sábado, 26 de março de 2011

Eduardo Marinho fala sobre política, religião e outros temas

Entrevista feita por Eduardo Viana, Rafael Martins e Victor Belart. Faz parte de um documentário, em fase final de gestação, chamado "Escafandristas - cifrões, padrões e exceções". Apresenta as visões de artistas independentes, de vários ramos de atuação nas artes, sobre a sociedade e seus padrões impostos. Deve nascer até o final de abril. Se não sair até o final de maio, a gente faz uma cesariana neles. Eles apareceram lá em Santa, esperaram eu terminar de pôr os desenhos e me entrevistaram mais composto, de camisa. Foram quarenta minutos de idéia, de onde eles extraíram esse suco aí. Tô esperando pra ver o filme.



sexta-feira, 25 de março de 2011

Quando o silêncio é necessário

Há coisas que devemos guardar só pra nós mesmos. Por muitos e variados motivos. É preciso ter muito critério. Aí existe uma encruzilhada, há dois troncos básicos, além de eu vislumbrar um terceiro – não posso dizer quantos há, só quantos percebo -, de menor importância nesta análise, digno de outra análise. As duas principais vertentes de motivos, pela gravidade das suas conseqüências, é como uma balança onde se pesam benefícios e malefícios. Há coisas que não se revelam porque poderiam causar perdas e danos, que trariam tudo de ruim e nada de bom – apenas a satisfação do orgulho com a humilhação de outros, ou interesses menores. Essas são claramente nocivas e evitáveis com o simples silêncio, e é necessário que assim o seja, pela harmonia. Há outras coisas que não se revelam porque poderiam acarretar prejuízos individuais ou a pequenos grupos, embora pudessem beneficiar a coletividade como um todo, ou ao menos estancar alguma sangria desatada na estrutura pública. Essas escondem o que causa sofrimento e injustiça e são um lastimável prejuízo interno, subjetivo, da alma dos beneficiários, dos mentores e dos executores. E uma demonstração de que a sociedade, como um todo, precisa despertar pra cuidar, não só do que é seu, mas do que é dos seus, das gerações passadas e, principalmente, das futuras, que ainda não tiveram a chance de participar do processo e vão receber as conseqüências da nossa inconseqüência social.



O terceiro tronco seria o “neutro”, entre aspas porque se trata da média, nesse tronco de motivos para segredo. Aí há dos motivos egoístas aos generosos. Uma complexidade enorme, de onde eu tô vendo agora, que fica pra outro escrito. Preciso terminar um quadro.

Sociedade Humana








Agora afirmam que a humanidade está destruindo o planeta. Socializam a responsabilidade. A natureza está sendo destruída, é verdade. Mas uns poucos destroem muito mais que a maioria. São os que estão por trás de grandes bancos, mineradoras gigantes e mega-poluentes, monstros da construção, barragens e transposições desastrosas ao meio ambiente e às populações locais, indústrias produtoras de descartáveis, que se tornam lixo tóxico de longa duração, indústrias químicas, as mais diversas, com resíduos contaminantes, sem falar nas assustadoras usinas nucleares, cujo lixo radioativo nós ainda não temos como tratar. E vêm dizer que quem está destruindo o planeta é o “ser humano”.

São esses poucos quem decide essa realidade, escondidos atrás e acima do poder aparente, o político. Investem nas campanhas eleitorais e têm os políticos como seus representantes no Estado; cooptam carreiras jurídicas, impõem seus protegidos aos cargos-chave da nação. Controlam as instituições públicas e, por extensão, os investimentos públicos. Educação, saúde, transportes, moradia, segurança, saneamento, cultura, informação, tudo é decidido de acordo com os interesses daqueles dominantes, menos de 0,5% da população. Daí a falta de decência dos serviços públicos, a aparente “incompetência” dos governantes e políticos em geral. Na verdade, estes são muito competentes, para o que foram realmente eleitos – e é claro que não o foram pra cumprir suas promessas de campanha.

Por isso o povo precisa estar alienado no processo, precisa acreditar que o poder político é o verdadeiro e não perceber porquê minorias desfrutam privilégios, ostentações e desperdícios, enquanto seus direitos, garantidos na própria Constituição do Estado, são negados pelo próprio Estado, sempre em benefício de empresas, enriquecendo mais os empresários que o controlam. É a contenção do “custo social”. Tudo em benefício das empresas, tanto maiores benefícios quanto maiores forem as empresas – para a população, as despesas cenográficas, os restos e os custos. E aos que não se contentam, a segurança pública. Todas as forças de segurança, militares ou não, em última análise, servem aos interesses empresariais e à contenção dos pobres. E a mídia privada ataca, em histeria raivosa, todo movimento popular que denuncie, reivindique ou conscientize.

Aliás, a mídia é o selo de ouro do esquema de controle social, a garantia de uma população infantilizada, superficializada, desinformada, conduzida a um modo de vida massacrante, frustrante, desumano. Com a destruição do ensino público, sem instrução, a maioria se deixa levar, desarmada de qualquer senso crítico, sem perceber que sua miséria, seu sofrimento, sua angústia, são o que sustenta esse sistema criminoso, essa brutal diferença entre os mais pobres e os mais ricos. As classes médias sofrem o assédio da publicidade frenética, direta e indireta, gerando valores sociais, desejos de consumo, objetivos de vida, tudo planejado e imposto de todas as maneiras por interesses de domínio, lucro e poder. Valores mesquinhos, consumos e entretenimentos narcotizantes e uma vida vazia de sentido.

Em suas ilhas e bolhas de luxo, excessos e ostentações, poucas pessoas escolhem a barbárie social e a impõem aos governos e aos povos, com suas corporações financeiras e transnacionais gigantescas, empresas “esmagadoras” que extraem o sangue e deixam só o bagaço. Isso lhes garante mais ganhos, mais poder, mais riquezas, enquanto a maioria é roubada em seus direitos e levada a uma existência sem dignidade, sem instrução, sem informação, sem acesso ao pleno desenvolvimento das suas potencialidades. Ao contrário, é levada a sustentar essa estrutura com os comportamentos, valores, desejos e objetivos impostos pela parafernália midiática.

Somos forçados a participar e contribuir com essa estrutura e mesmo sustentá-la. Pela indução, aproveitando a falta de instrução, de formação e de informação, pela imposição de valores sociais e pessoais, a partir mídia corporativa e pela pressão, psicológica ou física – quando as forças de segurança dão a última “palavra”.

Não posso respeitar uma sociedade estruturada dessa forma. Preciso questionar cada valor social e meu próprio, preciso duvidar de cada informação trazida por essa mídia privada/safada. E quanto mais ela se dedica a um assunto, mais desconfio dos interesses ocultos dos poderosos da sociedade.

A escravidão predominante de hoje é feita com correntes preparadas com mentiras, e nós as fazemos fortes acreditando nelas. Moldamos os valores, os comportamentos, os desejos, os objetivos de vida, nos baseando em mentiras – daí tanta angústia, tanta frustração e tanto desequilíbrio. Quando formos percebendo isso, vamos desacreditar e as correntes serão rompidas. Seu descrédito é a ferrugem que a corrói. O processo está em curso, mais e mais pessoas, a cada dia, se dão conta de que estão sendo enganadas. Que ninguém se iluda, é um processo longo e lento, embora incontrolável – mesmo com todo o aparato de controle. Participar dele é dar sentido à vida, na direção de uma vida menos insatisfeita e uma sociedade que, afinal, possa merecer com justiça o título de humana.

terça-feira, 22 de março de 2011

Paz em casa e pensamentos

            Louça suja. De novo, a pia lotada. Antigamente isso não acontecia. Mas eles eram pequenos. Eu mandava, eles faziam. Depois, durante a adolescência, eu já tinha que pressionar, e quem fazia ficava de cara feia. Com o tempo, veio a resistência, deixa lá que depois a gente lava, e era um depois que nunca chegava. O estado natural da pia da cozinha, na maior parte do tempo, era entulhada. A não ser depois de discussões, de palavras ásperas, de acusações e cobranças, gritos e brigas. E não era só a louça, era a limpeza da casa, a balbúrdia dos quartos, eu tentava arrumar o meu e brigava pra que todos se esforçassem pra isso. Eu brigava com eles, eles brigavam entre si, e a casa, às vezes, era uma orquestra de gritos, bater de portas, barulhos de coisas caindo ou até batendo nas paredes. Pelo que percebi, quando eu não estava aconteciam brigas homéricas, há marcas pela casa toda. Bem, ninguém rolava pelo chão, se engalfinhando, não havia troca de sopapos, pelo menos isso. Ou isso era o que eu pensava. Mas era um inferno de discussões, ressentimentos, e foi assim, até que eles saíram, foram cuidar da vida e o clima aqui tava impossível. Dois anos passaram, e dois estão aqui (a do meio mora no império, aparece menos de uma vez por ano, o “racha” aconteceu depois que ela foi), de novo, agora um pouco mais amadurecidos, a casa tem ficado outra, e em paz, sem gritos ou insultos. O convívio está muito melhor. No início, estava impecável. Agora, já se bagunça um pouco, são roupas esquecidas na sala, brinquedos que não se recolhem (ah, não tinha contado com a neta), aparelhos ligados em vão, luzes acesas. E louça suja na pia da cozinha. Preciso fazer um chá de alho. Eu podia reclamar, mas só ia arrumar mal estar. O que eu quero? A pia da cozinha limpa e arrumada, o fogão limpo e a comida na geladeira. O que eu não quero? Raiva, grosserias e mal estar. Quando cheguei na cozinha, o Ravi tava perto e eu disse, pô não sei que dificuldade tem em lavar a louça. Deixa aí, depois eu lavo, ele diz, em voz baixa e casual, como se nunca tivesse falado isso, e sai, tranqüilo, na direção da sala. Eu dou uma risadinha mais interna que externa e chego na pia. Afasto as coisas, pego a tábua, escolho uns dentes de alho roxo pra amassar. Ponho água numa panela, depois de abrir espaço entre a louça, acendo o fogo pra ferver a água. Descasco o alho e faço virar quase uma pasta, na tábua. E vou pensando, como eles estão melhores agora, embora ainda relaxados demais, ela muito menos, mas ser mãe amadurece mais, e ainda não foi o suficiente. Mas isso se pode dizer que é uma necessidade de todo mundo. Não tô a fim de culpar ninguém. Se quero limpo, eu lavo. Não é tanta coisa assim. Antigamente era muito pior, cobria até a torneira, se esbarrasse caía coisa, essa de hoje, rapidinho, enquanto preparo o chá, fica tudo limpo. A água ferve, eu abaixo o fogo e levo a tábua até a panela, empurrando o alho com a colher. Percebo que se tivesse virado a tábua, o alho ficaria a três centímetros da beirada e seria muito mais fácil jogar na panela. Mas havia um desenho com duas retas levando, como um corredor, pra beira oposta ao cabo, e eu conduzi o alho por ali. Lembrei de como a gente se deixa conduzir pelo lado mais difícil, apenas por encontrar induções, criadas nessa intenção, mesmo. É só olhar em volta e perceber a infinidade de induções plantadas em nosso caminho e em todos os lugares e que, se analisarmos direitinho, nos trazem, e à sociedade, um monte de problemas. É muito bom percebermos essas induções e como tantas já não nos levam, quantos valores induzidos já não nos fazem o menor sentido. E descobrir a profundidade desses condicionamentos, como podem ser sutis a ponto de não percebermos o quanto há deles em nós, nas opiniões e visão de mundo que formamos. É preciso questionar nossas próprias idéias. Eu me deixei conduzir por dois traços feitos em cima da tábua, indicando a “saída”, e fiz o caminho mais difícil. Apago o fogo, cubro a panela com um pano dobrado e coloco a tampa por cima. O calor vai extrair do alho o que eu preciso. Enquanto isso, lavo a louça. Não é melhor que passar raiva? O ruim é que toda hora se deixa coisa suja. Mas é melhor lavar ou bater boca? Lavo, tranqüilo, enquanto o alho curte na água quente. Se eu insistisse em pressionar pra eles arrumarem as coisas, estaria incorrendo num velho erro. Eles têm senso de justiça latente. Acho que é só questão de tempo. Têm solidariedade, também. Às vezes tardia, mas têm – e quem não erra? Lavando, não estou só fazendo ficar limpo, como também mantendo o clima bom. Eles estão fazendo mais que antes, bem mais. Não podem é ser pressionados, nisso parecem comigo. Pressão, só de circunstâncias, não de circunstantes. A força das coisas, dos acontecimentos, não de pessoas. Exemplos, não palavras. As coisas vão ficar limpas. E o clima, tranqüilo. A vida ensina suavemente, quando a gente se dispõe a aprender. Ou asperamente, quando a gente não se dispõe.

domingo, 20 de março de 2011

O espetáculo da subalternidade

Toda a preparação oficial e a euforia dos meios de comunicação dominantes em nossa sociedade, diante da visita do “mandatário” imperial (que não manda nada), nos oferece um panorama constrangedor. Políticos historicamente alinhados aos interesses econômicos estadunidenses e outros nem tanto, prestam vassalagem ao poder das empresas multinacionais, simbolizados na figura da marionete e sua família, que fazem, simbolicamente, uma visita “familiar” à casa dos “amigos”. Posso ver, no escuro atrás e acima dessas figuras cênicas, as garras dos seus manipuladores, a partir das mega-petroleiras e de outras indústrias, como a de armamentos, a farmacêutica, a de alimentos transgênicos (leia-se “monopólios de sementes e alimentos”), etc.

Somos obrigados a assistir um show de idolatria planejada, de sujeição moral e ideológica à tirania mundial das grande empresas mundiais, poluidoras constantes e violadoras dos direitos humanos e de soberanias em países no mundo inteiro, através da bajulação do seu preposto e família.

Seria cômico, se não fosse trágico (devido à desinstrução e desinformação planejadas), ver esses jornalistas corruptos abanando os rabinhos, histéricos como cães à chegada do seu dono, fazendo-nos ouvir disparates como “neste dia tão especial dessa visita” e a referência ao motivo principal como “o lado empresarial da visita”, divulgando o cardápio do almoço com a presidente (eu escreveria “presidenta” se o masculino fosse “presidento”), comentando os vestidos e salamaleques rocambolescos nos palácios, longe do “fedor” do povo, nas cortes de ostentação e desperdício, de sujeição cultural e econômica.

É óbvio que o motivo principal e mal disfarçado dessa incursão “diplomática” é o mesmo que levou o império a invadir ilegalmente o Iraque e armar um furdunço do Oriente Médio. Petróleo. As jazidas do pré-sal, ainda não inteiramente divulgadas, apontam pra uma quantidade de óleo três vezes maior que todas as reservas brasileiras e de melhor qualidade. Um amigo petroleiro, que trabalha numa plataforma em alto mar, próximo ao litoral de Santos, há dois anos, contou ver a passagem diária de navios da 4ª Frota dos USA, desde que se descobriu o pré-sal e se reativou essa frota. A onda que invadiu a baía de Guanabara e danificou um catamarã, segundo consta, foi fruto de uma explosão de teste, feita no fundo do mar a partir de um porta-aviões estadunidense.

Os pretextos da “visita diplomática” e sua encenação midiática são uma afronta aos que pensam por si, nessa coletividade narcotizada por obra e graça da mídia, que conta com a política da deseducação para encontrar um povo desarmado de senso crítico. O Estado brasileiro é como um criminoso que mantém seu povo refém da ignorância e entregue aos manipuladores da opinião pública, altamente capacitados e remunerados. Ricos de grana, pobres de espírito. Onde está a dignidade de quem bajula os opressores de seu próprio povo?

O estupro da Cinelândia pôde ser evitado, não pelo discernimento das autoridades locais, eufóricas com a oportunidade de paparicar o "imperador", mas pela própria segurança estrangeira que, diante das reações nas ruas, percebeu que isso ia dar merda e que eles se arriscariam a matar alguns brasileiros, o que, no momento, não seria aconselhável, pois desmascararia a própria “visita diplomática para o estreitamento dos laços entre os dois países (Brasil e USA)”. Na verdade, os laços que eles pretendem apertar estão nos nossos pescoços brasileiros e, por extensão, latinoamericanos. E eles preferem matar no atacado, com alta tecnologia, do que no varejo, em denunciador conflito de rua num país dito "amigo". Os assassinatos de varejo seletivo são trabalho para a CIA, como fizeram com os cientistas nucleares iranianos, pela sucursal da CIA, o MOSSAD israelense.

Diante desse quadro, ainda temos a lastimar que os “nossos” revolucionários também são estrangeiristas que pretendem aplicar, aqui, modelos estrangeiros de revolução. Leninistas, trotskistas, stalinistas e demais marxistas têm, pelo brasileiro comum, o mesmo desprezo dos imperialistas. Caem na vala comum de responsabilizar as vítimas pela ignorância e desinteresse, pretendem “conduzir as massas”, como quem entrega pizzas, e não fazem nenhum movimento de real conscientização do povo. Têm medo de entrar nas áreas de exclusão, a não ser através de lideranças cooptadas por suas siglas e, absurdo dos absurdos, usam roupas, tênis e bolsas de marca. Que tipo de “revolucionário” é esse? Respondo: é do tipo vazio de substância e cheio de vaidades – almeja apenas a glória entre seus pares, que nem falar a linguagem da população sabem. Esses caras mais assustam do que cativam a população. E acabam, em seus arroubos agressivos, justificando o desenvolvimento e o recrudescimento dos aparelhos de segurança do Estado contra o povo, principalmente os pobres. Facilitam o trabalho da mídia em criminalizar os movimentos de contestação, reivindicação, denúncia ou defesa da maioria. O sistema adora esses "revolucionários" que, além de justificar medidas de contenção, ajudam a montar um cenário "democrático". Em Cuba eles não teriam essa liberdade, dizem os pilantras, os elitistas e os ingênuos que se informam pela mídia. Se não fosse uma auto-denúncia, agradeceriam a esse bando de otários, digo, a esses "revolucionários".

O lamentável espetáculo da subalternidade dos “dirigentes” e “comunicadores” da nossa sociedade me faz agradecer à pereba na perna e à encomenda de uma pintura (num momento em que estou em dificuldades) que, juntos, me fizeram desisitir de ir lá na Cinelância, assistir aos acontecimentos ofensivos à dignidade do meu país. Faltasse um dos dois e eu teria ido. Claro que eu teria me divertido, encontraria conhecidos velhos de guerra e distribuiria cartazes manifestando repúdio, tanto à visita da marionete quanto à posição colonizada dos pretensos representantes da sociedade. Mas, com certeza, na reflexão forçada pela travessia das barcas, choraria de tristeza.

quinta-feira, 10 de março de 2011

O garimpo humano

Temos do “demoníaco” ao “divino”, entre nós. E dentro de nós. Conheço trevosos e iluminados, anjos e demônios. Vi anjos virarem demônios e vice versa, conforme as circunstâncias. Todas a falhas que vemos pelo mundo estão dentro de nós, em maior ou menor grau, como árvore frondosa ou apenas semente, esperando a ocasião. As proporções variam do imperceptível ao impressionante, em incontáveis degraus.

A humanidade é um grande garimpo. O que aparece é lama, cascalho e pedra sem valor. No meio, de raro em raro, há pedras preciosas e pepitas, misturadas com tudo. Há quem desista, “ora aí só tem barro, que sujeirada”, logo de saída, ou depois de uma busca frustrante. Mas há quem se aplique, quem procure e encontre. É preciso educar os olhos, apurar os sentidos, pra perceber uma pedra de valor, uma pepita, envolvida na lama, no cascalho humano. Não é difícil, eu as tenho encontrado, sempre, em todos os meios e coletividades.

Claro que não são a regra geral. A sociedade será outra quando forem, pelo menos, minoria. São exceções à regra. Muitas se dedicam a trabalhos de conscientização, de ensino, de amparo, de apoio, de luta por melhorias de verdade, no ser humano e na sociedade. Outras não se dedicam diretamente, estão em toda parte, espalhadas, formando a sociedade como pessoas comuns, em todas as profissões. Essas iluminam aonde estão, questionando, propondo, exemplificando, sendo diferentes do "normal". A diferença está no olhar, na compreensão das coisas, da forma de reagir, de sentir, de atuar. Há quem esteja buscando, quem não se conforme, quem sofra com a discriminação inevitável numa sociedade onde a mediocridade, a mesquinharia, a conformação, a padronização ainda são as regras vigentes. Os contatos que valem a pena, da humanidade, são as exceções. Em geral, são pessoas que, quando andam com a corrente, se angustiam, sofrem. Pessoas para quem se conformar e reprimir as necessidades internas é adoecer a vida, é se tornar amargo, depressivo, mal-humorado, descrente de tudo.

Somos mesmo complexos e variados. Mas somos, também, ignorantes de nós mesmos. Cegos de consciência, tateamos no escuro, aprendendo com a dor, colhendo frutos que plantamos sem nem perceber. Aprender, essa é a tarefa. Pra isso existimos e é o que levamos da vida. Alguns sabem disso, outros sentem. Poucos, é claro. A maioria anda por aí, superficializada, induzida ao desinteresse, à inércia, ao seguir as ondas, sem perceber a fonte dos seus próprios valores, sem perceber os próprios condicionamentos, muitas vezes no cárcere da indiferença, do egocentrismo, do apequenamento do mundo. Essa maioria não pode entender a angústia, o vazio que assalta implacável, a cada silêncio, a cada encontrar consigo mesmo.

A preciosidade humana tem uma característica própria, única, e é o que me faz acreditar na diversidade infinita desse trabalho de lapidação. Diferente da preciosidade mineral, exclusiva, a preciosidade humana contagia. Uma luz pode acender várias, e essas passam a acender outras. A diferença entre uma pessoa iluminada e outra ignorante não é tão abissal quanto nos parece. Em essência, são a mesma coisa - às vezes, um leve toque produz o brilho. Taí o trampo, esse é o trabalho. Pra mim, é isso o que faz a vida valer a pena. Aprender e passar, deixar os toques pra que alguém os aproveite em seu trabalho/caminho. Não espero ver tudo pronto, do jeito que sonho. Mas preciso andar neste sentido. Não tenho a ingenuidade de plantar pra mim, planto pra dar valor à minha vida.

Nada é estático, tudo muda. Não há milênios pra trás? Também os há pra frente. As previsões apocalípticas visam desestimular qualquer movimento de mudança mais incisivo. Não há extermínio. Pode haver hecatombes, sim, mas não o extermínio. E se houvesse essa possibilidade, isso seria mais um motivo pra lutar. Sentar e se acomodar como os usufruintes alienados, não quero condenar ninguém, mas eu teria vergonha. De mim mesmo.

Prefiro tratar com pessoas que possuem algum terreno fértil em suas consciências, com essas dá pra trabalhar. E ajuda a fertilizar e desenvolver a minha própria, que é o que eu mais preciso. As mudanças, as revoluções, se fazem no dia a dia, internamente, sem detrimento das lutas externas, de grupo, dos posicionamentos, das manifestações e apoios solidários, das reivindicações justas, do esclarecimento cotidiano.

Nem todos estão acomodados. Nem todos almejam o desfrute e o prazer materiais como finalidade de vida. Nem todos se deixam condicionar por uma mídia tão poderosa que forma valores, costumes, opiniões, sempre em benefício de empresas e em detrimento do desenvolvimento real do ser humano e da sociedade. São poucos, ainda, é verdade. É um garimpo. Mas eu percebo a formação de muitos veios, espalhados por aí.

Um veio (vêio), no garimpo de minerais, é onde se encontram grande quantidades de pedras, ou ouro, num lugar só, a sorte grande do garimpeiro. No meio humano, já vi muitos veios preciosos, funcionando dentro da coletividade, de todos os tipos, formas e qualidades. Com o tempo, fui percebendo o fenômeno da evolução espalhada e, aparentemente, desconectada. O trabalho está sendo feito. Sem anúncio, sem alarde, em toda parte, em todos os níveis. Sem que se perceba e é bom que assim seja. A estrutura dominante está pronta pra esmagar qualquer ameaça de mudança, venha das ruas, dos grupos, dos gritos, através do terrorismo, do combate direto ou indireto, explosivos ou informações. Esse grande esquema só não está preparado pra consciência. Por isso tanto investimento em entretenimento, em condução da opinião pública, em idiotização, em infantilização pela mídia da mentalidade geral. Assim, roubam os direitos fundamentais da maioria e atiram grande parcela da população na ignorância, na pobreza e na miséria. O mandamento moral, agora, é conscientizai-vos uns aos outros. Esse é o trabalho que está sendo feito. Sem controle aparente, aparentemente espontâneo.

Participar desse trabalho é necessário a muitos dos que não se contentam com o que a sociedade apresenta como ideal de vida. Pros que não se deixam enganar e se sentem parte dessa coletividade narcotizada. Pros que não se identificam, nem se conformam com essa estrutura social injusta, mediocrizante, manipuladora, mentirosa e criadora de problemas pra esmagadora maioria. E o trabalho começa dentro. Os que se limitam a lutar por mudanças na sociedade, a partir do externo, não desenvolvem em si a força da mudança. Desistem ou se acomodam com a forma sem conteúdo da revolução sem raízes, com verdades impostas e subalternidade cultural.

As verdadeiras exceções estão aí, é um imenso prazer e um incentivo reconhecê-las, vez por outra.