quinta-feira, 10 de março de 2011

O garimpo humano

Temos do “demoníaco” ao “divino”, entre nós. E dentro de nós. Conheço trevosos e iluminados, anjos e demônios. Vi anjos virarem demônios e vice versa, conforme as circunstâncias. Todas a falhas que vemos pelo mundo estão dentro de nós, em maior ou menor grau, como árvore frondosa ou apenas semente, esperando a ocasião. As proporções variam do imperceptível ao impressionante, em incontáveis degraus.

A humanidade é um grande garimpo. O que aparece é lama, cascalho e pedra sem valor. No meio, de raro em raro, há pedras preciosas e pepitas, misturadas com tudo. Há quem desista, “ora aí só tem barro, que sujeirada”, logo de saída, ou depois de uma busca frustrante. Mas há quem se aplique, quem procure e encontre. É preciso educar os olhos, apurar os sentidos, pra perceber uma pedra de valor, uma pepita, envolvida na lama, no cascalho humano. Não é difícil, eu as tenho encontrado, sempre, em todos os meios e coletividades.

Claro que não são a regra geral. A sociedade será outra quando forem, pelo menos, minoria. São exceções à regra. Muitas se dedicam a trabalhos de conscientização, de ensino, de amparo, de apoio, de luta por melhorias de verdade, no ser humano e na sociedade. Outras não se dedicam diretamente, estão em toda parte, espalhadas, formando a sociedade como pessoas comuns, em todas as profissões. Essas iluminam aonde estão, questionando, propondo, exemplificando, sendo diferentes do "normal". A diferença está no olhar, na compreensão das coisas, da forma de reagir, de sentir, de atuar. Há quem esteja buscando, quem não se conforme, quem sofra com a discriminação inevitável numa sociedade onde a mediocridade, a mesquinharia, a conformação, a padronização ainda são as regras vigentes. Os contatos que valem a pena, da humanidade, são as exceções. Em geral, são pessoas que, quando andam com a corrente, se angustiam, sofrem. Pessoas para quem se conformar e reprimir as necessidades internas é adoecer a vida, é se tornar amargo, depressivo, mal-humorado, descrente de tudo.

Somos mesmo complexos e variados. Mas somos, também, ignorantes de nós mesmos. Cegos de consciência, tateamos no escuro, aprendendo com a dor, colhendo frutos que plantamos sem nem perceber. Aprender, essa é a tarefa. Pra isso existimos e é o que levamos da vida. Alguns sabem disso, outros sentem. Poucos, é claro. A maioria anda por aí, superficializada, induzida ao desinteresse, à inércia, ao seguir as ondas, sem perceber a fonte dos seus próprios valores, sem perceber os próprios condicionamentos, muitas vezes no cárcere da indiferença, do egocentrismo, do apequenamento do mundo. Essa maioria não pode entender a angústia, o vazio que assalta implacável, a cada silêncio, a cada encontrar consigo mesmo.

A preciosidade humana tem uma característica própria, única, e é o que me faz acreditar na diversidade infinita desse trabalho de lapidação. Diferente da preciosidade mineral, exclusiva, a preciosidade humana contagia. Uma luz pode acender várias, e essas passam a acender outras. A diferença entre uma pessoa iluminada e outra ignorante não é tão abissal quanto nos parece. Em essência, são a mesma coisa - às vezes, um leve toque produz o brilho. Taí o trampo, esse é o trabalho. Pra mim, é isso o que faz a vida valer a pena. Aprender e passar, deixar os toques pra que alguém os aproveite em seu trabalho/caminho. Não espero ver tudo pronto, do jeito que sonho. Mas preciso andar neste sentido. Não tenho a ingenuidade de plantar pra mim, planto pra dar valor à minha vida.

Nada é estático, tudo muda. Não há milênios pra trás? Também os há pra frente. As previsões apocalípticas visam desestimular qualquer movimento de mudança mais incisivo. Não há extermínio. Pode haver hecatombes, sim, mas não o extermínio. E se houvesse essa possibilidade, isso seria mais um motivo pra lutar. Sentar e se acomodar como os usufruintes alienados, não quero condenar ninguém, mas eu teria vergonha. De mim mesmo.

Prefiro tratar com pessoas que possuem algum terreno fértil em suas consciências, com essas dá pra trabalhar. E ajuda a fertilizar e desenvolver a minha própria, que é o que eu mais preciso. As mudanças, as revoluções, se fazem no dia a dia, internamente, sem detrimento das lutas externas, de grupo, dos posicionamentos, das manifestações e apoios solidários, das reivindicações justas, do esclarecimento cotidiano.

Nem todos estão acomodados. Nem todos almejam o desfrute e o prazer materiais como finalidade de vida. Nem todos se deixam condicionar por uma mídia tão poderosa que forma valores, costumes, opiniões, sempre em benefício de empresas e em detrimento do desenvolvimento real do ser humano e da sociedade. São poucos, ainda, é verdade. É um garimpo. Mas eu percebo a formação de muitos veios, espalhados por aí.

Um veio (vêio), no garimpo de minerais, é onde se encontram grande quantidades de pedras, ou ouro, num lugar só, a sorte grande do garimpeiro. No meio humano, já vi muitos veios preciosos, funcionando dentro da coletividade, de todos os tipos, formas e qualidades. Com o tempo, fui percebendo o fenômeno da evolução espalhada e, aparentemente, desconectada. O trabalho está sendo feito. Sem anúncio, sem alarde, em toda parte, em todos os níveis. Sem que se perceba e é bom que assim seja. A estrutura dominante está pronta pra esmagar qualquer ameaça de mudança, venha das ruas, dos grupos, dos gritos, através do terrorismo, do combate direto ou indireto, explosivos ou informações. Esse grande esquema só não está preparado pra consciência. Por isso tanto investimento em entretenimento, em condução da opinião pública, em idiotização, em infantilização pela mídia da mentalidade geral. Assim, roubam os direitos fundamentais da maioria e atiram grande parcela da população na ignorância, na pobreza e na miséria. O mandamento moral, agora, é conscientizai-vos uns aos outros. Esse é o trabalho que está sendo feito. Sem controle aparente, aparentemente espontâneo.

Participar desse trabalho é necessário a muitos dos que não se contentam com o que a sociedade apresenta como ideal de vida. Pros que não se deixam enganar e se sentem parte dessa coletividade narcotizada. Pros que não se identificam, nem se conformam com essa estrutura social injusta, mediocrizante, manipuladora, mentirosa e criadora de problemas pra esmagadora maioria. E o trabalho começa dentro. Os que se limitam a lutar por mudanças na sociedade, a partir do externo, não desenvolvem em si a força da mudança. Desistem ou se acomodam com a forma sem conteúdo da revolução sem raízes, com verdades impostas e subalternidade cultural.

As verdadeiras exceções estão aí, é um imenso prazer e um incentivo reconhecê-las, vez por outra.

23 comentários:

  1. O que me preocupa é que está rareando as pepitas.

    Belo texto, Eduardo.

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  2. Grande texto Eduardo.

    A percepção de que as mudanças se iniciam por nosso interior não é evidente para a maioria das pessoas. Muito pelo contrário, a submissão mental delas ao externo ainda é maioria esmagadora criando o mundo que vemos hoje.

    Parabéns pelo texto.

    Abraços

    Marcos

    http://www.oagora.com/

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  3. As pepitas não rareiam. Ao contrário, proliferam. A sensação de que elas escasseiam nos é dada quando não as encontramos. Pode ser uma prova pra nossa resistência e convicção. Mas às vezes o que precisamos é apurar nossas escolhas.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Irmãos, é verdade que o garimpo deve ser feito. Que devemos apurar nossas escolhas e tudo mais. Contudo, se o próprio garimpeiro não estiver pronto pra conviver com toda essa "riqueza", a preciosidade será desperdiçada. Então é bom que se faça o tal garimpo, primeiramente, dentro das nossas almas. Caso contrário, de nada valerá o trabalho árduo nos traiçoeiros rios da vida.
    Um abraço a todos!

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  6. Só queria dizer obrigada, Eduardo.
    Depois que conheci tuas idéias, teus inventos, tua arte e percepção, creio que estou me tornando uma "criatura do que vejo".
    abç

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  7. só não vamos ignorar os fatos e viver como se não soubessemos a verdade. Depois que temos um contato com informações como essa temos a obrigação de espalha-la pelo 4 cantos do mundo. E alem de conscientizar, não podemos nunca esquecer de AGIR.

    Uma cabeça cheia de conhecimentos e mãos vazias de ações não fazem a diferença.

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  8. Esse texto é tão claro, belo, preciso... às vezes é difícil não se desestimular com a nossa massacrante sociedade doente e contagiosa, mas a cada dia a gente esbarra aqui e ali com pessoas por quem vale a pena a luta para transformar o mundo num lugar melhor.
    Obrigado!

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  9. Eduardo, querido você é um guru, um ser de luz.
    Sua precisão e lucidez irretocáveis são de encher os olhos... e o coração.

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  10. Que mané guru, rapá. Sou um pinguço, fumante e perebento. O que passa através de mim não é merecimento meu. É o proveito que se dá a uma faca véia que já não corta, usando na horta, pra abrir as covas das sementes.
    Não se iluda, são seus olhos Cult.
    Abraço.

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  11. Nenhum guru de verdade abre mão de seus vícios por um título... ainda bem! rsrs
    Prefiro o termo "Anjo", ainda que decaído, aliás, principalmente os decaídos, penso que só sabe do paraíso quem conheceu o inferno.
    "só voa quem de céu é feito".
    bjo

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  12. ...ai, ai, ai... Não me impõe essa responsa. Cada um é guru de si mesmo. Eu só relato o que vejo, o que penso, o que vivo. E acho tudo tão óbvio que me espanta o ar de novidade que as pessoas fazem.

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  13. Fumante eu já sou, vou então tomar mais pinga pra vê se nasce umas pereba, quem sabe eu ganhe esse discernmento todo.
    Maravilha, amável pepita.

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  14. Pereba trazer discernimento? O que essa pereba tá me dizendo é "prestenção, ô vacilão! Vai nessa que eu te acabo!" É na ameaça "prestes".
    Com esse título (Cult Post), imaginei que cê não fumasse e que bebesse apenas socialmente. rs Onde é que a gente não acha preconceito... O problema é que essas imaginações, muitas vezes, acertam - e aí reforçam o preconceito.

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  15. Com todo o respeito, eu não vejo nenhuma pessoa, por mais estudada e coisa e tal que seja, diferente das demais.
    Cada um tem o seu pra ensinar.
    Amém.

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  16. Anjo, guru, realmente adjetivar é sempre um risco.
    Mas que perebas podem trazer discernimento... é possível?

    "Do pulso
    Restam feridas, entreabertas!
    Sabe-se, pois, que o destino do poema vegeta,
    A liquidez da fala está acoplada na lâmpada da consciência,
    As comiserações arqueiam-se qual frigidez relativa do ar
    (Quais filamentos de um poema em pedaços),
    No afã de alumiar o mundo, o burburinho matinal,
    Que surge sob o orgasmo do embrulho
    - E das traças egocêntricas do sim.

    Benny Franklin

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  17. não que sejam "novidades", são verdades que muitos sabem mas poucos tem coragem de dizer, quanto mais de viver essas verdades (como é seu caso) e isso causa admiração (como é o meu caso).

    outro bjo.

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  18. Brilhante, como sempre!!!
    Vc é um raro, daqueles que se quer bem e sempre por perto, ainda que virtualmente.
    Gde abraço!

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  19. Grande texto. Esses tesouros são raros, no entanto são a salvação para todo o resto! Olho ao meu redor, vejo jovens, principalmente no ambiente escolar, jovens que estão passando pelo processo de "idiotização", porém nem percebem! Aceitam de bom grado os "enlatados", os lixos ideológicos e culturais que as elites dominantes distribuem, principalmente por intermédio da mídia! Está se formando uma sociedade superficial, grande importadora cultural, exclusivamente estadunidense! Posso justificar minha solidão, minha falta de amigos mais intímos, pelo fato que essas pepítas cada vez ficam mais escassas!
    Até mais Eduardo, continue e expalhe mais seu trabalho!

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  20. Edu, muito obrigada por compartilhar seu olhar referente essa questão conosco. Há um tempo estava estranhamente mal, pois estava me deixando levar a mente o discurso atual (da maioria ao meu redor) de que o humano era o destruidor, estava em um ponto em que preferia lidar com animais ao encontrar algumas pessoas. Mas hoje, estou diferente, depois que assisti o documentário OBSERVAR E ABSORVER, produzido por Junior SQL. Na verdade, sempre estive/ estou em busca de algo que não sei ao certo o que é KKK. No momento estou buscando desenvolver melhor minha espiritualidade (e sua visão sobre isso é muito parecida com que estava buscando entender), sinto que preciso fazer mais pelo outro e estou caminhando (já dei início) para colocar em prática. Sou jornalista, estou com alguns projetos em mente e futuramente gostaria de te entrevistar, espero que dê certo. Obrigada <3

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