A preocupação do poder visível (as marionetes políticas) é com as classes intermediárias, os que têm condições de ler jornal ou revistas, os que influenciam a opinião dos funcionários subalternos, imensa maioria sub-escolarizada e com poucas condições de se informar. Não uso o termo classe média porque me parece um bloco homogêneo que não corresponde à realidade. As classes intermediárias vão do gerente de loja ao diretor geral, passando por médicos, engenheiros, advogados, micros, pequenos e médios empresários e por aí vai. Esses recebem as informações pasteurizadas da grande mídia dominante, a privada.
O cenário preparado com a queima de carros, ações de barbárie devidamente registradas pela mídia, e exibidas à exaustão nos noticiários e boletins de emergência, em tons catastróficos, faz a ação de guerra tomar aspecto de necessidade urgente e esconde os interesses vários, por trás. A opinião pública é levada a acreditar que são legítimas as ações - criminosas em inúmeros sentidos - contra as populações excluídas dos benefícios da sociedade, das condições mínimas de existência digna, os mais pobres. Não duvido que a queima cinematográfica de carros e ônibus tenha sido decidida em salas luxuosas, com serviçais e ar condicionado, em áreas “nobres” e daí para os gabinetes políticos e para as gerências do tráfico, inclusive as celas dos presídios de segurança máxima, onde alguns fazem o papel de máximos do tráfico, no lugar dos seus patrões. Os soldados cumprem as ordens, sem perceber que selam seu próprio destino, ao chamar para si as forças da repressão, treinadas, preparadas e bem armadas. Não duvido da participação do comando da mídia, em todo o processo de planejamento, decisão e imposição ao poder marionete que, às vezes, negocia influências nas ações em benefício do seu próprio sistema de manutenção no poder, da estratégia de preparação do “clima” à execução das operações “salvadoras”, iniciando o processo.
Assisti, entre a dor e a revolta, a entrada violenta das forças armadas do Estado no Complexo do Alemão, a partir da vila Cruzeiro. Qualquer formação militar mínima deixa claras as falhas calculadas, a rota de fuga deixada aos soldados do tráfico justificando a invasão do miolo do Complexo, contando com a debandada pelos dutos de escorrimento da comunidade, pois prender tantos não era o objetivo das operações. No comando real, muito acima dos generais, prefeitos, governadores e secretários de segurança, sabe-se muito bem quantos são, como trabalham e que tipo de armamentos dispõem os funcionários de baixo escalão do tráfico, pois dali se comanda, além de instâncias do Estado, o chamado “crime organizado”- e também se influencia a mídia privada, claro, velha aliada dos vampiros e dos urubus da sociedade.
Não vou nem falar na vindoura milícia – e da facção aliada, o TCP, mais tarde –, já anunciada aos moto-taxistas e vanzeiros – que terão de pagar taxas para circular na área. O texto ficaria longo demais, não tenho dados objetivos. É só uma obviedade diante desse “mais do mesmo” e do que aconteceu em Parada de Lucas e Vigário Geral (ler o texto "A Guerra do Rio – A farsa e a geopolítica do crime", http://www.somostodospalestinos.blogspot.com/) Gostaria de estar enganado.
Território ocupado, situação “acalmada”, surgem as denúncias de crimes praticados pelas forças armadas, a “segurança pública”. Execuções sumárias, assassinatos a sangue frio, torturas, invasões de domicílio a granel, roubos, abusos sem conta. Para a população mais pobre, o Estado não finge. Mostra sua cara hedionda, com cifrões nos olhos injetados de sangue e dentes de vampiro. Alguns detalhes podem ser vistos na edição 404 do jornal Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br), nas páginas 4 e 5. Nem se fosse o jornal inteiro caberiam todos os crimes e violações praticados por “nossas” forças de segurança contra as pessoas das comunidades. Nessas duas páginas, há um pequeno “souvenir”. Se para algumas pessoas das classes intermediárias isso parece exagero ou mentira, nas comunidades pobres ninguém estranha, todo mundo sabe, o desprezo e a agressividade do Estado são cotidianos, em todos os setores, educação, saúde, transporte, etc, não só o da segurança. Se alguém quiser informações reais a respeito, esqueça a mídia privada, os jornalões e as revistrolhas. Eles são funcionários de luxo dos reais donos do poder. As empresas contra o povo, que fica em situação análoga à barbárie (não tem situação análoga à escravidão?).
Depois da tempestade, começam os movimentos. As pessoas se procuram, se encontram, se abraçam, choram, riem. Contam os mortos, os feridos, os prejuízos, respiram fundo. Muitos se preparam pra um novo recomeço, a gente é calejada de tanto recomeço nessa vida. Adubar o chão de novo e recomeçar o plantio. E não há melhor adubo que a cultura, as cores e os sons, o diálogo da arte com a alma, uma arte dedicada a esse diálogo, com os sentimentos e os pensamentos, os valores e os desejos, com o ressurgimento da vida, da adaptação às novas condições, a cura das feridas da alma, mudando a forma e desenvolvendo o conteúdo. O 7º Circulando acontece nessa circunstância, o plantio em terra fértil, o estímulo à vida interna, à capacidade de resistência e superação. O grupo local, Raízes em Movimento , estava nas cabeças do evento (http://www.raizesemmovimento.blogspot.com/). Um evento desse é um renascer de vida impressionante, um sentimento de solidariedade no ar, um trocar de energias quase palpável. Há muito tempo, depois de uma noite de chuva no sertão, coisa rara, acordei para um dia lavado, um cheiro forte de terra, olhei a planície e me encantei. Uma porção de focos verdes salpicados, alguns pontos amarelos, outros vermelhos. Em uma noite de chuva a vida contida na falta de condições próprias explode com força. Cometi o erro de não ir. O convite chegou em cima, eu tinha outro compromisso. Só depois eu percebi que podia ter dispensado o compromisso, mas era tarde. Expus no 6º Circulando e foi ótimo, acho que o 7º foi de arrepiar, com a força da consternação e da afirmação de que a vida segue e nós vamos à frente pela transformação.
Dando ainda esse suspiro de alívio, fico sabendo da Vila Harmonia e Vila Recreio, despejadas ontem, brutalmente, pelas forças do Estado, tratores, casas derrubadas, violências, truculências... Meu Deus do céu! O estado mostra sua cara cachorra, feroz na defesa dos interesses dos seus poucos patrões, mesmo ao custo da desumanidade cometidas contra as coletividades mais fragilizadas da nossa sociedade. Uma vergonha pra todos nós, não vejo nenhuma exceção. Não falo em culpa, mas em responsabilidade. Mesmo que só possa assumir a minha, diante da minha coletividade e da minha consciência.
Já na quinta o Centro de Mídia Independente pedia o apoio às comunidades, denunciando os crimes da prefeitura (http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2010/12/482545.shtml). Na busca por registrar nas delegacias os crimes praticados, a recusa dos funcionários em fazer o registro, sintoma de operação orquestrada, sinal de interesses econômicos por trás. Diz a Mídia Independente:
“Ao se encaminharem para a 42ª DP, os moradores tiveram negado seu pedido de registro de ocorrência por parte dos inspetores de plantão. Alegaram eles que a Prefeitura deveria ter lá suas razões e seus direitos para proceder desta forma. Ainda nessa semana, um outro pedido de registro de ocorrência contra uma agressão direta do meliante Alex contra um morador da Vila Harmonia também foi negada pela equipe da 42ª DP.”
“Monstruosidade sem limites da Prefeitura do Rio: atacam à noite e passam a máquina com mobília e gente dentro e começam as ameaças de morte.”
“A Vila Recreio II, na Avenida das Américas, foi atacada mais uma vez na noite desta quarta-feira, 15/12/2010. Às 19h20 de hoje, o casebre do Sr. Luiz foi completamente destruído por uma retro-escavadeira com grande parte de sua mobília ainda lá dentro.”
“Cerca de quarenta homens da Guarda Municipal escoltaram um grupo de peões para fazer a derrubada da casa às margens da Avenida das Américas.”
“O clima é de tensão absoluta e já há moradores afirmando-se dispostos a morrer por causa de tanta injustiça e tão hedionda postura de agentes supostamente públicos.”
“Eis a lamentável resposta que tivemos ao encaminhar as denúncias para o "Fale Conosco", da Presidência da República:
‘Prezado Senhor
Em resposta a sua mensagem enviada ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esclarecemos que o assunto apresentado é de competência da prefeitura municipal do Rio de Janeiro. Conforme determina nossa Constituição, o chefe do executivo federal não pode intervir nas questões administrativas dos municípios. Contamos com sua compreensão.
Cordialmente,
Claudio Soares Rocha
Diretoria de Documentação Histórica
Gabinete Pessoal do Presidente da República’”
Realmente, é de lamentar. Mais uma confirmação do seqüestro do aparelho estatal e público pelo poder econômico privado de algumas poucas famílias, estendidas pela elite e pela classe mais alta das grandes empresas, da mídia e da política, sacrificando a população em seu benefício. Então o Estado não pode se manifestar diante de violações flagrantes à sua constituição, por parte de poderes locais ou de qualquer outra maneira? Ora, essa é função constitucional do Estado.
E me vejo repetindo, mais uma vez...
Por isso, a educação pública não pode ensinar de verdade. Não é “descaso” ou “incompetência” dos políticos. É uma estratégia planejada de sabotagem do ensino. A ignorância é necessária à sustentação da estrutura estatal-privada. A mídia encontra as pessoas desarmadas de instrução, informação e senso crítico, impõe valores sociais e pessoais; cria sonhos e objetivos de vida ilusórios; distorce a realidade para que não se perceba as causas e os modos do que acontece; e estabelece sentimentos inconscientes de superioridade e inferioridade de acordo com os níveis de consumo, de propriedade, de riqueza e ostentação. A idéia de diversão foi vinculada ao consumo. Valor social foi vinculado ao consumo. Valor pessoal, valor afetivo, tudo vinculado a valor monetário, ao consumo, direta ou indiretamente.
Por isso não há interesse em acabar com a miséria. Ela serve pra manter os salários baixos, as pessoas se submetem a condições cada vez piores, pressionadas pela miséria ou pelo medo. O programa bolsa-esmola tem uma utilidade. Vai possibilitar a essas pessoas comerem mais próximo das suas necessidades fundamentais, adquirindo mais capacidades mentais e tendo a possibilidade de criar senso crítico, entender mais as coisas. Por isso é tão criticado na mídia. São milhões, muitos terão oportunidades antes impossíveis. O resto é tempo, trampo e multiplicação. A mídia, que deve dividir o seu reinado por milhões (os reais donos do espaço das comunicações, por direito), faz e fará de tudo para evitar e manter-se no controle.
Por isso os currículos escolares são tão interferidos, direcionados não à formação de seres humanos, cidadãos, membros de uma coletividade e frutos de um sistema natural vivo, mas à qualificação para competir no “mercado de trabalho”. Desumaniza-se. E as conseqüências se fazem sentir em todos os patamares da estrutura social. Quando não é a barbárie, é a pressão entre o consumo, o trabalho e as contas, a ameaça de desemprego ou de queda na renda, a vida angustiada, sem propósito, sem sentido, a carência afetiva, emocional, a falta de sentimento de integração, a ameaça permanente de violências de todo o tipo, da miséria, passando pela criminalidade, ao Estado e às grandes empresas. Tudo é “mercado” e o “mercado” tudo justifica.
Essa conotação da palavra "mercado" cria uma capa de invisibilidade para esconder a pequena minoria por trás de todos os poderes, pessoas com capacidade de interferência e pressão quase ilimitada, ligados a poderes externos, com enorme união de classe, que obtêm gigantescos lucros com a situação de barbárie progressiva em que a sociedade humana se encontra. Não conseguem, no entanto, total controle. Há sempre vazamentos, diferenças de comportamento, contestações, descontroles. Construímos estruturas internas e podemos interferir nas externas. É preciso humanizar a vida. Pra isso, a estrutura social deve mudar, a partir da multiplicidade de mudanças pulverizadas por toda a sociedade e já imunes a destruições planejadas.
Tomando consciência, enxergando além do que nos é mostrado, buscando as informações nos meios alternativos, descondicionando nossos comportamentos, nossos valores e objetivos de vida, corroemos o sistema. Criando solidariedade, desenvolvendo a sensibilidade, fazemos parte da construção descontrolada, do processo de iluminação e elevação do espírito humano e da sociedade, para construir uma estrutura justa e equilibrada, sem privilégios, ostentações, miséria e ignorância. Porque uma sociedade com miséria material, de um lado, denuncia a própria miséria moral, de outro. Nesse caso, a forma denuncia o conteúdo.
Parabens, muito bom o texto, concordo com tudo principalmente na parte do "consumismo"
ResponderExcluirsao de pessoas como você que o Brasil precisa!
vlw :D
Muito bom, como sempre!
ResponderExcluirContinue fazendo esse trabalho fascinante, porque, com certeza, vc provoca inquietações em muitas pessoas.
Não devemos ficar parados, devemos mostrar que não aceitamos tudo que os "poderosos" dizem.
A ferrugem tem que ser cada vez maior..
Parabéns pelo blog e pelo trabalho Eduardo!
ResponderExcluirÉ preciso, cada vez mais, de pessoas reflexivas.
Paz!
Pedro Caluzni
Muito boa a análise, sua escrita é prática e objetiva. Gostei muito de sua proposta de trabalho e continuarei acompanhando e divulgando. Atenciosamente, Alexandre Palma
ResponderExcluirGostei... copiarei...divulgarei. Por enquanto é o que dá pra fazer. Façamos então!
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