sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O velho e o rio


Sentado na pedra, na sombra das árvores, o velho olhava o rio. O que restou do rio, debaixo de terras, areias e troncos. Olhava, olhava, vendo e não vendo. Eu vi o velho, de longe, me aproximei e sentei do seu lado. Os olhos andavam pelo tempo, a imagem dos tantos anos vividos naquelas beiras, naquelas águas, apareciam sobre a imagem do presente. Era quando brilhavam os olhos do velho. Nunca mais vou ver esse rio, meu filho. E vinham as imagens de uma vida inteira, desde menino eu brincava aqui com os amigos, nadava, pulava na água dos gaio das arvre, lá de cima. A bóia de câmera de ar, pneu de trator, as guerras de mamona, pegava na pele, queimava, nóis pulava no rio pra passar. Depois, mais crescido, vinha namorar na beira do rio, ô coisa boa, a beleza de ver a lua no céu, e ali debaixo da ponte, hein? Ali era bão dimais, hum, hum... Nos domingos, vir com a família pra beirada, pescava os peixes com os parentes, fazia ali mesmo, numa churrasqueira improvisada, reunia o povo, era bão dimais. Vinhas as voadeiras fazendo estripulia, os meninos cavarga que nem cavalo na água, pula fora dágua, cai pra dentro. Às vez vinha pertim da gente, a gente recramava, levantava a terra do fundo, espantava os peixe, trapaiava a pescaria. A gente achava ruim, mas era bonito aquele espaiar de longe, aquelas curva qu’eles fazia, aquele espirro d’água pra cima. Os olhos dele brilhavam, vendo o passado rolando na frente deles. Aí ele voltava prali, diante do rio morto, nunca mais vou ver esse rio, meu filho. Tô com oitenta e quatro anos, cabou pra mim, não tem tempo de ver o rio outra vez. Ele olhava as máquinas sobre o rio, aquele palheiro de troncos trazidos desde Mariana, dos vales do rio do Carmo, de Bento Rodrigues até ali. Talvez só as crianças vão ainda ver esse rio limpo, se é que vão. Eu puxava pela memória dele e seus olhos brilhavam, saíam dali pra outros tempos, ele quase sorria, lembrando, contando, revivendo. Mas caíam de volta no presente, dava pra ver a expressão mudando a alegria imaterial caindo numa tristeza sólida, tava ali, na cara. Era um abismo, ele vinha ao fundo, tava ali, era o presente, a realidade na nossa frente, eu olhava as máquinas, a quantidade infinita de troncos em confusão, embolada, o velho olhava parecendo distante. Ele não queria estar ali, mas vinha, sem pensar, a cabeça vazia, só o sentimento o trazia, ele sentava e ficava olhando. Sem pensar, às vezes lembrando, lembrando... ele preferia estar nas lembranças, o olhar longe no tempo, quando o rio era mais limpo, mais cheio de peixes. Ele tava fraquinho, já vinham estragando ele, mas ainda tinha muito peixe, muita água, muita coisa. Agora mataram ele, morreu o rio, é como morrer um parente, é mais que isso, é a morte da família inteira, de muitas famílias. É, meu fio, acabou pra mim. E o velho me olhou pela última vez e foi embora, sem levantar dali, silenciando e olhando, às vezes vendo, às vezes sem ver. Eu não tinha mais o que dizer, ele não tinha mais o que falar. Quando levantei e me despedi, ele apenas levantou a mão, olhando longe, sem ver. Já mais distante olhei pra trás. Ele estava lá, sentado, magro, cabeça branca, silencioso, olhando o rio... o rio morto.

7 comentários:

  1. que lindo ...a delicadeza de seu texto me transportou para a cena...emocionante, me senti ao lado do velho Idalino, queria poder abraçar ele ao vivo, mas estou abraçando agora em meu coração...

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  2. Lindo mesmo!! Vc tem o dom para transmitir toda a realidade das cenas que vivencia, sem contar com a sensibilidade para descrever uma tragédia com tamanha beleza. Espero que um dia o Rio Doce e a vida dessas pessoas, ou pelo menos dos descendentes, se recuperem, meu medo é o abandono do governo, da Samarco e da própria sociedade, todas em comum acordo de que não querem fazer nada pelo outro.

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  3. Eu fico pensando se os responsáveis por essa tragédia conseguem dormir...

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  4. O CAPETALISMO SEMPRE DEIXA SEU RASTRO NA BUSCA DO "TER".

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  5. Sem palavras...
    Passamos pela vida olhando e muito pouco absorvemos... Ouvi suas palavras em dois ou três vídeos, agora li este teu texto, e veio o nó na garganta, como é triste a condição humana, como é triste minha situação e a de tanta gente que olha e não enxerga a real situação! Sair da ignorância implica responsabilidade, será que queremos sair? Acho que estamos tão "mortos" qto o rio hj morto, mas pq permitimos que joguem este mar de lama em nós 😢

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  6. Parabéns pelo texto Eduardo! Me sentir totalmente dentro do cenário com os detalhes e sensibilidade expresso no mesmo... Manifesto aqui também minha profunda tristeza pela tragédia. Infelizmente enquanto essa ditadura disfarçada de democracia, que sempre prevalece os barões modernos da nossa sociedade continuar comandando nosso país, coisas desse tipo sempre irão acontecer sem punição.

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  7. Parabéns pelo texto Eduardo! Me sentir totalmente dentro do cenário com os detalhes e sensibilidade expresso no mesmo... Manifesto aqui também minha profunda tristeza pela tragédia. Infelizmente enquanto essa ditadura disfarçada de democracia, que sempre prevalece os barões modernos da nossa sociedade continuar comandando nosso país, coisas desse tipo sempre irão acontecer sem punição.

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