quinta-feira, 21 de julho de 2011

Qualidade de sentimentos, qualidade de vida, qualidade social





         Estou aprendendo a observar a qualidade dos sentimentos. Percebo cada vez mais a importância deles em nosso pensamento, na qualidade geral da vida e na maneira de sermos e de nos relacionarmos.
         Existem todos os sentimentos, mesmo os mais bárbaros, na maioria dos seres humanos, ainda que na forma de semente. Consigo imaginar situações em que me tornaria – eu, que sou tranqüilo – um monstro sanguinário, em circunstâncias específicas que prefiro não relatar, por hediondas que são. Sinto a necessidade de trabalho neste sentido, de observar, aprender, questionar e influenciar os sentimentos tanto em mim mesmo quanto os que produzo na coletividade, nos outros, dentro das minhas possibilidades, claro. Venho me empenhando neste aprendizado.
         Neste caminho há uma clareza crescente de percepções novas, o desenvolvimento da capacidade de sentir, de perceber os sentimentos que se produzem, antes que se manifestem, e interferir neles quando é possível. Um trabalho muito ligado à área da intuição. O saber acadêmico, racionalista, muitas vezes nega ou despreza essa área, empobrecendo em muito os potenciais da razão e do desenvolvimento realmente humano – o desenvolvimento que vejo, a mim parece mais desumano, egoísta, exclusivista, excluidor e explorador da maioria. A tendência racionalista das academias cria um sentimento de superioridade (abrindo distância das maiorias, consideradas inferiores) que se manifesta em desprezo e agressividade ou em benevolência e compaixão, de acordo com o caráter, da índole pessoal. Confunde-se falta de conhecimentos com falta de personalidade, falta de saber com falta de sabedoria. 
         Essa tendência alimenta sentimentos desequilibrados de arrogância e vaidade, de superioridade em lugar de responsabilidade, de direito a privilégios em vez de obrigações morais, que por sua vez alimentam a tendência racionalista do pensar acadêmico, em justificativa da própria existência como elite intelectual. Mas a forma como a academia é utilizada (sempre em benefícios das empresas, das elites e das suas minorias de sustentação, as classes médias altas) me dá a sensação de planejamento, de estratégia intencional.
         Bom, voltando ao assunto, observando a influência dos sentimentos no comportamento, nas ações e reações e nos pensamentos, tenho encontrado maneiras de, por exemplo, desarmar pessoas que se colocam em rota de colisão, partindo do momento em que se manifesta o sentimento que tende ao conflito – na fisionomia, na postura corporal, no tom de voz – e antes que ele se manifeste em atitudes, em palavras ou atos. Na maioria das vezes, bastam palavras de respeito às diferenças de opiniões e visões de mundo. Idéias pacificadoras simples e agradáveis à maioria. Diante de um eventual insulto, já não existe sentimento de ofensa - que é justamente o objetivo do insulto, no caminho do conflito primário. É fácil não se deixar levar, quando se consegue observar, com alguma isenção, os sentimentos envolvidos. O insulto tende a morrer na boca do agressor, se não encontra o retorno esperado. O aprendizado é proporcional à tolerância, ao interesse e ao respeito pelo outro – mesmo que o outro não saiba respeitar –, que criam a capacidade de absorver as lições que sempre se apresentam.
         Se no âmbito pessoal podemos perceber a total influência dos sentimentos na qualidade de vida e nas relações com pessoas, situações, acontecimentos e contrariedades, estendendo os olhos sobre a coletividade, vemos quanto desequilíbrio é produzido pela falta de atenção, de estudo e trabalho nesta área. Ao contrário, são estimulados os piores sentimentos, como egoísmo, vaidade, preconceitos, discriminações, por uma publicidade irresponsável cujo único objetivo é induzir ao consumo compulsivo, obrigatório para alcançar algum valor social. No interesse das empresas. O ensino público foi destruído e o privado foi direcionado aos interesses empresariais. Os bancos e as empresas viraram o centro do mundo, da vida, do universo. O mundo é apresentado como um imenso mercado invisível abrangendo todas as áreas das sociedades, a partir de dois troncos principais, o mercado de trabalho e o mercado de consumo, que devem ser disputados em competição permanente e sem tréguas por todos, em benefício de minorias numericamente insignificantes, mas que concentraram, ao longo dos séculos e por dinastias, os poderes que se impõem sobre os Estados, suas instituições e seus povos. Por isso os serviços públicos são tão precários e áreas estratégicas, como saúde, educação e segurança se encontram em estado de barbárie. Não é por incompetência, é intencional, é competência com os objetivos da concentração, que passa pela desinstrução e pela desinformação da maioria, pelo extermínio dos “excessos” e pela contenção dos inconformados.
         É preciso desenvolver a observação e a influência sobre os sentimentos, inclusive para perceber a quantidade de sentimentos induzidos pelas mídias, pelo ensino deturpado, pela publicidade massiva e pela propaganda ideológica alienante, que distorcem a realidade e escondem as causas de tanto sofrimento, tanta sabotagem, tanta covardia, tanto abandono. Fomos influenciados desde o inconsciente (e desde a infância) por técnicas de formação de opinião, de desejos, de valores, por manipulação midiática, por condicionamento cultural.
         Quando encaramos o irmão que discorda ou que apenas caminha ao nosso lado como adversário, sustentamos o sistema; quando desejamos ser melhores que os outros, ao contrário de sermos apenas o nosso melhor possível, na disposição de aprender mais e sempre, sustentamos o sistema; quando usamos marcas “de qualidade”, ignorando o trabalho escravo e a exploração extrema, a destruição da natureza e de coletividades em áreas de interesse econômico, o desrespeito e as violações constantes que essas empresas impõem aos povos de  todo o mundo, sustentamos o sistema; quando desejamos situações de riqueza, sem considerar que privilégios para poucos há muito tempo custam os direitos básicos das maiorias, sustentamos o sistema.
         Somos levados a colaborar com esse sistema de exploração desmedida do trabalho, de concentração de riqueza e poder nas mãos de minorias cada vez menores que não se sustentariam, se não fôssemos levados a colaborar, a consentir e a manter, massa de manobra modelada pela interferência da ideologia empresarial no ensino e entorpecida por uma mídia privada dominante e essencialmente empresarial.
         Adotamos valores planejados e implantados mesmo no inconsciente, com os conhecimentos da psicologia avançada dos estudos acadêmicos que são usados em publicidade, propaganda e márquetim.
         Somos convencidos de que a vida é uma competição e todos são adversários; que felicidade é consumir, desfrutar de excessos, patrimônios, facilidades, confortos e garantias; que o mundo é isso mesmo e não tem jeito, não se pode fazer nada a não ser entrar na corrente e disputar o seu espaço, lutar por si mesmo, nunca pela coletividade. Somos levados a não ver a miséria produzida por essa estrutura social desumana e concentradora, ou a vê-la como inevitável, certamente desagradável e injusta, mas inevitável realidade que não encontra explicação, a não ser atirando a responsabilidade sobre as próprias vítimas para justificar seu abandono à própria sorte – e não se pensa mais nisso.
         Prestando atenção aos próprios sentimentos e aos que nos rodeiam, percebemos aos poucos suas origens, seu nascedouro, suas motivações externas e inconscientes tornadas, aos poucos, conscientes. Ganhamos poder de influência sobre nossos valores, desejos e objetivos de vida, gradualmente os limpando dos condicionamentos mediocrizantes a que ninguém escapa e que nos causam uma vida de angústias permanentes e frustrações constantes, nos círculos viciosos entre o consumo e o trabalho, incluindo no consumo desde o básico para a sobrevivência – como a água – até as necessidades do espírito humano – cultura, integração, afetos, sentimentos,... –, tudo reduzido à qualidade de mercadoria.
         Quando desenvolvermos o sentimento de solidariedade irrestrita, quando desejarmos do mundo apenas o necessário para viver com dignidade e em harmonia com o coletivo, quando sentirmos todas as crianças como filhos comuns e os velhos como pais e avós de todos, quando a prioridade forem as situações de fragilidade, quando desenvolvermos os próprios valores, desejos e objetivos de vida relacionados com a harmonia social e a igualdade de oportunidades para todos, sem exceções, o sistema desmorona sem ruído, de inanição. Pois somos nós todos que o sustentamos, conduzidos como o burro puxa a carroça atrás das cenouras penduradas numa vara, sem alcançar.
         Sensibilizar, esclarecer, conscientizar, são tarefas que ganham em força e alcance quando partem de um trabalho interno, profundo e sincero, disposto a reconhecer erros e corrigir rotas, a qualquer momento.

Eduardo Marinho. 

16 comentários:

  1. Eduardo, esse texto me chegou muito intenso, conciso e didático, sempre aprendo muito quando te leio.. também encaro fato totalmente encoberto as influências dos mecanismos midiáticos sobre nossos sentimentos, precisamos de muita sensibilidade para percebê-los e força para continuarmos percebendo e agir em questão.. na finalização, acredito que a revolução é silenciosa, de dentro para fora, consciente.. obrigado pela partilha, isso me reforça a conscientização e caminhada.. valeu!

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  2. Que texto, heim! Eduardo Marinho e suas observações do mundo. Fantástico! Concordo com suas observações e acho que você resumiu muito bem em "o desenvolvimento que vejo, a mim parece mais desumano, mais egoísta, exclusivista, excluidor e explorador da maioria". Em suma, é isso mesmo!

    Como você bem disse, é tudo direcionado para ser assim ou assado e, depois, as vítimas são responsabilizadas. Esse é o "nosso" Direito e a "nossa" Justiça, infelizmente. Feita pelas minorias para as minorias. E no mesmo sentido, todas as outras ciências (vide o conceito de darwinismo social) que são, como vc bem disse, usadas ao extremo pela mídia.

    Enfim, este mundo caótico está em crise e parece-me que não há uma saída, a não ser a conscientização, que é o que você faz com o seu belo trabalho.

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  3. Intocável, poesia para os olhos de quem reflete, e sabe que a vida é um pouco mais disso que temos presenciado.

    Esse mundo estruturado por uma minoria nos remete a padrões de excelência excludentes. Induzidos a uma cegueira cruelmente planejada, cremos não haver outra possibilidade e nos submetemos aos ideais elitistas: individualismo.

    O mais importante, pra mim, é entender que há outras vias, outros modos de viver. Enquanto estivermos presos aos dogmas da elite, imaginando que o mundo diante de nossos olhos é um resultado da natureza humana, e não do meticuloso planejamento de uma minoria poderosa, seremos reféns das instituições contemporâneas, na medida em que remamos em desfavor daquilo que fazemos parte, a humanidade.

    Muito obrigado, Eduardo Marinho. Você é fonte de inspiração!

    se puder ler o meu blog, ficaria honrado!
    http://mitoerazao.blogspot.com/

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  4. Olá adorei seu Blog, e já me tornei seguidor.
    me siga também
    http://bidubidu.blogspot.com/
    e seu comentário no Blog é muito importante para nós. visite o nosso site também
    www.bidubidu.com.br

    Obrigada e Sucesso

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  5. Privilégios comem direitos!

    Já percebo tem algum tempo no seu vocabulário palavras aportuguesadas como "márquetim", "emeio" e etc, legal a iniciativa(um adendo besta perto do valor do texto).

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  6. Acho que as idéias em certo ponto convergem. Somos ainda muito mais novos, escrevemos em 2, alternamos os posts. Um jornalista(Rafael Rodrigues) e um Designer (eu Heitor Turci) ainda em estudo. Mas acho que sentimos o peso que tem quando se opta por ter um rótulo e ser chamado por um nome que não o seu, além de Heitor sou Designer. Nosso blog ta aí, e nossas idéias estão nele...
    http://nodia36.blogspot.com/

    Parabéns por ser.

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  7. Oi Eduardo.
    Que bom que continua produzindo seus textos :)
    Parabéns e obrigado por isso.

    Vim relatar algo rapido antes de voltar a estudar. Estou no segundo período de Direito agora, e confirmo que o direito é uma estrutura ideológica do Estado, para positivar/legalizar os interesses de classes dominantes em detrimento da maioria; Estou no começo, mas os professores avisam, principalmente os de Sociologia e Filosofia, que é bom ficar de olhos abertos, e criar um hábito de estudo contínuo além do que é dado no direito meio que do 3° período em diante, pois pelo que percebo, o Direito aos poucos vai se desprender dessa visão crítica e teórica, para uma visão mais técnica, dos códigos e tudo. Incentivam, e avisam que esse é um caminho, que o momento de se fazer e começar isso é pra já, se quizer melhorar esse Poder Jurídico e dar um caráter mais cidadão, o que está defasado. Bom, outra coisa tbm é que pouca gnt aprecia essas matérias, daí vc vê né, ESTUDAR - SER TÉCNICO - CAIR O MERCADO. É o dilema: operário x operador do Direito. Eu prefiro e vou lutar para ser um operário!

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  8. Afago
    Não chore tesouro, eu estou aqui, saia de perto da janela
    Volte a dormir

    Deite sua cabeça, criança
    Eu não vou deixar o bicho-papão vir

    Contando cadáveres como carneirinhos
    No ritmo dos tambores de guerra

    Não dê atenção aos pobres
    Não dê atenção aos pobres

    Deite-se, vá dormir
    No ritmo dos tambores da guerra

    Não ligue para o que as vozes dizem
    Elas não se preocupam com você
    Como eu me preocupo, como eu me preocupo
    Salvo da dor e da verdade e da escolha
    E de outros venenos diabólicos
    Veja, eles não se preocupam com você
    Como eu me preocupo

    Apenas fique comigo
    Salvo e ignorante
    Volte a dormir
    Volte a dormir

    Eu serei o único que o protegerá
    Dos seus inimigos e de todos os seus demônios
    Eu serei o único que o protegerá
    Da vontade de sobreviver e da voz da razão
    Eu serei o único que o protegerá
    Dos seus inimigos e das suas escolhas, filho
    Eles são todos iguais
    Eu devo isolar você
    Isolar e te salvar de você mesmo

    Movendo-se no ritmo da nova ordem mundial
    Conte cadáveres como carneirinhos
    No ritmo dos tambores de guerra
    Os bichos-papões estão vindo
    Os bichos-papões estão vindo
    Fique deitado
    Vá dormir
    No ritmo dos tambores de guerra

    Fique comigo
    Salvo e ignorante
    Apenas fique comigo
    Eu o abraçarei e o protegerei das outras pessoas
    As pessoas más
    Não te amam, filho
    Volte a dormir...
    A Perfect Circle.
    maynard james keenan...

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  9. Belíssimo texto Eduardo. Acredito que a maior dificuldade nessa luta para sensibilizar, esclarecer, conscientizar seja a forma de faze-lo, sem ser desrespeitoso e incisivo. Acho que me faltam anos de amadurecimento para que eu consiga passar a mensagem com naturalidade e respeito. Principalmente para aquelas mentes mais fechadas e materialistas (o pessoal "cabeça-dura").
    continue com seu trabalho pois tem gerado resultados positivos.
    abraço

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  10. Meus parabéns. Eu só tenho a agradecer e acreditar na vida sabendo que no mundo existem pessoas como vc. São pessoas como vc que me motivan a viver com mais vontade e sentir energia para mudar as coisas. Abraços. Talles

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  11. Permita-me participar.
    Belo texto.
    Só discordo quando trata os pensamentos acadêmico e racionalista como a mesma coisa. Não necessariamente. O acadêmico pode ou não ser racionalista assim como o racionalista pode ou não ser acadêmico. E mais, a partir do momento em que a razão passa a ser o instrumento de um indivíduo para investigar e tentar entendeu o mundo, a academia fica pra traz, já que o pensamento racional prevê, na sua essência, que o indivíduo observe, investigue e construa uma imagem do mundo de acordo com a sua experiência e com a sua própria interpretação. Trata da liberdade do pensamento, portanto a própria razão seria capaz de perceber as distorções criadas pela academia, abandonando-as. E pra finalizar, você mesmo constrói seus argumentos usando métodos racionalistas de observação e livre investigação de evidências (até o nome do blog usa dois pilares do "pensar racional" - observar e absorver!). Acho que houve uma certa confusão nessa parte do texto. O resto é muito legal e concordo absolutamente. Valeu!

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