sábado, 25 de agosto de 2018

Delicadamente expulsos de Igatu, Bahia





O movimento pinta quadros mutantes pelos caminhos.

Saímos de Vitória da Conquista pelas duas da tarde, refizemos o trajeto de vinda, pelas estradas no sul da Chapada Diamantina. O destino era o povoado de Igatu, no município de Andaraí, onde haveria um festival de música. Anoiteceu pelo caminho, durante o fim do dia entramos na estrada pra Mucugê e vimos a placa quebrada que, na vinda, nos fez errar o caminho. Passamos pelo cemitério bizantino, fechado mas iluminado, seguimos até a entrada do povoado, onde pegamos a estrada de terra por alguns quilômetros, até começarem as pedras, pelo jeito colocadas há séculos, irregulares de obrigar à velocidade de caminhada. Chegando em Igatu, havia uma barreira com guardas que não deixaram a gente passar. Paramos numa área aberta pra ser um estacionamento e fomos a pé coisa de meio quilômetro. Era quinta-feira, estava começando o evento, já com palco e músicos locais (da Chapada). Encontramos alguns conhecidos, tomei umas brejas poucas e voltamos pra dormir no estacionamento. Era madrugada e a guarda permanecia. Quando amanhecia acordei e eles não estavam mais, pudemos então entrar em Igatu, impressionante, tudo de pedra e na pedra. Fomos até a área dos cemitérios, havia espaço bastante e plano, coisa rara no lugar. Deixamos lá a kombi, depois de descarregar os painéis e a banca na praça.

Estávamos lá expondo, já com algumas poucas vendas, quando chegou a guarda municipal, dizendo que não podia expor ali, tinha que ser no "mercado", um espaço restrito onde se aglomeravam os artesãos e os artistas com suas coisas. Uma clara segregação, não havia espaço pra todos, nem apelo pras pessoas entrarem. Tentei argumentar, mas parecia guarda de cidade grande, não tinha diálogo, só a "determinação superior", uma lei municipal qualquer que dava no mesmo resultado de sempre: "não pode". Resolvemos ir embora, já tenho tempo suficiente de rua pra não aceitar esses esculachos das convenções com as pessoas não convencionais, uma repressão disfarçada de "regulamento". Igatu ficou pra trás e nós fomos adiante. Ainda era dia e a estrada estava linda. A "festa" continuou sem nós. As burocracias revelam a ignorância artística do sistema. Mais que a ignorância, a repressão aos que não estão de acordo com o sistema social, demonstração de pequeneza cultural. Uma pena, num lugar tão bonito, com uma história tão forte, um povoado que já teve vinte mil pessoas buscando pedras preciosas, cheio de ruínas de casas construídas nas pedras, por cima e por baixo.   

As "otoridades" locais, se tivessem alguma sensibilidade, deveriam se envergonhar da repressão aos artistas - que negarão, obviamente, alegando que "até" destinaram aquele galpão pras exposições dos visitantes. O tal galpão estava lotado, os artesãos e artistas se apertavam, era inviável colocar seis painéis de desenhos e mais uma mesa com fanzines, ímãs, pequenos desenhos, camisas e livros. Na verdade, é apenas uma forma de tirar os artistas das ruas, da praças, onde se colocariam em harmonia e sem atrapalhar ninguém, se os institucionais não se metessem. Uma segregação hipócrita, como hipócrita é todo o poder dito "público", que prioriza os interesses empresariais, o patrimônio, o lucro, muito acima dos direitos da população, acima da vida, do equilíbrio da natureza, de tudo. O que houve em Igatu (e que acontece cotidianamente, em qualquer lugar) é um reflexo do modelo social em que vivemos, o predomínio de uma mentalidade superficial, embrutecida, que não percebe os valores da parte sutil, da alma, nem a necessidade desse desenvolvimento.

Essa placa nos fez errar 40 km. Tivemos que voltar, no todo foram 80. Sem crise, dirigir à noite em estrada deserta é ótimo. Ainda mais em noite de lua cheia.


Depois de Anagé, o trevo da estrada pra Mucugê e Igatu. A placa está à esquerda. Quer dizer, o que restou dela.
                                                                     

O fim do dia, de dentro da Celestina.
                                           
A casa de pedras debaixo da pedra.

Há muitas casas nas pedras e das pedras em Igatu.


Os gentis rapazes da guarda, implacáveis no cumprimento das ordens anti-artísticas do município de Andaraí.

"Perdoai, pois eles não sabem o que fazem..." Quem sabe é quem dá as ordens mas não dá as caras.
O caminho pra Andaraí é assim por uns dez quilômetros, pedras irregulares.

Apertos aqui e ali são comuns.


O rio exibe suas areias, pouca água.


5 comentários:

  1. Vcs parecem viver como num jogo de capoeira, sem atingir ninguém em cheio, mas, com grande destreza, sem permitir que acertem vcs também. Parabéns por não se dobraram!

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  2. Eduardo te conheci há pouco mas ja sou admidador de sua vida e seu trabalho!

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  3. Eduardo a pouco tempo te conheço já sou um admirador seu.saber que uma parte desse país sofre me dói muito,obrigado.

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