OBSERVAR E ABSORVER - observareabsorver.em@gmail.com - Pra ver o trabalho, com dimensões e preços, clique no link abaixo de "Ver o trampo".
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Resumo da minha vida (até há pouco tempo)
Meu pai era militar e minha mãe, funcionária pública, do IAPC, depois INPS, depois INAMPS, depois... Ele sertanejo (de Nova Cruz, fronteira entre Paraíba e Rio Grande do Norte), ela mineira (descendente de alemães e portugueses).
Nasci no Espírito Santo, saí de lá com um mês de idade, pro Rio de Janeiro. Mas minha primeira lembrança da infância é de Corumbá, no Mato Grosso. Soltei o freio de mão da kombi do meu pai (ele me deixou sozinho, por um instante) e ela desceu de ré a ladeira onde morávamos, indo bater num poste no meio de uma avenida lá embaixo, assustando um burro que puxava uma carroça de abóboras, que empinou e virou com a carroça, espalhando as abóboras e provocando uma confusão danada, com gritos e correrias. Abri um enorme berreiro, com o dedo na buzina (naquele tempo a buzina funcionava, com o motor desligado), até meu pai descer correndo a ladeira e me pegar no colo. Lembro que ele riu da minha cara apavorada e também de alívio. Hoje eu digo, pra descrença geral, que bati o carro do meu pai quando eu tinha três anos. Morávamos lá, em 64, enquanto davam o golpe "militar". Mudamos pro Rio em 66, onde estudei, com minhas irmãs, num colégio de freiras.
Em 68 fomos pra Feira de Santana, onde eu aprendi a comer com farinha (até hoje), moramos afastados da cidade, em área rural, na vila militar dos oficiais. Meu pai era o comandante do 35º Batalhão de Infantaria. Dali voltamos ao Rio, de 71 a 73, e eu fui para o Colégio Militar. Morávamos na Tijuca, ao lado do Clube Municipal. Eu já fazia vários esportes.
Em 74 fomos pra Brasília. Ali, com 15 anos, fiz concurso e entrei pro Banco do Brasil. Pedi demissão dez meses depois, pra espanto geral. Na época, quem entrava pro Banco dava graças a deus e não saía mais, até se aposentar. E foi justamente esta idéia que me apavorou, viver ali a vida toda me parecia um horror. Foi a primeira vez que me chamaram de louco. A próxima experiência foi o exército. Entrei (via concurso) pra escola preparatória de cadetes do exército, pra alívio da família, que imaginou que eu estava com a vida resolvida. Ali eu tomei ojeriza da hierarquia forçada, artificial e sem sentido. E do papel do exército dentro do conjunto da sociedade, depois que me peguei com um fuzil na mão, apontando pra uma manifestação de estudantes desarmados, em frente ao quartel. Havíamos chegado de um exercício de campo brabo, com campo de concentração e tortura, caminháramos 90 km pra chegar de volta no quartel, 2/3 da tropa caiu pelo caminho, o estado interno era deplorável, eu ia dormir quando tocou o alarme, me deram de volta o fuzil e as balas, eu deitei na barricada com a arma destravada e louco pra atirar. Eu era da equipe de tiro, acertava um alvo a 600 metros, a manifestação era, no máximo a 200 m, coloquei o cara do megafone na alça de mira e pedi ordem de fogo, "tenho o líder na mira, tenente". Ele não deu a ordem e eu fiquei puto. Depois, chegou a polícia de choque e dispersou a manifestação, gás lacrimogêneo, cacetetes, gritos, correria. E pudemos ir dormir. Quando acordei, lembrei e fiquei estarrecido comigo mesmo. Saí do exército, pra comoção geral na família.
Meu pai e minha mãe se aposentaram, meu pai foi trabalhar na Eletrobrás do Espírito Santo, e eu conheci o estado onde nasci. Ali, fui corretor de imóveis, mergulhador (captura e criação de lagostas), surfista, maconhófilo, capoeirista e estudante de direito. Na faculdade, conheci os filósofos (ótimos) e seus seguidores (péssimos). Ao ler Marx, disse "é isso!" Mas não durou muito tempo, os marxistas me deram no saco, era muita certeza pra minha cabeça duvidosa. Além do mais, novamente uma hierarquia ridícula se fazia presente. Eu vinha de um ano e meio de exército, tinha cortado um dobrado, vinha um bando de filhinhos de mamãe que tinham tudo na mão e nunca tinham ficado por conta própria querendo exercer superioridade, talvez por saber muito mais textos decorados e se suporem portadores da verdade. Eu desconhecia. Fiz algumas ações de sabotagem, cortei uns fios, pichei uns muros, contestei o sistema daquela maneira lá. Me desentendi com o movimento estudantil, na época controlado pelo PC do B (stalinista). Abracei o anarquismo, depois achei fraco, também, as pessoas eram superficiais. Pregavam, mas não viviam aquilo. Aí eu me desliguei da escola "não quero ser dotô", botei umas coisas na mochila (poucas) e fui experimentar o que é não ter nada, fui procurar um sentido pra vida. E a família me baniu, e não era uma metáfora. "Pode esquecer que teve família um dia", "você não faz mais parte da família", "não nos procure para nada, em nenhuma circunstância". Isso depois de passar por um psicólogo, um psiquiatra e um padre, de última, pra me exorcizar (se eu não tava desequilibrado, nem louco, só podia estar endemoniado). Foi um rompimento geral, não só pai e mãe, mas a família inteira. Eu tava com 19 anos. E aí começou a história...
...continuando...
Passei alguns anos só viajando, de cidade em cidade, às vezes só na estrada, dormindo nos acostamentos, sob as marquises dos postos de gasolina, em construções, casas abandonadas, ruínas. Quando tinha fome, pedia o que comer em casas, restaurantes, postos, onde tivesse, trocava em serviço ou pedia simplesmente, pra seguir viagem. Andava sem dinheiro nenhum, tranqüilamente. Logo nos primeiros tempos, perdi os documentos (que ainda me davam alguma proteção contra as investidas da polícia). Em seguida fui preso pela primeira vez. Acusação: vadiagem. Na verdade, tirei uma onda com uns PMs em Salvador, e eles não gostaram. Como a geral não revelou nada, vadiagem foi o pretexto. Sagrada prisão. Tive que lavar um camburão e fiquei conhecendo o motorista (ou melhor, ele ficou me conhecendo), com quem eu insisti pra abrir a caçapa. Queria lavar lá dentro, depois de lavar toda a viatura. Ele não abriu, mas achou a maior graça de eu fazer tanta questão de lavar lá dentro.
Meses depois ele me salvou numa geral de cana certa, eu carregava umas gramas pra uns gringos meus vizinhos esporádicos na ilha de Itaparica (estava morando em Mar Grande). 50 gramas de preto, de "massa" ou "chá", na Bahia da época.
Na Bahia, também, eu descobri que primeiro cê ouve o zumbido, depois o tiro, numa carreira desabalada ladeira abaixo, em outro "avião". Dessa vez os PMs tavam a pé, e os tiros foram um estímulo tão grande que eles me perderam de vista em seguida, pois eu saí voando. Eu já tinha uma filha, Brisa do Outono, que nascera numa passagem em Vitória. Depois dessa, parei de fazer avião.
Na Bahia tive outra filha, Adhara, quando morava na Aldeia de Arembepe, numa casa toda de palha, minha primeira casa própria, onde vivi dois anos, ao norte de Salvador.
Depois, morei na Boca do Rio, ainda em Salvador, durante uns seis meses ainda, de onde saí por falta de pagamento das contas, mas só depois de ficar sem água nem luz.
Pegamos a estrada e viemos descendo, pouco a pouco, até chegar no Rio, em 85/6. Morei em Saquarema, num sítio de um alemão da Lufthansa que só tinha latinoamericanos de língua espanhola. Depois passei um tempo nas ruas do Rio, morei numa ocupação em Jacarepaguá, depois em Petrópolis, onde perdi o pouco que tinha na enchente de 87 pra 88, e fui pruma comunidade alternativa em Montes Claros, MG, já durante a gravidez de Ravi.
Partimos quatro meses depois e passamos por muitas cidades, até chegar em Sete Lagoas. Ali, ficamos hospedados no Hotel Vitória, por um mês, a convite, sem pagar. Dali fomos a uma cidadezinha satélite de Sete Lagoas, Prudente de Morais, onde moramos por 4 anos (não havia morado tanto tempo num lugar só, ainda). Aí me separei e fiquei com três crianças, sem a mãe, por escolha delas. Fui pra Visconde de Mauá e me escondi no mato, saindo pra vender minhas coisas e bancar as pequenas despesas que tinha. As crianças foram crescendo, eu casei de novo (com uma cearence que hoje é juíza e mudou o nome do filho que nós tivemos, de Manu Moreno pra Emanuel) e mudei pro Rio, desta vez pra um apartamento em Copacabana, um conjugado. Ela me dispensou e voltou pras suas "regalias" de família rica, cansada da minha pobreza material, queria babá, creche, empregada, e me deixou no fundo do poço, de onde eu tirei aquela frase que vendo até hoje, “quem chega ao fundo do poço, precisa lembrar que o fundo é o melhor lugar do poço, pra se tomar impulso”. Morei em Santa Teresa um ano e depois, me estabeleci em Santa Rosa, onde moro até hoje. Aí, já fazendo desenhos a nanquim, pintura a óleo, cenários pra teatro, sempre focado em esclarecer, sensibilizar, questionar, conscientizar.
E estamos aí.