Filho de coronel
Setembro de 1980. Bairro de Laranjeiras, ao norte de
Vitória, Espírito Santo. O vinho tinha acabado, Adney e eu saímos pra procurar
mais. Era noite alta, talvez madrugada, a rua estava deserta. Encontramos um
bar aberto numa rua escura, iluminado por luz fraca, uma mesa na calçada, dois
pinguços no balcão. Resolvemos tomar uma cerveja antes de levar o vinho,
sentamos ali fora. Tomávamos a segunda quando três vultos dobram a esquina,
envoltos na escuridão, e se aproximam. Dois estão de farda da polícia militar,
um está em roupas civis, só percebemos quando eles chegaram perto, porque os
peemes estavam sem os bonés e no escuro os uniformes não apareciam. Eles vinham
pelo meio da rua, nos olhando ostensivamente e andando em direção à porta do
bar. Nós tínhamos os olhos vermelhos, pálpebras caídas, calças arregaçadas,
descalços, túnicas coloridas, Adney trazia uma faixa na cabeça, embora os
cabelos encaracolados e pretos não fossem tão compridos – os meus eram mais
compridos, até perto dos ombros.
O paisano, que parecia ser o chefe, parou frente a nós, cara
zangada, olhou cada um nos olhos, passeou os olhos pelas nossas figuras, dos pés às
cabeças, e concluiu em voz baixa mas clara, “esses caras têm maconha”. E
levantou a voz, agressivamente, “documento dos dois!” Virou pros soldados, “dá
uma geral nesses caras!”
Começaram pelo Adney que, nervoso, começou a falar sem
parar, “que isso, pelamordedeus, sou funcionário do governo” e era mesmo,
funcionário do Banco do Brasil, apesar do aspecto e das circunstâncias.
Enquanto os caras ignoravam o falatório e desdobravam as pernas das calças dele,
procurando uma bagana ou qualquer coisa, ele explicava que estávamos em casa de
amigos, saíramos pra comprar um vinho porque acabou, ele nunca tinha sido
preso, era um cidadão de bem e tal e coisa, e o delegado (um dos soldados
chamou assim) olhava os documentos. Quando viu minha carteira expedida pelo
exército, franziu o cenho e prestou atenção. Abaixo do meu nome havia o nome e o posto do meu pai. “Cê é filho de coronel?”,
perguntou, me olhando. Os soldados tomaram um choque, as coisas dos bolsos do
meu amigo já estavam em cima da mesa, chaves, moedas, notas amarfanhadas, a geral parou na mesma hora, eu não havia
dito uma única palavra, confirmei com a cabeça. De repente o delegado pareceu ouvir as falas do Adney, que tinha se calado com a mudança de atitude dos policiais. E passou a acalmá-lo, “não precisa
se preocupar, isso aqui é uma ação de rotina, pra sua segurança mesmo”, os
soldados parados, cada um olhando pra um lado diferente, pareciam não saber onde meter as mãos. A cena ficou
engraçada, contive um sorriso, o chefe continuava, “tá tudo certo, já vimos que
vocês são gente boa, podem ficar sossegados, qualquer coisa nós estamos por
aí...” Dei boa noite e desejei bom serviço, até pra deixar sair o sorriso que
eu tinha por dentro. Pra não dizer que não falei nada.
E eles foram embora. Nós terminamos a cerveja, pegamos as
garrafas de vinho e voltamos pra esbórnia. Com uma historinha pra contar e rir
com a rapaziada, ainda mais com o apavoramento do Adney e a metralhadora de
palavras. Inúteis, todas. O que valeu foi a carteirinha, que perdi com todos os
documentos em Itabuna, dois anos depois, pra poder ter experiências mais...
digamos... profundas com o sistema de segurança pública. Mas isso já são outras
histórias.
Eduardo
Marinho - 08.01.13
rsrs... Boa!!!
ResponderExcluirPô... naquele contexto, você acha que estavam errados? certos? BRASIL ACIMA DE TUDO!
ResponderExcluirReduzir as análises a 'certo' e 'errado' é perder um monte de nuances, graduações de responsabilidades, sintomas pessoais e do sistema social...
ExcluirUma coisa é analisar, outra é julgar. Acho que esta última é uma arrogância burra que nos impede o o entendimento, o crescimento interno.
Gosto demais de suas crônicas, Eduardo. Como você faz para manter direitos autorais? Só coloca no blog mesmo? Escrevo também, e às vezes sinto receio de publicar na internet. Não por querer ganhar alguma coisa com isso, talvez por ego, mas mais porque gostaria que a pessoa que lesse algo que escrevi, soubesse onde procurar mais, se rolou identificação.
ResponderExcluirForte abraço,
Gabriel Guerreiro
Não penso nisso, cumpade, acho que não tenho direitos autorais sobre muita coisa. Vou produzindo pelo mundo, daqui a pouco vou morrer, mesmo, tô preocupado com minha atuação na vida. O que faço e deixo por aí, pra minha família humana. O mau caráter faz seu plantio e sua colheita, a vida se encarrega disso, não preciso me preocupar.
ResponderExcluirParabéns pelo trabalho!
ResponderExcluirEscrevi um baita post e perdi tudo (nao estava seguindo o blog), escrevo com calma depois...
Forte abraço e obrigado pela sua "incoveniência"!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAbraço, Eduardo, o direito autoral é de todos nós. Você entende.
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