de paternidade, o sentimento de gravidade foi grande, pela primeira vez. E os riscos, então, passaram a incomodar e serem evitados. A prudência ocupou o lugar da temeridade. Ainda que se possa por essa "prudência" entre aspas. Era só a negação do exagero, dos riscos desnecessários.
E a vida foi passando, crianças crescendo, décadas que se viveram, trinta, quarenta, cinquenta... pelo meio dessa década reparei que tinha vivido já muito mais do que imaginava, nos princípios. Num momento de tristeza, brinquei comigo, que que eu ainda tô fazendo por aqui, filhos criados, ninguém dependendo mais de mim pra viver, já tinha produzido tanta coisa, espalhado pelo mundo, já tava me repetindo demais, tudo já gravado por aí em vídeo, no iutube, nas redes, dito, redito e repetido até demais, não precisa mais d'eu por aqui, não. Minha condenação, pelo jeito, é bem maior do que eu imaginava. Devo ter cometido algum crime hediondo noutra passagem.
A vida como uma condenação, uma sentença, um castigo - uma brincadeira antiga, que transforma a morte num alívio, como contraponto à tragédia que se vê. A morte não é mais que a porta de saída, tudo o que nasce tem como destino a morte, tudo o que entra na matéria vai sair um dia, de volta à sua dimensão original. De volta à dimensão espiritual da sua sintonia, sua freqüência vibracional, seu nível espiritual. "Isso não é filosofia, é física", dizia Einstein, o gênio da física. "Sintonize a sua freqüência e esta é a realidade que você terá. Não tem como ser diferente."
Morte não é o contrário de vida, mas de nascimento. Porta de saída é oposto a porta de entrada. Vida é o espaço e tempo que temos pra passar de uma porta à outra. Se mantenho isso na cabeça, os falsos valores implantados pela sociedade em sua farsa se tornam cada vez mais evidentes. É uma passagem. Uma passagem rápida, vamos vendo à medida em que vai passando. Formando uma visão bem diferente da que é mostrada, percebendo necessidades outras, além da publicidade, das pressões do consumo como valor. A satisfação consigo mesmo, com as próprias atividades, a troca de afeto, a criação de laços afetivos, de solidariedade, a cooperatividade, o bem estar da alma, interno, a busca de harmonia coletiva e individual.
O conforto interno aparece mais importante que o externo, por passageiro que é. Estar bem consigo mesmo, com seus sentimentos e sua consciência, é fundamental, nessa visão da vida, por ser o que prevalece no bem estar verdadeiro. O bem estar material, o excesso apregoado pelo massacre cultural publicitário, midiático, ideológico, é uma ilusão angustiante, isolante, falsificada e falsificadora da realidade - muito além das formas e aparências. O excesso, o luxo, a riqueza exigem o sacrifício da alma, da consciência, da sensibilidade, do senso de justiça. Exigem conivência e cumplicidade, indiferença com o sofrimento de multidões e perversidade no proveito dos crimes sociais que criam mão de obra barata, roubando direitos constitucionais. Numa sociedade em desequilíbrio, qualquer privilégio é uma grande responsabilidade diante da sabotagem dos direitos de tantos.
A "consideração social" custa muito caro em espiritualidade. Percebi que pra manter essa consideração - nasci num meio socialmente bem considerado - teria que sacrificar meus sentimentos e minha consciência. Não aceitei, decidi outra coisa, diferente do esperado, do convencional. Escolhi a alma, o bem estar, o conforto interno. O resto foi como que automático, a desconsideração começou na própria família de origem e se estendeu por toda a sociedade. Tudo começou a me tratar pior. Menos os que, naquele momento, me pareciam os melhores e mais interessantes, justamente os perseguidos, os párias, a ralé, os de vida rica em acontecimentos, dificuldades e histórias. Perdi o respeito e a consideração pela sociedade, pelo seu modelo estrutural, onde os interesses econômicos valem mais que o ser humano, mais que a vida, onde se vale o que se tem. E, por conseqüência, perdi também qualquer necessidade de consideração da sociedade, com seus valores furados, superficiais, vazios, impostos pela própria sociedade, com a mídia, o modelo de educação empresarista, a cultura do consumo, utilizando em larga escala psicologia do inconsciente pra enquadrar mentes e corações, formar mentalidades e visão distorcida da realidade. Toda aquela consideração era falsa, condicional à cumplicidade com os crimes sociais. E a desconsideração é sinceridade. Melhor um pé na bunda sincero que um sorriso falso. Na minha opinião, claro, há quem prefira o contrário.
Na sociedade do patrimônio, dos interesses econômicos, da ânsia por bens, luxos e privilégios duvidosos, o bem mais importante e, ao mesmo tempo, mais esquecido, mais sacrificado, é o bem estar consigo mesmo, com a própria consciência, com o próprio sentimento em estar vivo nessa bagaça.