A situação de pobreza sempre me intrigou, a miséria me chocava e eu não entendia. Sentia um certo constrangimento inexplicável do meu “falar correto”, das minhas roupas de marca, às vezes do meu tamanho, dos meus dentes impecavelmente tratados. Não que desejasse abrir mão da minha situação. Mas por quê a maioria das pessoas não tinha? Era uma sutil sensação de injustiça sem me sentir claramente culpado, apenas constrangido com o que pareciam privilégios nesses momentos, mas que tinham se incorporado em mim como o mínimo necessário.
Não podia achar aquilo natural e inevitável, como me diziam e se acreditava à minha volta. Na verdade, fugia-se do assunto. Eu fui muitas vezes considerado um chato, fui evitado por vários grupos na adolescência, às vezes francamente hostilizado – não gostavam de mim. Tinha minhas boas relações, mas eram poucas e quase todas... como direi... bilaterais. Não fazia parte de grupos. Fora os esportes coletivos, claro. Aprendi aos poucos a ficar mais calado e prestar mais atenção – virtude que perdi de vista ao entrar na universidade e até hoje, vez por outra e apesar da vivência, me faz falta. Algumas vezes, consigo me controlar, mas nem sempre.
Quando andei no nível da mendicância e vivi do que me era dado, encontrei gente boa e ruim em todas as classes, indiferentes e curiosos de todos os tipos. Mas era nítida a diferença de acolhimento entre os mais pobres dos pobres. Ali se dividem migalhas, com uma generosidade ímpar, quando se divide. A generosidade dos ricos, no mais das vezes, é à distância. Partilhei refeições feitas em latas de óleo sobre fogueiras, dormi sobre capim improvisado no cantinho da tapera, pendurado em rede, em caibros ou árvores, fui hospedado em palafitas sobre mangues, onde o banheiro é servido de um buraco no chão, pedaços de jornal enfiados num prego na parede de tábua e a gente escuta o barulho da merda caindo na água, lá embaixo.
Boa recepção por parte dos que dispunham de sobras me deixavam reconhecido, agradecido, mas a recepção dos mais pobres me comovia. Tão pouco tinham, tão fácil dividiam... O dia seguinte pertencia a Deus e a luta era todo dia, sem feriado. Também senti a fome, vivi sem abrigo, como um aluno, atento, aprendendo, pesquisando à minha maneira, ouvindo as histórias, falando meu pensamento, reparando nas reações, na linguagem, absorvendo os códigos, percebendo os conhecimentos, as intuições e relações. Criei um grande carinho pelos sabotados, pelas pessoas em situação de fragilidade, uma ligação talvez moral, certamente afetiva, junto com a sensação de injustiça permanente, pedindo trabalho de reparação na estrutura social – a partir das raízes individuais internas para as externas, coletivas. Nasceu uma grande admiração pela resistência ao sofrimento, pela luta de sobrevivência, pelos saberes e sabedorias desenvolvidos quase por conta própria. Eu os sinto parte de mim, do meu grupo, merecedores de mais cuidados, pelos maltratos cotidianos impostos por essa estrutura social perversa.
Certamente é por isso que me causa certo desconforto a presença, a proximidade ou a simples visão de luxo e ostentação. Uma espécie de constrangimento. Traz à lembrança a situação injusta, precária e abandonada em que vivem tantas pessoas, por um Estado que foi infiltrado, dominado por grandes empresas - as poucas pessoas mais ricas - e impedido de cumprir as leis mais básicas da sua própria constituição, na garantia de condições mínimas de vida com dignidade para sua população. O domínio das elites tornou o Estado criminoso, nos seus três pretensos poderes, e o colocou a seu serviço, eliminando direitos e roubando patrimônios públicos – o que é público é tratado como privado. Tenho verdadeira repulsa por privilégios, luxos e ostentações, embora não transfira essa repulsa às pessoas, apenas aos seus comportamentos e à sua indiferença. Meu desconforto é moral, causado pela situação, pela ligação direta da riqueza, da ostentação e do luxo com a criação da miséria absoluta, da sabotagem na educação, na informação, nos serviços públicos, com a falta de sentido na vida das pessoas – da miséria à pobreza e às classes intermediárias.
Estes são meus sentimentos, meus pensamentos e minha visão de mundo. Não pretendo declarar verdades, nem tenho a expectativa de encontrá-los em outras pessoas. Se me desse ao trabalho e à arrogância de condenar comportamentos e valores dos quais discordo, viveria em conflitos pessoais inúteis, alimentaria sentimentos desagradáveis e nocivos – e não teria tempo nem espírito pra fazer os trabalhos que gosto e dão sentido à minha vida.
Não recomendo nem pretendo voltar à situação de miséria onde, na verdade, nunca me senti. Eu pesquisava, aprendia, observava e absorvia o máximo possível. Desenvolvi afeto e solidariedade com aquelas pessoas em situação injusta. Não posso gostar ou desejar luxos, excessos, ostentações e desperdícios. Na minha visão, são expressões de grosseria moral e espiritual, de insensibilidade, de egoísmo, indiferença, enfim, de desumanidade, disfarçada com requintes de sofisticação. Para olhos mais solidários, de quem se sente parte do grande grupo humano ou além, da coletividade planetária, tais finuras e sofisticações são apenas uma capa frágil da sua real situação moral, de um ridículo inevitável e notória nocividade para a sociedade como um todo. Não se trata de condenar ninguém, mas de perceber com olhos próprios e refletir sobre o que se vê. E como e em nome de quê se vive.
Sem falar que, como disse Da vinci: a simplicidade é o que há de mais sofisticado (e prazeroso, completaria eu).
ResponderExcluirUm abraço Eduardo, postagens sempre muito úteis e informativas. Aprendo muito contigo. Um abraço, irmao.
Na mesma medida em que nossa mente ampliar o horizonte de percepção das múltiplas realidades, maiores e mais profundas serão as rupturas que nós teremos de fazer com pessoas, situações e pensamentos que representam uma significativa parte de nosso passado. Tudo em nome da conscientização.
ResponderExcluirA ruptura de que falo, não é no sentido exatamente de desligamento ou distanciamento físico, mas, moral principalmente.
Obrigada por essa troca boa que sempre há em seu blog.
Abs
Antonio Dias(de Salvador,Ba.0
ResponderExcluirVejo em Você meu irmão ,um homem que sabe onde esta , o que esta fazendo e porque esta fazendo , fico feliz em saber que há em você a honestidade e a igualdade que deveria ter em todos nós .
OBRIGADO pela sua coragem, honestidade e integridade... Compartilhando seus sentimentos você me inspira a "Ser" uma pessoa melhor.
ResponderExcluirUm grande abraço Eduardo! :D
Para mim esse é seu melhor texto.
ResponderExcluirAinda que discorde, acho que você deveria escrever um livro. Eu acredito, talvez inocentemente, que a disseminação das idéias podem ajudar a melhorar o mundo. Torná-lo mais justo. Por isso acho que deveria escrever, publicar em maior escala.
Outra coisa: imagino que não é nem um pouco do seu interesse, mas seria muito massa a história da filosofia incluir um brasileiro entre os grandes.
Abraço, gênio!
"Não se trata de condenar ninguém, mas de perceber com olhos próprios e refletir sobre o que se vê."
ResponderExcluirTalvez eu nunca tivesse refletido e visto as coisas como estou fazendo agora. Coisas que agora parecem óbvias sempre passavam despercebidas. É como se eu já tivesse tudo isso na mente, um certo incômodo em relação a todos esses falsos valores, mas eram ideias desorganizadas que não faziam muito sentido.
À medida que vou lendo esses textos vou conseguindo dar uma direção aos pensamentos e levar a reflexão a uma profundidade onde antes ela não chegava.
Era desse direcionamento que eu precisava e continuo aprimorando cada vez mais essa capacidade de refletir. Há ainda muitas pessoas que precisam só de um empurrãozinho para conseguirem refletir sobre o que veem. A alienação é firme mas ao mesmo tempo frágil.
Um abraço.
A estratégia de alienação é constante, massiva, profunda, mas como você disse, é frágil e não se sustenta quando se observa a realidade, com um mínimo de independência. A realidade contradiz de forma completa a "realidade" apresentada pela mídia, secundada pelos condicionados que a repetem compulsivamente. A maioria "não quer" ver a realidade, na ilusão de que é "mais cômodo" não ver. E dá-lhe angústia, falta de sentido e frustração.
ResponderExcluirMaleável sem ser mole,
ResponderExcluirFirme sem ser rígido,
Sutil sem ser passivo,
Preciso sem ser dominante.
Vagando pelas fenestras,
Que no devir a vida abre.
Divagando quando inexistentes,
Devagar, paciente.
Dosando a atenção
Entre o externo e o interno,
Aprendendo quando agir,
Se embebedando de observar.
Não sei com que intenção se inventou esse Estado de bem-estar que mata o que temos de humanos, transforma o sangue em ar, um "sim" em um "talvez", atuar é uma blasfemia contra esse eterno estado letárgico de sentirse bem, pensar dói e nem falar de reagir...
ResponderExcluirAcredito que as intenções foram as mais primárias, egoístas ao extremo, de controle, privilégios e usufruto. Coisa pequena, mesmo, a ser superada em nossa humanidade. Porque não podemos culpar os opressores. Eles não existiriam sem nossa submissão, sem nosso consentimento - consciente ou, no mais das vezes, inconsciente. Trabalhando em nós mesmos, trabalhamos no mundo. Há muitas maneiras de se sentir bem. Das mais grosseiras às mais sublimes, em infinitas nuances. Depende do nível de consciência.
ResponderExcluirNo dia passado, era aniversário do meu pai.
ResponderExcluirPodemos correr mundo, nossas raízes mais profundas sempre nos tocam, mesmo quando já pertencem a outro plano. No meu caso, é o dia 12 de setembro que me faz ter um pensamento especial para o meu pai. E, sempre, uma multitude de sentimentos...
ResponderExcluirMe identifico muito com sua forma de pensar Eduardo, e gosto muito da sua arte também. Linkei teu site no meu blog, ok? http://brittoartgallery.blogspot.com/
ResponderExcluirAbraços!
Queria ser como voce Eduardo, te admiro muito
ResponderExcluirSalve, Eduardo!
ResponderExcluirSeu texto me remete ao "Canto de companheiro em tempo de cuidados", de Tiago de Mello. Um trecho:
(...)Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
Porque tudo é chegar, meu companheiro
desconhecido, meu irmão que plantas
o grão no escuro e nasce a claridão.(...)
Grande abraço.
Se pudesse fazer um desejo, profundo, pediria que todas pessoas do mundo tivessem acesso ao seu material. E que lessem interessadas, observando cada pequena significação, cada encontrar de palavras, que, no seu caso, são sempre tão esclarecedoras!
ResponderExcluirPara os que pensam, te ler significa organizar ideias e adquirir argumentos. Nesse mundo tão confuso, em que os seres pensantes são tantas vezes repelidos, visitar o blog é uma forma de continuar acreditando.
Particularmente, sou se fã!
Obrigado pelos ensinamentos, meu nobre...
...gratidão eterna conhecer você !!!
ResponderExcluirbig bjo
Fã2
Seu texto, emocionante, me remeteu, também, a Gandhi. Então, é isso só. Valeu, Eduardo!
ResponderExcluirA regra de ouro é se recusar resolutamente a ter o que milhões não podem ter. A capacidade de recusar não se apresentará a nós de repente. O primeiro passo é cultivar a atitude mental de não ter posses ou recursos negados a milhões; o segundo, reorganizar nossas vidas de acordo com essa mentalidade o quanto antes.
O espírito da democracia não é algo mecânico a ser ajustado pela abolição das formas. Ele requer mudança no coração.
Livro: A sabedoria de Gandhi - Textos selecionados por Richard Attenborough - Editora Sextante
Oi! O que você pensa sobre o Projeto Vênus do arquiteto Jacques Fresco, que pede o fim do sistema monetário no mundo e uma economia baseada nos recursos naturais do planeta?
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=tSqauCFDRs0
Outro vídeo dele do ano de 1974
http://www.youtube.com/watch?v=NQvsvgTJdHU&feature=related
Texto emocionante, profundo e simples... realmente aterrador!!!! Você bate fundo no nosso egoísmo, comodismo e indiferença. Dói ler, mas faz bem a alma. Espero poder agir de acordo com tais ideais.
ResponderExcluirBravo!
ResponderExcluirBela arte com as palavras!
Que viva a verdadeira arte
e os raros Reflexivos xD
ps: tomei a liberdade e rebloguei seu texto no meu blog, com os devidos créditos a vc xD
ResponderExcluirhttp://mutamos.blogspot.com/
Parabéns pelo brilhante texto, Edu. Tomei a liberdade de republicar no meu blog.
ResponderExcluirAbraços,
Luiz.