terça-feira, 5 de junho de 2012

Não quero ser "feliz"



       

         A voz se fazia ouvir no avião pra Juazeiro do Norte. Repetia, quero ser feliz, tenho o direito de ser feliz, insistia na afirmação idiota. Fui ficando impaciente, deu vontade de interferir, perguntar que felicidade era aquela. Prudentemente, puxei meu caderno e minha caneta e passei a refletir por escrito o que causaria, provavelmente, mal estar, constrangimento e, talvez, alguma grosseria.
         Impõe-se a necessidade de ser feliz. “Todo mundo” corre atrás da felicidade, até leis consagram o direito à felicidade ou a busca permanente dessa condição. Eu olho em volta e pergunto, como assim? Vejo crianças, velhos, homens, mulheres em estado de barbárie, de miséria, comendo lixo, ao desabrigo, abandonados da sociedade. Como posso pensar em ser feliz no meio disso? Esquecer? Não quero e não dá.
         Não pretendo a felicidade do egoísmo, da ignorância, da ingenuidade, da maldade ou da indiferença. Pra mim, felicidade é uma sociedade sem vítimas, sem famintos, sem ignorância, sem desabrigados, sem exploração e com igualdade de direitos e oportunidades. Impossível imaginar a felicidade em sua forma plena. Nem me interessa.
         Satisfação, encontro no trabalho por uma sociedade melhorzinha, inconformado com essa falcatrua generalizada, essa ditadura econômica de poucos que mandam, gerenciada por falsos governantes e travestida com um cenário democracilóide, que se desmancha ao olhar mais atento, ao primeiro golpe de consciência. Luxos de um lado pra poucos, agonia no meio, pobreza e miséria pra grande maioria. E predomínio privado sobre o público.
         Eu tive e teria vergonha de usufruir dos privilégios da riqueza num mundo tão cheio de miséria. Ainda que houvesse um só miserável, abandonado pela sociedade, e toda riqueza seria vergonhosa. Ter orgulho de luxos apenas demonstra pequeneza de espírito. Os anestésicos de consciência, do tipo “sempre foi assim”, “não se pode fazer nada” e outros não funcionam comigo. Não posso olhar pro outro lado e fingir que não tenho nada com isso, porque tenho, sim. Azar meu, dirão alguns. E eu penso que é sorte. Preserva minha humanidade. Os mais superficiais verão nisso a apologia da infelicidade. Vão de um extremo ao outro sem enxergar as infinitas nuances, as inúmeras variações e combinações de sentimentos.
         Há momentos em que a tristeza é necessária, outros em que a alegria é fundamental. Situações que impõem a necessidade da calma, ou que a raiva nos impulsiona ao que precisa ser feito. Momentos de ternura, sentimentos de acolhimento, ou de repulsa, de compreensão ou de intolerância. O medo pode nos fazer cuidadosos, evitando riscos desnecessários, ou pode nos acovardar e nos impedir – ou impelir – ações que vão resultar, muitas vezes, em conflitos de consciência e vergonha.
         São tantos e tantos sentimentos – variando em significados, causas e conseqüências –, infinitas possibilidades de combinações entre eles, que a própria expressão ou a intenção de “ser feliz” toma um aspecto pobre, superficial e primário. Uma pretensão infantil e egoísta, cega à realidade de sermos todos o mesmo grupo, todos a mesma imensa família humana e responsáveis uns pelos outros, assumindo isso ou não, consciente ou inconscientemente.
         Não sinto atração por felicidade, não pretendo ser feliz enquanto tantos sofrem. Muitos tipos de felicidade nesse mundo torto chegam a depender da infelicidade de outros. A mim basta a satisfação de viver descontente com a estrutura social que me cerca e dedicar meu trabalho – e minha vida – à contra-corrente dos valores vigentes. Ao levantamento de reflexões ligadas à prática cotidiana, que é o que faz a realidade. Ao questionamento dos valores implantados, dos comportamentos induzidos que nos levam ao sofrimento inútil e ao evidente desequilíbrio social, entre o luxo pouco e a miséria geral.
           Acredito que o principal trabalho é interno, precisa começar dentro de cada um. Assim, meu trabalho maior é dentro de mim mesmo, metabolizando, corrigindo, atentando, refletindo, aprendendo. O trabalho externo, os desenhos, as pinturas, pelo menos a maior parte dele, é extravasamento do trabalho interno, é a exposição do que rola dentro, resultado de reflexões, de vivências, de escolha de temas, conforme a mim parece necessário, possível e assimilável. Quando vejo pessoas refletindo com base no meu trabalho, eis aí minha "felicidade", apenas participar do processo e ter esse sentido na vida. Felicidade maior é pra um mundo melhor e, se não o temos, devemos construí-lo. Sempre a partir de nós mesmos, reconhecendo erros, mudando atitudes, observando a si mesmo, desejando melhorar, sempre. Absurda a idéia de que não muda, é muita miopia, não se consegue olhar ao longe. Está tudo em mudança, até os minerais. Com o tempo, emanamos as mudanças que fizemos em nós mesmos. Aí podemos servir ao mundo, com humildade e sendo a mudança, antes de tudo.

11 comentários:

  1. Olá,

    Para quem diz que dinheiro não é sinônimo de felicidade, provavelmente estava tendo como base um cidadão honesto que abdicou de uma vida livre, trabalhou muito para no final, descobrir que sua riqueza não daria de volta o tempo perdido, tempo que não tinha para levar os filhos para a escola, de acompanhá-los no time de futebol, de abraçar os seus pais.
    Porém, existem diversas pessoas hoje felizes por causa deste sistema chamado capitalismo, onde não fazem nada para melhorar a vida do próximo, nada mesmo, e se sentem felizes, porque toda riqueza adquirida, não fora através do suor de seus rostos.

    Posso separar duas classes, pastores e políticos.

    Fim.

    Evaldo Wolkers.

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    1. CONCORDO. POLITICOS E PASTORES, CLARO, COM RARAS EXCEÇÕES.

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  2. Felicidade é um momento e não um sentimento duradouro. Esta busca desenfreada da felicidade causa imensa frustação, e o sistema sabe muito bem trabalhar com isso, vendendo tudo o que lhe interessa como felicidade. Vejo pessoas buscando "felicidade" ao gastarem em um shopping center, comprando produtos que não precisam ou que já tem, só que com outra "cara". A felicidade é um breve momento, depois de fazermos o que gostamos. Mas a tristeza é outro momento, tão importante quanto a felicidade. As melhores coisas que já fiz, as melhores solução para meus problemas retirei da tristeza, pois quando estamos felizes não precisamos quebrar a cabeça, pois não estamos em dificuldade.
    O que precisamos é parar com esta busca absurda e projetada pela mídia. Só assim teremos momentos realmente felizes!

    Ótimo texto Eduardo. Espero passar aqui mais vezes.

    Grande Abraço
    Arnaldo Bertoni

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  3. Nossa, quanta semelhança..
    Me fizeste lembrar de mim mesmo. Nunca acreditei na felicidade, nunca achei que fosse possível alcançar tal coisa, pelo menos desde o inicio da minha adolescência. Muitos irão buscar por ela a vida inteira e alguns até encontram, mas até lá nem se sabe se é felicidade ou conformidade. Eu acho que felicidade é algo muito pouco duradouro, que não deveria merecer a atenção que recebe. Mas, não acreditar na felicidade não quer dizer que nunca se possa alcançá-la. Sei que não é isso que você quis passar com o artigo, mas achei interessante deixar o meu ponto de vista.

    Achei muito bom você ter colocado que a felicidade se tornou algo primário e particular de cada um.

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  4. Eduardo, mais uma vez, parabéns! Excelentes palavras, muito bem colocadas - como sempre, aliás.
    Já compartilhei no face.
    Um grande abraço!
    Maria do Rocio Macedo
    Maria-Estrela Lunar Amarela, no face.

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  5. Excelente texto, Eduardo!

    Infelizmente, a maioria das pessoas pensa que a felicidade está nas coisas materiais, no consumismo. A felicidade está dentro de nós, na ajuda ao próximo, em sentir-nos bem connosco e com o nosso semelhante, na entreajuda. A felicidade é feita de pequenos momentos!

    Obrigado por nos fazer refletir através das tuas reflexões!

    Alma

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  6. Tem uma musiquinha que diz: é impossível ser feliz sozinho (João Gilberto, aquele ignorado e odiado aqui na Bahia...). Reflete o que você diz nesse post: é impossível ser feliz vendo o outro sofrer. Me permita mais uma vez 'espelhar' um post seu no ZEducando. Abraços, José Rosa.

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  7. Acho que era por isso que eu vivia dizendo para uns amigos que não acreditava na felicidade rs, mas não sabia porque (não de forma depressiva) mas realmente o modelo de sociedade atual em que vivemos há tempos é bizarro.

    Agora essa parte da mudança é realmente uma coisa díficil de se trabalhar nas pessoas, o que eu mais ouço é "é tradição, a pessoa aprendeu assim" ou mesmo "é a cultura dela(e)", quando se trata de um assunto de barbárie. E isso para mim é inaceitável, se somos seres humanos, logo temos cerébro e podemos pensar logo podemos mudar atraves de reflexão.

    Temos que ser perseverantes na mudança e acima de tudo naquilo que acreditamos...

    Valeu Eduardo ... Obrigado mais uma vez por nos rechear de conteudo com seus textos!

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. É um bom texto, que te faz pensar de forma inteligível e simples, tornando acessível a compreensão e inibindo qualquer dose de redundância, pois concordo que cada indivíduo independentemente de seu credo cosmológico, pode tornar o seu mundo melhor e consequentemente o mundo dos que estão a sua volta, possibilitando a adesão da felicidade não por cota,ou seja, por mérito, mas que seja algo inerente de cada indivíduo, autor da construção de seus elementos sentimentais, uma vez que todos são responsável pelo fato causador deste estado de "espírito" e isto não é um trabalho apenas de um dado momento, mas um trabalho que exigi constante vigilância. endereço;queirozmello@hotmail.com

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  10. Me li no seu texto, vivo na contra-mão da felicidade, sinto vergonha alheia e interna por fazer parte de sociedade omissa e calada, gostaria muito de poder fazer algo mais, não me sinto completa fazendo apenas para quem vive sob o meu teto.. apesar de poucos recursos, gostaria de poder fazer algo, creio que isso poderia tirar a angustia que sinto, mediante a vergonha, e tristeza que sinto todos os dias com tanta maldade tanto egoismo nas atitudes humanas, sinto como uma facada no peito quando leio ou ouço o que esta acontecendo na politica, e no mundo... talvez não saiba me expressar bem... Mas me sinto melhor em saber que não sou a única a sentir essa angustia..
    Parabéns e obrigada!

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