OBSERVAR E ABSORVER -
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quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Tradução da Miséria - documentário
Em Santa Cruz do Sul, onde estive falando na UNISC, fui abordado por Joe Nunes, com um grupo de "contra-correntistas"*, falando sobre a voz inaudível da parte de baixo da sociedade, que a sustenta sob o desprezo dos poderes e dos preconceitos de grande parte das pessoas. Eles me presentearam com um documentário chamado "A Tradução da Miséria", que mostra exclusivamente a voz e as opiniões dos catadores de material reciclado, capaz de surpreender os preconceituosos que mantêm um resquício de boa-fé e isenção. Os empedernidos, esses não têm condições de assimilar nem respeitar nada que não lhes sirva à própria conveniência, à sua visão distorcida e egoísta da realidade. Aqueles que conseguem ter alguma sensibilidade social, nesta sociedade embrutecedora, hão de se emocionar e surpreender com a clareza que esses "desprezados" têm, em sua visão de mundo. Acho que, olhando de baixo, a sociedade se mostra mais sinceramente do que na visão de cima, dos pedestais acadêmicos ou de classes médias abastadas. Ninguém finge ser bom pra mendigo, para os pobres a cara vampiresca da sociedade se mostra sem máscara. Fiz um estágio de alguns meses na mendicância e sei muito bem do que estou falando. Mendicância esta que revisitei várias vezes ao longo do meu percurso pela vida, inclusive com filhos, dormindo sobre papelão e sob marquises, em casas abandonadas, construções, ruínas, e todo tipo de improviso.
Os entrevistados do filme mostram sua lucidez comovente, desenvolvida nas adversidades da vida rueira e das relações com a sociedade. Gilmar fala com propriedade - que, para alguns, pode ser espantosa - sobre a tendência ao julgamento sumário e despropositado, condenando os mais pobres por sua própria tragédia sem perceber ou procurar saber das causas na produção de miséria em nossa sociedade. Acusam o "pau-dágua", sem questionar sua decepção com a sociedade, seus sonhos sabotados de inclusão, sua dor em viver na miséria e na marginalidade, desprezado por um Estado criminoso, tomado por interesses empresariais, sobretudo financeiro-industriais, que não cumpre os artigos mais importantes da sua própria constituição - assim mesmo, com minúsculas, porque só se cumprem os artigos que favorecem os interesses dos mais ricos e não garante, como deveria, alimentação decente, moradia digna e ensino de qualidade, só pra ficar nesses três. É uma constituição estuprada e prostituída a serviço das elites egoístas, perversas, covardes e desumanas, em sua arrogância e seu apego a privilégios que roubam os direitos da maioria.
Tugira revela parte dessa perversidade, quando relata que os comerciantes, donos de supermercados e restaurantes, enchiam os sacos de lixo com restos de comida - onde os sabotados iam buscar seu alimento - de detergente, pra impedir o proveito pelos miseráveis. Perversidade velha conhecida, e que não surtiu efeito, como nada surte efeito contra a atitude dos famintos que não têm outra fonte de alimentos além do lixo. Então passaram a encher de creolina, também sem efeito. Os famintos comiam com creolina e tudo, o que levou o prefeito à bizarra afirmação de que assim os miseráveis "não tinham vermes". Tugira foi à assembléia legislativa denunciar o fato e pegou tão mal sua aparição inesperada e sua denúncia constrangedora que a própria câmara recomendou aos comerciantes parar com essa desumanidade. Então esses abastados, em seu ódio contra as vítimas da sociedade, começaram a guardar o lixo por dias, para que deteriorasse até ficar impossível de comer. Em vão. Eles não conhecem a miséria. E a mim, parece que se borram de medo, daí sua agressividade e seu ódio implacável contra quem não lhes faz nenhum mal. Devem considerar que sim, fazem, apenas por se acercar do lixo que seus estabelecimentos descartam, nas horas mortas da noite.
Elisa relata sua experiência como funcionária de uma empresa, em condições tão enlouquecedora que viver de catar material reciclável se revelou bem mais saudável, tranqüilo e rentável. No emprego, passou fome, não tinha dinheiro pra comprar comida nem pros filhos, enquanto como catadora nunca lhe faltou o que comer. Uma indicação do que reserva o famigerado "mercado de trabalho" a quem não teve a oportunidade de estudar e se qualificar numa escola decente. É a angústia de milhões de vidas submetidas a esse sistema paranóico, da qual a catação livrou Elisa, que vive em paz da sua maneira.
O Movimento Nacional dos Catadores estima em um milhão o número de catadores no Brasil, cuja atividade recolhe apenas 13% dos 90 milhões de toneladas de lixo por ano. Só com essa fração são movimentados 12 bilhões de reais por ano. Isso explica a entrada de empresários na atividade, de olho nos lucros. Em São Paulo, vitrine nacional do preconceito, catadores foram expulsos, queimados, sabotados por essas empresas que, na busca de lucro e em seu desprezo pelo ser humano, fazem de tudo pra "eliminar a concorrência", o último recurso dos miseráveis urbanos, antes de se conformarem com a morte da alma e, por inanição, do corpo. A miséria é, a meu ver, a vergonha maior de uma sociedade, tenha ela olhos fechados ou abertos. Não ver a realidade não a elimina, nem a modifica. Apenas revela a vitória, até agora, do mau-caráter dos poderes que se proclamam, falsamente, públicos. A miséria material é conseqüência de outra e mais profunda miséria. A miséria da alma, a miséria moral.
Um belo trabalho de Joe Nunes e sua turma de ativistas. O documentário se inscreve entre os imprescindíveis para a formação de consciência social e humana. Na minha opinião, é claro, que ninguém precisa considerar, embora alguém possa.
* Aqueles raros que vão contra a corrente predominante. Raros, mas contagiantes e cada vez mais numerosos.
Eduardo, valeu pelo compartilhamento, como lhe falei num email, vale demais essa onda de partilhar materiais positivos à consciencia. É bom demais conhecer outras realidades, até por que, aqui na baixada, não há tantos mendigos pelas ruas, por que a esmagadora maioria da população beira a miséria (apesar de haver uns 0,5% de nego endinheirado nos nanopontosnobres da região. Enfim, há muito o que fazer e por muito tempo andei perdido em relação a que ponto começar, mas após algum tempo de leitura e observação, descobri que não há outro rumo: devo começar por mim. E a cada passo que eu der, que eu comece novamente, pra não perder a alma amadora, nem a humildade necessária.
Bárbaro! Vou assistir, impressionante como têm surgido produções, trabalhos e ações sociais com os catadores. Conheço-os/as muito bem, convivo com eles há anos, desde que comecei a trabalhar com economia solidária. Gente valorosa e lutadora. Em Santa Maria - RS, tem uma associação, a ASMAR, que me encanta e comove... sua liderança, Margareth, era analfabeta em 1996 (quando começou o grupo, fomentado pela Cáritas e igreja progressista de lá, turma do bem de Dom Ivo e Irmã Lurdes) e hoje cursa Serviço Social, têm uma organização exemplar e são das pessoas mais dignas que conheço. Enfim... tem muita luz no mundo; muitas luzes. Por isso vivemos, e não desmoronamos na escuridão :)
Estamos em processo, e o momento me parece ser de despertamento. Há um "sacode" geral acontecendo, pouco a pouco, mas a contaminação é grande e atropela os mecanismos criados pra impedir.
Cara, como é bom ler você! Tenho estima pelas suas escolhas e posturas na vida. Tô no meio de uma leitura que acho que vc se interessa, se é que já não leu. O cara chama-se Jessé Souza, trabalha por uma socialogia comprometida com a gênese de toda essa merda que estamos metidos. Se propõe num exercício reflexivo da crítica que se baseia não no economicismo e toda essa lógica nojenta que vem afundando a academia e toda a pseudo intelectualidade brasileira, de pesquisas que vomitam números e pouco, ou melhor dizendo, nada dizem. Sua pesquisa é qualitativa e realmente diferenciada. O livro se chama "A Ralé Brasileira". Ele vai no "x"da questão tirando o véu de muitas questões veladas que todos nós preferimos ignorar, a questionar a real legitimidade desses privilégios, indo na direção do que vc apontou no seu texto: "A miséria material é conseqüência de outra e mais profunda miséria. A miséria da alma, a miséria moral" - que ele chama também de miséria simbólica. Critica ferozmente a meritocracia. Um forte indício tb pra ver que o cara é comprometido e sério, é que fiz uma pesquisa e pude observar que ele é ignorado por toda ala acadêmica e pelos principais nomes da antropologia que tem espaço na mídia dita de esquerda. abçs, Camele (Salvador-Ba)
Eduardo, valeu pelo compartilhamento, como lhe falei num email, vale demais essa onda de partilhar materiais positivos à consciencia. É bom demais conhecer outras realidades, até por que, aqui na baixada, não há tantos mendigos pelas ruas, por que a esmagadora maioria da população beira a miséria (apesar de haver uns 0,5% de nego endinheirado nos nanopontosnobres da região. Enfim, há muito o que fazer e por muito tempo andei perdido em relação a que ponto começar, mas após algum tempo de leitura e observação, descobri que não há outro rumo: devo começar por mim. E a cada passo que eu der, que eu comece novamente, pra não perder a alma amadora, nem a humildade necessária.
ResponderExcluirGrandes pessoas! os entrevistados e os que fizeram o filme! Como tu disse temos que divulgar pra que alguém possa considerar! Abraço!
ResponderExcluirA galera é foda! :)
ResponderExcluirGrande post Eduardo.
Abração!
Bárbaro! Vou assistir, impressionante como têm surgido produções, trabalhos e ações sociais com os catadores. Conheço-os/as muito bem, convivo com eles há anos, desde que comecei a trabalhar com economia solidária. Gente valorosa e lutadora. Em Santa Maria - RS, tem uma associação, a ASMAR, que me encanta e comove... sua liderança, Margareth, era analfabeta em 1996 (quando começou o grupo, fomentado pela Cáritas e igreja progressista de lá, turma do bem de Dom Ivo e Irmã Lurdes) e hoje cursa Serviço Social, têm uma organização exemplar e são das pessoas mais dignas que conheço. Enfim... tem muita luz no mundo; muitas luzes. Por isso vivemos, e não desmoronamos na escuridão :)
ResponderExcluirEstamos em processo, e o momento me parece ser de despertamento. Há um "sacode" geral acontecendo, pouco a pouco, mas a contaminação é grande e atropela os mecanismos criados pra impedir.
ExcluirParabéns, Eduardo. Grande postagem. Com certeza vou ver esse filme. A opinião de alguém que fala com amor deve, em absoluto, ser considerada. Abraço!
ResponderExcluirO despertamento em Natal, ontem...
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=Rky4RyVMWMU
Cara, como é bom ler você!
ResponderExcluirTenho estima pelas suas escolhas e posturas na vida.
Tô no meio de uma leitura que acho que vc se interessa, se é que já não leu. O cara chama-se Jessé Souza, trabalha por uma socialogia comprometida com a gênese de toda essa merda que estamos metidos. Se propõe num exercício reflexivo da crítica que se baseia não no economicismo e toda essa lógica nojenta que vem afundando a academia e toda a pseudo intelectualidade brasileira, de pesquisas que vomitam números e pouco, ou melhor dizendo, nada dizem. Sua pesquisa é qualitativa e realmente diferenciada. O livro se chama "A Ralé Brasileira". Ele vai no "x"da questão tirando o véu de muitas questões veladas que todos nós preferimos ignorar, a questionar a real legitimidade desses privilégios, indo na direção do que vc apontou no seu texto: "A miséria material é conseqüência de outra e mais profunda miséria. A miséria da alma, a miséria moral" - que ele chama também de miséria simbólica. Critica ferozmente a meritocracia. Um forte indício tb pra ver que o cara é comprometido e sério, é que fiz uma pesquisa e pude observar que ele é ignorado por toda ala acadêmica e pelos principais nomes da antropologia que tem espaço na mídia dita de esquerda. abçs, Camele (Salvador-Ba)