Hoje está sendo a Vila Autódromo. Têm sido tantas que nem posso lembrar os nomes. Em todas as cidades onde andei, em todos os tempos que vivi, a história é essa. O poder público, a mando dos poderosos da sociedade, os podres de ricos, ataca, espanca, mata, reprime, prende, rouba e expulsa, sem nenhum resquício de vergonha, dignidade ou respeito, os mais fragilizados, explorados, sabotados e excluídos da sociedade.
Como se consegue fazer os policiais esquecerem que fazem parte do povo e sofrem parecidos problemas, com as mesmas causas? Vivem as mesmas dificuldades e esquecem disso quando cumprem a ordem de atacar. E atacam com fúria, ódio no olhar, ânsia destrutiva, sem perceber que atacam pessoas, destróem moradias, atiram famílias nas ruas, espancam pais, mães, crianças, velhos, aleijados, matam cachorros, matam pessoas. O que é feito com a humanidade desses homens? Que tipo de instruções, de tratamentos, de interferência psicológica recebem essas pessoas, para serem capazes de atos que envergonhariam o mais brutal dos seres? Que monstruoso alcance de estudos avançados de psicologia do inconsciente será preciso pra criar tamanhos ódio, fúria e compulsão destrutiva, por vezes assassina? Onde está, na verdade, a verdadeira responsabilidade nessa zorra toda?
A quem interessa uma polícia, uma segurança pública destacada da sociedade, capaz de atacar indiscriminadamente qualquer coisa, qualquer coletividade, qualquer cidadão, sem questionar, sem sentir nada além de raiva e obstinação no cumprimento de ordens, desumanizado por completo da parte mais valiosa do ser, sua sensibilidade, sua capacidade de solidarizar-se com o sofrimento alheio? A quem tem servido o aparato público de segurança? É estimulada a violência sem consciência e sem critério, além da tirania e da intenção de destruir qualquer organização dos explorados, qualquer oposição a esse modelo de sociedade que cria seus próprios monstros, dos dois lados do espectro social, o institucional que se apresenta "do bem", mas que age barbaramente, e o dos inconformados da sorte, que se deformam sob as pressões dos valores e dos comportamentos impostos. E as forças de segurança são apartadas da sociedade. Estão construindo uma "cidade da polícia" em algum lugar da zona norte ou oeste do Rio, não sei bem, onde só morarão policiais e suas famílias, formando um gueto. Uma sociedade à parte da sociedade, um enclave de profissionais de controle de massas, que não podem se sentir parte da turba, do populacho, da massa que precisa ser controlada, amorfa e acéfala como a estrutura é montada pra produzir, angustiados seres sem alma a serviço e sob controle do sistema.
A PM do Espírito Santo adquiriu recentemente um tipo de caveirão (blindado originalmente projetado pra entrar nas áreas pobres -"de conflito"- protegido e atirando para todos os lados) equipado com lança-águas com potência pra 100 metros, em várias direções. Água com pimenta. Se fosse um programa de humor, eu perguntaria que tipo de bandido a polícia pretende pegar com esse equipamento. Polícias de vários outros estados devem ter invejado a polícia capixaba, querendo o mesmo veículo. Já perceberam seu papel de inimigos de qualquer tipo de organização popular de inconformação, de protesto, de reivindicação, de proteção dos seus direitos. Povo, só disperso. Circulando, circulando! Estão convencidos do seu papel de dispersão de massas, de criminalização das lideranças, dos representantes. Tanto que, mesmo depois de serem forçados pela situação de penúria a reivindicarem, por sua vez, direito à remuneração digna, violando um princípio sagrado do militarismo, a hierarquia, muitas vezes em grandes conflitos internos, mesmo assim não se conscientizam e voltam a reprimir outras manifestações.
Que tipo de trabalho psicológico pode evitar que percebam o uso que lhes é dado no contexto da sociedade, o de defensores da propriedade privada e dos interesses dos podres de ricos? Estes tomaram pra si o controle do governo, das assembléias legislativas, do judiciário e suas leis, destruindo o ensino e a saúde públicas e colocando o aparato público a seu serviço, com o apoio da mídia. Em Pinheirinho, mesmo, houve alguns policiais que se recusaram, alguns em lágrimas. Me disseram que houve quem dissesse que não havia entrado na polícia pra fazer aquilo. Devem ter sido acusados de insubordinação e penalizados pelas leis militares, acusados de covardia e incompetência pelos colegas, humilhados pela instituição por terem mantido alguma parcela de humanidade. Isso não é permitido. Há que se estudar, descobrir as causas da falha e corrigir, algo na instrução ou nesses indivíduos.
Como é que não se questiona a instrução, a formação ideológica e as finalidades reais destas instituições? Acho que sei porque. É porque não pode. E não é difícil intuir as razões, basta olhar em volta e ler o que está escrito na realidade à nossa volta. Tudo o que serve aos interesses empresariais funciona bem; tudo o que serve ao povo em geral, funciona mal. E os mais pobres, os que fazem os serviços que ninguém quer mas, se não forem feitos, será o caos, os que pegam no pesado e sustentam a sociedade são os mais maltratados. É conhecida a brutal diferença de comportamento das polícias nas áreas ricas e nas vastidões das áreas pobres. É conhecido o genocídio que acontece na chamada "guerra ao tráfico", mentira que ofende a inteligência, de "ao tráfico" aí, não tem nada. O terrorismo de Estado é o elemento constante nas áreas periféricas, as mais populosas e mais pobres, além da constante ausência em outras áreas como educação, saúde, cultura, saneamento e tudo o mais. Não interessa a cidadania por aí, a gente poderia se dar conta e reivindicar os direitos constitucionais. Imagina, ter que dar garantias de alimentação, educação de nível, moradia, tudo com o dinheiro público que os grandes empresários estão acostumados a dispor, em benefícios, parcerias e contratos gigantescos para obras gigantescas, onde correm rios de dinheiro por fora e por dentro. Nas relações com os poderes públicos, com os ditos "representantes" da população, financiam suas campanhas e enchem seus bolsos para pagar os serviços e facilitações. Tudo regado a champanhe, nas festas de elite e na promiscuidade bilionária com o dinheiro de uma população atirada à barbárie, roubada em direitos básicos constitucionais e explorada, em troca de uma vida angustiada e sem sentido, que passa sem que se perceba e acaba como se não tivesse existido. Uma estrutura política e social perversa. Para manter e defender essa estrutura é que se trabalha no espírito das forças de segurança, é que se formata todo o sistema de segurança. Na contenção de massa - parece que se sabe o que se provoca e se espera reação popular a qualquer momento. Pra isso se preparam há muitas décadas, mais de um século sem dúvida, no controle das instituições, pouco a pouco, e agora a contenção de massa, que as instituições já estão na mão.
Há muitos Pinheirinhos, há muito tempo, em muitos lugares onde acontece de existir pobres e interesse(s) de rico(s) ao mesmo tempo. O modelo de sociedade que alimentamos com nossos comportamentos, nossos valores, nossos objetivos, nossas reações, nossas mentalidades, é um modelo perverso, centrado no egoísmo extremo, na ambição, na competição permanente, na exploração, na pobreza e na miséria de muitos. O êxodo rural não é uma figura de retórica, é uma tragédia da história nacional que durou muitas décadas. Hoje há muitos êxodos diferentes, não é mais só um tipo. O mundo está cheio de campos de refugiados e populações deslocadas em guerras movidas por interesses econômicos de grandes empresas. Cheio de sem teto e sem terra, cheio de acampamentos e ocupações. Cheio de desempregados, de pobres e miseráveis abandonados pela sociedade. É a guerra dos pouquíssimos mega-empresários nacionais e internacionais (banqueiros e industriais, sempre mega) contra os povos de todo o planeta, onde quer que haja algum interesse, alguma riqueza, algum espólio a ser conquistado. Usando o aparato público, num cenário de política internacional construído e sistematicamente retocado pelas mídias, forjando relações entre países e negócios para as grandes empresas, a diplomacia das chantagens e ameaças e os acordos internacionais realizam os interesses das empresas. A qualquer custo.
A guerra das empresas contra os povos. Hoje o inimigo se planta na sua sala com o mais lindo dos sorrisos, dizendo que ama você e toda sua família, que a razão da existência dele é a sua felicidade, afaga e conta piadas, enquanto narcotiza, rouba seus direitos e sua consciência, distorce a realidade e esvazia a vida. Molda valores e comportamentos, cria desejos e objetivos, planta ilusões e aproveita pra extorquir o quanto possa, de todas as maneiras. A mídia é o porta-voz, o formador de opinião do sistema, da estrutura social que se baseia na miséria pra concentrar riqueza pra poucos, luxo e miséria como natural e inevitável, merecimento e castigo, nada intencional, nada resolvido, nada planejado - é sempre um deboche com a inteligência média.
A coisa pública tá imersa na privada. É preciso tomar consciência. Eis um novo mandamento: conscientizai-vos uns aos outros. Aprendamos juntos. A consciência é uma arma contra a qual não há defesa, nem ataque capaz de destruir. Idéias não se matam. Solidariedade faz bem à qualidade de vida. Cooperar é melhor que competir. Sentimentos de superioridade inferiorizam, sentimentos de inferioridade paralisam. Humildade gera criatividade e imuniza contra o sentimento de humilhação. Não há superioridade ou inferioridade, mas responsabilidade. Sentir é mais que saber. Quem sabe mais não é melhor, é mais responsável e deve mais à coletividade. Assim como quem sente mais e percebe mais.
Pinheirinho é aqui e agora. É a realidade à minha volta, é a sociedade com a qual não me conformo.
Outras postagens sobre o massacre de Pinheirinho:
http://www.observareabsorver.blogspot.com.br/2012/01/o-massacre-de-pinheirinho-verdade-nao.html
http://www.observareabsorver.blogspot.com.br/2012/01/mudar-por-dentro-pra-mudar-sociedade.html
http://www.observareabsorver.blogspot.com.br/2012/01/complementando-pinheirinho.html
http://www.observareabsorver.blogspot.com.br/2012/02/relato-de-um-defensor-publico-de-sao.html