sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Magnus e as mangas - na beira da Rio-Santos -

     “Minha avó era analfabeta”, disse Magnus, explicando a perda das terras. Ela havia nascido ali, o pai fora escravo e recebeu aquelas terras do ex-dono, com a permissão de ficar ali com sua família e suas tradições. Os filhos cresceram analfabetos, todos, acostumados com o trato da terra, dos plantios e das criações. E fizeram, por sua vez, suas famílias, partiram uns, ficaram outros. Não havia escolas, muito menos para negros.  Só os netos puderam ir à escola, mesmo assim de péssima qualidade.
     Um dia chegaram caminhões e máquinas, cortaram a terra com uma estrada, derrubaram árvores e outras plantas, avisaram a avó que a área tinha dono, uma empresa construtora. “Ela era analfabeta, não sabia se defender”. E assim, o poder da empresa se impôs e a terra foi reduzida. E seria mais ainda, se filhos e netos não se unissem na defesa do que sobrou, um oásis de árvores e algumas poucas casas em meio à devastação causada pela construção da estrada, por um lado, e pelo trevo rodoviário que foi construído sobre um brejo, do outro lado, quase encostando nas casas, e que destruiu um pequeno rio “que dava até jacaré”. O último jacaré apareceu depois da construção do trevo, perdido, e foi levado pra um zoológico.
     Quando vimos aquele oásis, da estrada por onde vínhamos sob um sol de arrebentar os miolos, parecia mesmo um foco de resistência contra o deserto de capim, terra, poeira e pedras que o circundava. Paramos pra pedir água e conhecemos Magnus. Ele nos contou a história.
     Homens da prefeitura estiveram ali várias vezes, pressionaram, ameaçaram com a perda da terra, levaram a família pra conhecer o lugar pra onde queriam que fossem, um apartamento em Campo Grande, num desses bairros "populares" infernais. De longe, os prédios parecem arrumadinhos, coloridos e geometricamente arrumados. De perto, são cubículos onde se apertam as famílias, coladas umas às outras por paredes finas, com problemas de água e esgoto, falta de transportes, de escolas, de postos de saúde e comércio, enfim, o abandono que é oferecido invariavelmente pelo Estado à população mais pobre. Como ficar num lugar desse? Sem espaço, sem quintal, sem árvores, ventos ou passarinhos, “a vó ia ser a primeira a morrer, de tristeza”. Fincaram pé e não saíram.
     O administrador regional veio em pessoa, com o aparato de intimidação costumeiro, cheio de arrogância, exigindo, ameaçando. “Minha tia chamou ele de safado e botou pra correr. Ele foi embora zangado, cheio de ameaças...”
     Depois começaram a derrubar árvores. Chegavam na caminhonete da prefeitura, com motosserras, cortavam e iam embora. “Não dava tempo de fazer nada, era só ir lá pra ver o tronco no chão”. Aí arrumaram uma câmera e ficaram de sobreaviso, seguindo o conselho do patrão de uma das tias. Alguém sempre ficava com a avó e, quando a caminhonete parava, corria lá com a câmera e eles não cortavam. Eles não saberiam o que fazer com as fotos, mas os funcionários da prefeitura sim, por isso deixavam de cortar e acabaram desistindo, não voltaram mais, até aquele dia.
     A história estava nesse ponto, quando passamos de bicicleta e paramos pra pedir água. Depois de esvaziarmos duas garrafas grandes, Magnus nos deu mais uma pra levarmos, congelada. Perguntei se ele entrava na internet e, diante da confirmação, passei pra ele o endereço do Núcleo Piratininga de Comunicação, coordenado por Claudia Santiago e Vito Gianotti. “É uma rapaziada solidária, que trabalha denunciando esses crimes que o sistema comete todo dia contra a população mais pobre, pra beneficiar empresas. Eles devem saber o que cês podem fazer pra se defender.”
     Antes de sairmos pra estrada, ele foi ao fundo de sua pequena floresta e buscou, pra nos oferecer, um dos tesouros defendidos da destruição – mangas carlotinhas, maduras, doces e fresquinhas -, colocou num pacote e nos deu, com o maior dos sorrisos. 

6 comentários:

  1. É realmente desconfortável, pois esta elite se utilizando dos veículos da mídia em geral, "amparados" pela Constituição Federal dizem em alto e bom som que todos somos iguais, entretanto, nos oprime de maneira velada e em muitos dos casos escancaradamente, como fora citado no texto acima.
    Mas o que mais me deixa frustrado é observar ao meu redor e ver pessoas como nós, com histórias semelhante a nossa, vindo de um mesmo bairro, sofrendo das "mesmas" dificuldades com relação a saúde, educação, moradia, emprego, etc... Passando a incorporar e reproduzir os discursos tacanhos da mídia. Onde um Nike no pé é mais valioso que um livro na mente.

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    1. Não são pessoas como nós, Mandinho. Poucas pessoas encontram dentro de si a força de resistir a tamanhas pressões, ensino ausente ou viciado, mídia esmagadora, dominante, impondo valores e desejos, através de uma publicidade criminosa e de recursos de psicologia da mente e do comportamento, condicionamentos sub-liminares que levam as pessoas a se cobrarem os condicionamentos impostos e discriminarem os que não vão na manada. Os desejos compulsivos de consumo, determinando até o valor das pessoas, sentimentos de superioridade e inferioridade, o egoísmo, a competitividade, a desconfiança, a busca de facilidades e privilégios são estrategicamente produzidos e inoculados nas coletividades. O trabalho de resistência começa dentro de si mesmo e continua, emanando para a coletividade, a partir dos insatisfeitos, os que andam angustiados e se questionando os valores e os objetivos. Os que estão na beira da atitude, mas ainda não a tomaram. É preciso plantar em terra fértil, e há muita por aí.

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  2. Um naique no pé, ou o uso de qualquer outra dessas marcas que exploram o trabalho humano de forma desumana, exercem um enorme poder de pressão sobre governos, financiam políticos e leis que favorecem seus lucros, usam a mídia e a publicidade massiva pra mentir que fazem tudo certo e por amor às pessoas, sem compromisso social, moral ou qualquer outro que não seja com seus próprios ganhos extorsivos deve ser vergonhoso a qualquer embrião de consciência. Dói ver marcas sendo usadas por pessoas que se dizem revolucionárias ou que se pretendem contestadoras do sistema.

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  3. Muito bom ter teus textos de novo, Eduardo.

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  4. Excelente texto Eduardo. O final é tão delicioso quanto a manga que você ganhou. " um Nike no pé é mais valioso que um livro na mente", um bom resumo do Mandinho, nossa sociedade está no limite de revisão de seus valores, ou revisa ou revisa, não dá para ficar como está. E essa 'onda' de brasileiro nos EUA ? A classe mÉRdia caindo nessa... dá pena. Obama nos chamando com a dispensa de vistos e outros 'badulaques'. Volta a frase do Mandinho, expandida pela sua "Um naique no pé, ou o uso de qualquer outra dessas marcas que exploram o trabalho humano é mais valioso que um livro na mente".

    abs,

    José Rosa.

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  5. Senti saudades. Gostaria de ter vc em meu cotidiano.

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