Salvador, 1984. Eu tinha 23 ou 24 anos, duas filhas, Brisa e
Adhara, e morava na Aldeia de Arembepe. Estava mangueando em Itapuã, bares
lotados, quiosques de praia abarrotados, sol forte, praias cheias. Eu ia de
mesa em mesa, quer dar uma olhadinha?, alô, alguém quer ver?, licença, dá uma
olhada aí... Na maior parte, ignoram, recusam, negam, alguns ainda contemporizam,
muito bonito, mas fica pra outra hora, eu pensava a hora é agora, ou não é, e
seguia, mesa em mesa, grupo a grupo, às vezes alguém parava pra olhar, eu
esperava, de longe em longe uma venda. Eu entrava nos bares que não expulsavam,
já conhecia da prática cotidiana, chegava nas mesas cheias, ia primeiro na
pessoa mais velha, ou na que parecia estar no comando, pagando, quando percebia
essa “hierarquia”, por uma questão de ética própria – ou defesa.
Cheguei numa mesa que eram quatro mesas juntas, umas doze
pessoas. Mostrei pra um dos caras, ele me dispensou com um gesto de
impaciência, no meio do papo dele, sem nem me olhar. Eu fui mostrando pras
outras pessoas, circundando a mesa, até que duas meninas me pararam. Uma
encontrou seu nome escrito num brochinho de arame, perguntou quanto era,
comprou. A outra reclamou, mas não tem o meu nome. Sem problema, eu respondi,
posso fazer agora. Ela quis. O cara aquele, então, vendo que eu me preparava
pra fazer um trampo, não gostou de me ver sorrindo com as meninas e começou a
me atacar. Isso não é trabalho. Cês são um bando de vagabundo, tinha mais é que
arrumar um emprego. Eu não dizia nada, só percebia a revolta dele por eu ter
parado pra servir duas meninas bonitas que estavam na mesa dele. E continuou no
mesmo tom, enquanto eu torcia o arame pra confeccionar o broche, calado. As
pessoas na mesa foram silenciando, espantadas e constrangidas com o que ele
tava falando. Eu respondi uma e outra vez, vagabundo? e mostrava a mão cheia de
calos, ele não se dava por vencido, isso não quer dizer nada, e eu desisti de
falar, continuei fazendo o trabalho calado, ele me esculachando. Não era
novidade pra mim, eu só queria terminar, pegar meu dinheiro e seguir adiante,
sabia ser inútil responder, que o confronto ali só me marcaria pro dono do bar
não me deixar mais entrar pra vender. Sabia que frustrados covardes se
aproveitavam da minha “inferioridade” social pra descarregar suas frustrações,
consegui ficar calado até terminar. Quando finalmente entreguei o brochinho pra
menina e recebi minha grana, percebi que não só aquele pessoal da mesa estava
em silêncio, como outras mesas em volta haviam se calado, espantadas com tanta
agressão e ofensa, na expectativa da minha reação. Enquanto enfiava o dinheiro
no bolso, olhei pro sujeito bem nos olhos. Ele me encarava agressivo, como quem
espera o confronto. Eu pensei não pode ficar assim, mas sem querer conflito. Com
a grana no bolso, alicate e arame na bolsa, aproveitei que a mesa estava entre
ele e eu e perguntei, calmo e em bom som, meu irmão, cê quer briga? A tensão no
ar ficou densa, ele se levantou, olho arregalado, e gritou – por quê!? Eu
respondi sem alterar a voz, porque eu saí de casa pra trabalhar, tenho duas
crianças pequenas me esperando chegar com o sustento, não tenho tempo nem
disposição pra ficar trocando sopapo com ninguém. O espanto era geral, ainda em
silêncio. Eu continuei pra arrematar, mas pode ficar tranqüilo que tá cheio de
gente que adora brigar, cê vai encontrar fácil alguém que se disponha, eu é que
não posso, vai desculpando, preciso trabalhar, tá? Dá licença. E, ato contínuo,
ofereci na mesa ao lado, quer dar uma olhadinha? As pessoas estavam ainda
espantadas e balançavam a cabeça negativamente, sem dizer nada. Fui de mesa em
mesa, oferecendo, em volta da mesa grande onde havia vendido, sem olhar pro
cara mais nenhuma vez, pra ele não se sentir provocado, mas sem tirar do meu
arco de visão periférica, pra não ser pego de surpresa por um ataque repentino.
Que não veio. Na útima mesa do entorno daquela, um cara sozinho, que havia
presenciado a cena toda, topou como um desafio ao dizer quero, eu quero ver o
que você tem aí. Parei, ele olhou e parou nos brochinhos de placa, onde eu
fazia as primeiras frases, pensamentos, propostas, desenhos, tudo gravado em
relevo, na época com ácido nítrico, fez comentários, eu respondi, o papo ficou
interessante, ele ofereceu cerveja, eu aceitei, sentei e fiquei um tempinho
conversando enquanto ele escolheu uns quatro broches com pensamentos. Na hora
de pagar pra eu ir embora, percebi que aquela mesa cheia havia esvaziado, a
conta fora paga e eles tinham ido embora. Alívio. Segue a lida.
Belo Horizonte, 1990. Área da Savassi, noite, mangueio de
fim de semana. Mesa cheia de novo, de novo a repulsa explícita de um
convencional. Desta vez, ele se recusou a acreditar que era tudo feito à mão.
Fui perguntado e conversava, explicando como usava o percloreto de ferro pra
corroer, como isolava com tinta asfáltica as partes que ficariam em relevo,
como fazia os fechos com o alicate e soldava atrás, o cara com um dos
brochinhos na mão, balançava a cabeça, tu não faz isso à mão não. Eu dizia que
ele podia não acreditar, era direito dele, mas eu sabia que fazia. Ele
retrucava que eu comprava em São Paulo. Eu ria, sentia as pessoas acreditando
em mim, apesar dele – quando a gente fala a verdade, parece que as pessoas
honestas podem sentir -, até que ele apelou. Disse que tinha chegado de Sampa
no dia anterior e que estivera na loja onde eu comprava. Pedi pra ele olhar bem
as peças, pra não se confundir, ele confirmou a mentira, são esses mesmos, eu
vi, igualzinho, numa loja lá da 25 de março. Eu parei, percebendo que ele tava
mentindo descaradamente, tentando me desmoralizar ou me fazer assumir que
comprava. Olhei bem pra ele, vi que não acreditava mesmo ser possível eu ter
feito aquele trabalho à mão. As pessoas da mesa pararam de falar pra ver minha
reação. Era uma clara afronta, um desafio. Mas, por outro lado, no fundo era um
elogio. E respondi, cara... vou tomar como um elogio. Todo mundo se olhou, sem
entender, eu expliquei. Tu ta achando meu trabalho tão bom que é impossível que
eu tenha feito à mão, né isso? Os olhos do cara ficaram confusos, alguns
sorriram, eu arrematei antes de ir embora, valeu, 'brigado. Também acho meu trabalho muito bom. Nem precisa acreditar. E fui embora em paz. Tinha vendido dois
broches naquela mesa.