terça-feira, 15 de novembro de 2011

O nascimento de Adhara


            Praia de Itapoã, domingo de sol, eu vendia meus brochinhos, passando de mesa em mesa, na areia, enquanto Brisa e sua mãe, grávida de seis ou sete meses, não sabíamos ao certo, esperavam sob uma cobertura de palha, na sombra. Estivemos separados durante a gravidez, havia dúvidas quanto à concepção exata. Em cada volta que eu dava, passava onde elas estavam, com um coco, uma tapioca, um milho, água.
            Eram por volta de três da tarde, quando ela me disse estar sentindo os sintomas do parto, ou parecido. Fiquei alerta, torcendo pra ser alarme falso, mas não saí de perto, rodando pelas mesas mais próximas, de onde podia vê-las. Em minutos, ela teve certeza e me falou – “é igual ao que senti no nascimento de Brisa”. Foi o código.
            Olhei em volta. Na rua, em frente a um bar, havia um táxi sem ninguém dentro, com os vidros abertos. Entrei no bar, falando alto em direção a todo mundo, “de quem é esse táxi aí na porta?” O taxista se apresentou na hora, “é meu, por quê?” Ele estava numa mesa, bebendo com quatro mulheres. Eu fui direto, “minha mulher tá aí fora, grávida de sete meses e com as dores do parto, precisamos ir para um hospital e não temos grana pra pagar”. Ele fez uma expressão de desagrado, “porra, acabei de largar o serviço...” enquanto as quatro mulheres assumiam, “que nada, vai levar sim”, e foram levantando, saindo com ele do bar, meio contrafeito, mas sorridente com as brincadeiras das meninas. Fomos até onde estavam as duas, as mulheres as rodearam e levaram pro carro, enquanto eu pegava as bolsas e mochila.
            Fomos ao hospital mais próximo dali, Roberto Santos, estava sendo trocado o plantão médico. Ela foi deitada numa cama, na emergência, esperando. O médico chegou, sentou à mesa próxima das camas e começou a preencher formulários. Ela falou com ele, estava sentindo dor e medo, pediu pra ele dar logo uma olhada. O doutor foi ríspido, “espere sua vez de ser atendida”. Ela insistiu, estava com muita dor, que ele olhasse agora, por favor. “Já disse pra esperar!”, ele falou, irritado. Eu esperava no balcão, de onde estava podia ver, embora não pudesse ouvir claramente, apenas percebi que o cara expunha desagrado na fisionomia. De repente, levantou e saiu da sala, entrando na área administrativa de atendimento, perto de onde eu estava. Atrás dele, vinha ela, segurando a barriga. No rosto, a conhecida expressão de raiva, prestes a detonar. “Escuta aqui, tô com dor de parto, com sete meses e você não vai me atender, não?” Ele olhou com superioridade, a cara zangada, e quase gritou, “já mandei ficar deitada!” Acostumado à sujeição da maioria, inferiorizada diante do “superior”, ele não percebeu que ali o papo era outro. O tapa rodado estalou na cara do médico e soou no ambiente, pra meu susto e, maior ainda, dele, que se paralisou o suficiente pra tomar outro, no caminho de retorno da mão, dessa vez com os nós dos dedos. Eu não podia aprovar aquilo, mas o momento exigia nossa velha união contra os males do mundo.
            Temi a reação, pois o médico era grande, e pulei o balcão. Caí atrás dela, já com um alicate na mão abaixada e a outra erguida e espalmada, “não reage, não”, disse a ele, olhando em volta, prevenido, tratando de colocar a parede às minhas costas. Ele estava de olhos arregalados, parado ainda, eu já segurando a raivosa. “Fui agredido”, ele balbuciou. Chamaram a polícia, as mulheres vieram pra proteger, ela, nervosa ainda, ameaçou o policial (“não se mete não, que cê apanha também!”), que ficou sem saber o que fazer e, quando as mulheres a cercaram e a foram levando, “vamos pra outro hospital, melhor que esse”, ouvi o murmúrio do PM, “em mim a senhora não pode bater, eu sou um policial...” Saí meio rindo do hospital, meio revoltado, embora não surpreso com mais essa exibição de falta de respeito social.
            Chegamos ao Tsila Balbino, na Estrada da Rainha, um hospital universitário. O carro ia parando e eu já desci e entrei na recepção, impondo “aí, tô com minha mulher grávida de sete meses entrando em trabalho de parto e vou querer respeito!” Ela vinha um pouco mais atrás, amparada pelas quatro, o motorista coçando a cabeça. Brisa estava todo o tempo colada comigo, onde eu ia ela acompanhava, sem falar nada, olhos bem abertos, curiosa com tudo. Uma enfermeira passou por mim, na direção do grupo, e disse, “não atrapalha, não, que quem precisa de ajuda aqui é ela, não você”. Parei na hora, constrangido e com alívio. Ah, pensei, aqui tem gente.
            A grávida foi levada pra dentro, o táxi foi embora com as mulheres e eu fiquei com Brisa, esperando. Logo, a médica veio falar comigo, era um alarme falso, um quase parto, devido, ela achava, aos esforços da vida que a gente levava. Bastava que ela ficasse em repouso e a criança não nasceria, para aumentar um pouco o tamanho e a resistência, até os nove meses da gestação. “Então se ela ficar, não nasce agora”, e a médica confirmou.
            Fui embora com Brisa, pra voltar dois dias depois, o prazo estipulado pela médica. Morava fora da cidade, na aldeia de Arembepe, 50 km ao norte de Salvador. Chegamos em casa noite alta, caminhamos os dois quilômetros de areia, na duna que corria ao longo da praia, da vila até a aldeia. Dois dias depois, nascia Adhara, morena, cabelos pretos, olhos escuros, de sete meses, com um quilo e oitocentos, pequena de caber numa única mão. Forte, foi pra casa com dois dias, sem ter precisado de incubadeira nem nada. “Só acredito que é de sete meses por causa do tamanho e do peso, porque todos os órgãos funcionam como se fosse uma criança de nove”, disse o médico do dia.
            E lá fomos nós, pra nossa casinha de palha, na aldeia de Arembepe, isolada pelas areias do caminho. Naquela noite, houve fogueira e dança, saxofone, violão e atabaque. O batizado de Adhara foi feito debaixo de uma lua cheia, o grupo (umas quinze a vinte pessoas) se uniu no pedido de luz na criação daquela nova vida, mãos dadas em corrente, enquanto eu desembrulhava aquele ser minúsculo e a levantava, diante do fogo, na direção da Lua, oferecendo a criança ao mundo e rogando a capacidade de educá-la para ser uma boa pessoa na coletividade humana. Houve um silêncio respeitoso, naquele momento, apenas o crepitar do fogo acompanhou o ritual na aldeia cheia de coqueiros, até o vento parou por um instante.
             A festa acabou por volta das três da manhã. Adhara, amamentada e seca, dormia a sono, numa caixa de papelão bem forrada e limpa, com buracos pra ventilação e coberta com um mosquiteiro. A festa tinha continuado, com vinho, coco, peixe e tudo o mais. Às cinco, a polícia federal invadia a aldeia, revistando todas as casas, como faziam uma ou duas vezes por ano. Mas isso já é uma outra história.
Adhara aos oito anos (final de 1991), em viagem a Visconde de Mauá, com Victor , o peruano que morou quase um ano em minha casa,  na região do cerrado mineiro. Pintura a óleo sobre tela, de 1998.

7 comentários:

  1. Esse monte de histórias dá um livro legal, hein...conta mais!

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  2. Eita Eduardo, o que dizer diante de uma história dessas ?
    Viva Adhara, como o Daniel acima disse ?
    Viva, mas ainda é pouco.
    Viva Adhara e viva a você Eduardo, que nos ensina a cada dia aqui neste espaço, nas suas obras e nas suas mensagens, um lado mais humano e melhor da vida.

    forte abraço,

    José Rosa.

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  3. Voce nao contou de qndo, ainda no hospital, eu levantei a cabeça e te olhei! :)
    Lembro de tudo!!!! :)

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  4. "...oferecendo a criança ao mundo e rogando a capacidade de educá-la para ser uma boa pessoa na coletividade humana."

    Não importa quão feliz estejamos sendo e sim o quão útil estejamos sendo.

    Que boa sorte foi ter encontrado seu blog, mestre! Que maravilha de ser há em seu corpo!

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  5. Melhor dizendo, que a coletividade tenha espaço em nossos objetivos de vida!
    Que nós busquemos não uma felicidade egoísta, mas sermos úteis à coletividade!

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