quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Satisfação aos contribuintes, aviso e pedido...

Chegando na Moita, mais exatamente na Pocilga, onde fomos recebidos com carinho e liberdade, por duas vezes.

Voltamos a Mariana, daqui vou pra casa. Tô precisando expor, devo estar em Santa Teresa sábado, 19, e de segunda a quarta, 21 a 23. Dia 25, madrugada, vamos pra Visconde de Mauá dar uns abraços e beijos na descendência, filha e netas, seguindo pra Sampa dia 26, a ver a movimentação da molecada nas escolas ocupadas,com o parceiro Adelson DeChaves Del, que tá lá agitando com a moçada, a mais antenada em décadas. Fico até 29 ou 30, volto à serra de Mauá, exponho no fim do ano, fico dois ou três dias a mais, vendendo, passo em casa, resolvo problemas mais urgentes da kombi e sigo pro vale do rio Doce. Aprofundar o serviço, porque ir ao fundo cria condições de revelar essa fração da sociedade que, por sua vez, pode criar a oportunidade de ver a realidade como ela é, como funciona e por quê é assim.

A grana que deu pra levantar nesta primeira parte, em torno de três mil reais, pouco menos, sustentou a viagem. Ainda tem pro gás de volta, com direito a uma refeição e um lanchinho. Agradeço demais as contribuições que possibilitaram nossa liberdade de ação entre os vários pontos onde fomos, na maior catástrofe ambiental da história do Brasil. Pra quem não sabe, postamos muito do que captamos na página do feice Narrativas do Vale, graças aos contribuintes desta iniciativa.

O Rafael Lage, fotógrafo e cineasta que tá juntando as cenas pra formar um documentário, armou um financiamento coletivo internético, tal de craudifáundim, logo que começamos o trampo. Isso tem uma data de recolhimento, uma declaração de quanto se pretende como necessário pra fazer o que nos propomos e um prazo pra botar a mão na grana. Estamos juntos nesta iniciativa. Ambos já pusemos grana do bolso, mas ambos temos bolsos muito pequenos. Já atingimos quase 70% do pretendido, mas faltam 13 dias pro encerramento do troço. Os que puderem, que não contribuíram ainda, gostaram do trabalho de divulgação e querem contribuir, ou que desejam contribuir de novo, o link taí, bora lá, moçada, tá na hora.



O Rafael vai ficar pela região na época do fim do ano, entre os afetados e as ruínas, colhendo mais material. Eu volto no início de janeiro pra continuar até o litoral, captando e transmitindo, colhendo e distribuindo informações, imagens e opiniões que não são ouvidas ou mostradas.

A tragédia do rio Doce mostra a estrutura social, pelo ângulo da mineração. "Buraco de Rato - um filme sobre a Vale S.A."


Em todas as áreas da sociedade, o seqüestro dos poderes públicos pelos poderes econômicos mantém no poder real um punhado de famílias podres de ricas, sobre a sociedade inteira. A educação não educa, ignorantiza e enquadra. A saúde pública, claramente sabotada, é um cenário horroroso, em sua precariedade, pra induzir aos diversos planos de saúde - escolas de medicina infiltradas por laboratórios e indústrias da medicina ensinam médicos a receitar remédios e procedimentos. Construtoras da indústria imobiliária financiam governos pra expulsar comunidades pobres das áreas valorizadas. Transportes, energia, água, vias públicas, em todas as áreas prevalece o interesse empresarial sobre o público. As populações, desinstruídas, são facilmente teleguiadas, exploradas e incutidas de sua impotência, sua inferioridade, ou de que tudo é assim mesmo e nada se pode fazer senão tratar de si e dos seus mais próximos, que é incompetência ou corrupção dos políticos a causa de todas as mazelas sociais provocadas pelos mesmos interesses parasitas. O controle banqueiro-empresarial, confirmado por nossos valores, comportamentos, objetivos de vida, visão de mundo, tudo construído em nosso próprio inconsciente pela educação condicionante e pelo massacre publicitário midiático, com o apoio tradicional da religião, das tradições e outros fatores complementares, nos fazem construtores e colaboradores desta estrutura social injusta, perversa, covarde, destrutiva, suicida.
Aqui se trata da área da mineração, a catástrofe do rio Doce foi causada pela mineração predadora das grandes empresas, infiltradas no aparato público de todas as formas, desde o financiamento de campanhas políticas até a indicação de seus agentes para cargos públicos estratégicos pros seus interesses, sempre contra as populações e seus direitos. Um dos maiores desastres ambientais do planeta é minimizado em suas conseqüências.

A medicina lucrativa pisca pra mineração, "valeu, parceria". Daqui a uns anos os metais tóxicos renderão uma grana com os problemas neurológicos, cânceres e outras doenças causadas pelos metais pesados que estão sendo absorvidos em quantidades imensas, desde o rompimento da barragens e o espalhamento dos seus rejeitos altamente tóxicos por todo o vale do rio Doce. Há que se considerar, também, a construção de presídios - evidentemente privados - pra abrigar a criminalidade que surgirá breve, diante das centenas de milhares de pessoas que perderam seus parcos ganhos com a morte do rio, gente que, de muitas formas, viviam do rio Doce. A miséria, o desespero, a fome são os maiores produtores mundiais de criminalidade. Os programas cênicos de assistência aos prejudicados fazem parte de um jogo velho que acaba assim que outros assuntos tomarem os noticiários - que voltarão a se ocupar da área quando as conseqüências aparecerem, mas nunca revelando as causas e sempre tirando algum proveito.

Os vampiros agem nas sombras. A nação está permanentemente em risco e em prejuízo com sua atuação infiltrada nas instituições do poder público, em todas as áreas. Seus eleitos conspiram nos bastidores e nas encenações a serviço dos interesses vampirescos, banqueiro-mega-empresariais. Detonam o público em favor do privado.
Não há democracia além da fachada, cenário armado e controlado, apesar de quixotescas figuras que ainda acreditam que podem mudar essa estrutura social criminosa através dessa "democracia" farsesca infernal, descumpridora de sua própria constituição.

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"Este filme é uma produção da Comunicação do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração com o apoio da "Ajuda" da Igreja da Noruega e da "Bem-Te-Vi Diversidade" e conta um pouco da história da Vale com foco na prática da espionagem.

O filme mostra como a empresa Vale S.A espiona movimentos sociais, lideranças comunitárias e ONGs que defendem os direitos das comunidades impactadas pela exploração e escoamento do Minério.
A Rede Justiça nos Trilhos assim como outros tantas organizações, movimentos e lideranças, também foi espionada pela empresa."
http://www.justicanostrilhos.org/
http://www.justicanostrilhos.org/Assista-ao-filme-Buraco-de-Rato


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Passagem rápida pelo território Krenak, saímos pesados de tristeza.

Watu, o rio Doce, sem vida, "não pode nem botar o pé", como diz o cacique.

A ponte da área onde mora o cacique Rondon e sua família.

As únicas vidas são as que vivem da carniça. Se vão morrer pelos metais pesados, não sei. Acredito que sim, espero que não.

Estivemos ontem na área indígena dos Krenak, perto de Resplendor, na beira do rio Doce. Ninguém, em toda a região do vale, tem tanta consciência da importância, do tamanho desse colapso. O rio, que eles chamam de Watu, espírito de união do povo, está morto. Os olhos do cacique mostram o espanto diante do vazio, perderam a condição de ver o futuro, de ter esperança, não há mais nada no futuro. Não há peixe, não há bichos, não há mais a água sagrada que, mesmo suja, poluída pela civilização com esgotos e rejeitos vários, ainda curava, dava o alimento, unia o povo krenak. Os rituais religiosos eram no templo do Watu. “No fim do ano a gente faz o ritual de limpeza do espírito, de união, nas águas do Watu. Toda segunda, quarta e sexta nós reunimos no ritual do rio. O que que a gente vai fazer agora?” Quando pergunto “... como é que vai ser daqui pra frente?”, Rondon desvia o olhar, “nem quero pensar nisso...”, mostra a pauta das necessidades imediatas num documento que fizeram através da Funai, “tudo vai depender disso aqui”, e chora. O histórico das mentiras civilizadas, através dos séculos, invariável, é arrasador. Minha alma chora com ele.

Ninguém se deu ao trabalho de avisar os Krenak. Eles não souberam da barragem de rejeitos químicos rompida, a não ser quando chegou a lama venenosa, de madrugada, trazendo os peixes mortos em primeiro lugar, com mais um montão de destroços, troncos, animais mortos e o mau cheiro que caracterizou todos os lugares onde passou a lama tóxica da morte. Rondon foi o primeiro que viu. Ninguém lembrou deles, ninguém pensou neles, só se olha pra eles quando, por exemplo, interromperam a passagem dos trens que transportam minérios de Minas pro litoral. Aí são bugres, ignorantes, subversivos, baderneiros, obstáculos ao progresso – tecnológico, claro, pois não se pensa nem se fala no progresso moral, tão ausente em nossa sociedade, essa da forma sem conteúdo, do corpo sem alma. Eles conseguiram, com sua “subversão”, um pouco de água pra beber, ração pro gado, algumas caixas dágua que eles não têm como encher sem os caminhões-pipa da prefeitura que, eles sabem, deixarão de levar água assim que puderem, que o assunto esfriar, que os olhares forem pra outros lados. E eles não têm outras fontes. Como é que vai ser daqui pra frente?

Rondon tinha acordado cedo, inquieto com a premonição da sua mãe, e saído de casa pra beira do rio, ouvindo um barulho estranho. Chegando nas pedras, viu milhares de peixes mortos chegando, aquela lama espessa cobrindo a água. Sua mãe, Laurita, anciã respeitada por todos, previu a morte do rio, “Watu veio chorando no vento, eu ouvi o choro e disse, a morte vem pelo rio”. Era noite, duas antes da morte do rio. Ninguém pôde imaginar o tamanho da devastação, apesar de já esperarem mais um acontecimento ruim.

Enquanto o povo originário não recebe informações dignas, o vale inteiro do rio Doce está à mercê das mentiras institucionais, tanto da empresa quanto do estado.

A lama carregada de metais pesados, altamente tóxicos, que se acumulam no organismo pra explodir em problemas neurológicos, cânceres e várias outras doenças, é declarada “inerte”, inofensiva, até mesmo sugerida como adubo, num escândalo de cara de pau, de cinismo e hipocrisia. O cenário é tratado por eles (funcionários da mineradora e representantes do poder "público") como um cenário mesmo. A realidade não importa, desde que se possa mascará-la o suficiente pra continuar o processo de destruição, pra se manterem nos poderes os mesmos que estão, os parasitas, os inimigos da humanidade, criadores e mantenedores dessa estrutura social criminosa. Não importam as doenças que aparecerão daqui a oito, dez anos. Não importam as conseqüências que caírem sobre a população. Os laboratórios farmacêuticos, a indústria da medicina lucrativa saberá dar uso a todo esse sofrimento, oferecendo seus serviços em troca dos bilhões que resultarão. É um escárnio diante da humanidade.

Os trens passam do outro lado do rio, o dia inteiro, vários por hora. E apitam diante dos krenak. Vai entender...

A ponte destruída desde a enchente de 2013 não recebeu reparo. Nem município, nem estado, nem união assumem.

A cara mais sinistra dessa ponte é a da chegada.

Abandono pelo poder público, uma realidade permanente. E ainda é pior quando empresas estimulam o ódio, por interesses.

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O massacre dos povos originários é feito desde a chegada dos colonizadores europeus. Oficialmente portugueses, mas vários países da europa estavam representados aqui, entre os invasores. Relações amistosas só eram mantidas por interesse dos exploradores. Nesse território não havia acumulação de bens e as riquezas estavam à disposição de todos, igualmente – as verdadeiras riquezas. O povo krenak, originalmente botocudos – a mudança de nome serve à estratégia de esquecimento que envolve os crimes estruturais da sociedade – passou por inúmeros massacres, desde a “guerra justa” decretada por d. João VI, quando veio pro Brasil fugindo do exército de Napoleão Bonaparte e aqui ficou por uns quantos anos. Houve dispersão e reencontro, várias vezes, do recôncavo baiano se reagruparam no vale do Mucuripe, eram perseguidos, dispersados, muitos morriam, os que escapavam se reencontravam e seguiam, até que o vale do Watu os acolheu. Aí chegaram os interesses mineradores, grandes empresas que compravam governos e impunham ferrovias, ah, mas tem uns índios lá, fodam-se os índios, bota pra correr, isso é igual bicho, tem que enxotar. Expulsos, assassinados, dispersos, se reuniram de novo e seguiram vivendo. Muito tempo depois, apareceu a Funai e os remanescentes receberam as terras que lhes pertenciam. De um lado só do rio Doce, do outro passa a ferrovia da mineração, toda hora passa um trem, vários por hora. Em frente às casas dos krenak, apitam, do outro lado do rio. Um cumprimento dos maquinistas, em solidariedade intuitiva com aquele povo injustiçado que conseguiu uma migalha do que lhe foi roubado? Ou um deboche dos exploradores, requinte de ironia marcando o sentimento de desprezo diante das casas das suas vítimas?


Um grupo pequeno de mãe e um casal de filhos, Laurita, Ni e Rondon, encontra um agente do estado que lhes afirma, incauto, que era impossível eles serem krenak porque os krenak estavam extintos. A senhora desferiu um arsenal de insultos em seu idioma, diante de um funcionário atônito e sem saber o que fazer. A filha, Ni, interveio nesse momento, “o senhor sabe o que ela falou? Ele, espantado, “não...” “como o senhor está dizendo que nós estamos extintos, se até nosso idioma está vivo?” Foi o início da luta que lhes devolveu ao menos um pedaço do que lhes foi tomado. Um pedaço mínimo.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Vídeo gravado em Santa Teresa, com o toque da sensibilidade de Pedro Céu.

Esse vídeo foi gravado numa exposição em Santa Teresa, como tantos outros. A sensibilidade do Pedro apurou as informações e deu o clima nas idéias. Valeu, meu camarada Pedro Céu.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O velho e o rio


Sentado na pedra, na sombra das árvores, o velho olhava o rio. O que restou do rio, debaixo de terras, areias e troncos. Olhava, olhava, vendo e não vendo. Eu vi o velho, de longe, me aproximei e sentei do seu lado. Os olhos andavam pelo tempo, a imagem dos tantos anos vividos naquelas beiras, naquelas águas, apareciam sobre a imagem do presente. Era quando brilhavam os olhos do velho. Nunca mais vou ver esse rio, meu filho. E vinham as imagens de uma vida inteira, desde menino eu brincava aqui com os amigos, nadava, pulava na água dos gaio das arvre, lá de cima. A bóia de câmera de ar, pneu de trator, as guerras de mamona, pegava na pele, queimava, nóis pulava no rio pra passar. Depois, mais crescido, vinha namorar na beira do rio, ô coisa boa, a beleza de ver a lua no céu, e ali debaixo da ponte, hein? Ali era bão dimais, hum, hum... Nos domingos, vir com a família pra beirada, pescava os peixes com os parentes, fazia ali mesmo, numa churrasqueira improvisada, reunia o povo, era bão dimais. Vinhas as voadeiras fazendo estripulia, os meninos cavarga que nem cavalo na água, pula fora dágua, cai pra dentro. Às vez vinha pertim da gente, a gente recramava, levantava a terra do fundo, espantava os peixe, trapaiava a pescaria. A gente achava ruim, mas era bonito aquele espaiar de longe, aquelas curva qu’eles fazia, aquele espirro d’água pra cima. Os olhos dele brilhavam, vendo o passado rolando na frente deles. Aí ele voltava prali, diante do rio morto, nunca mais vou ver esse rio, meu filho. Tô com oitenta e quatro anos, cabou pra mim, não tem tempo de ver o rio outra vez. Ele olhava as máquinas sobre o rio, aquele palheiro de troncos trazidos desde Mariana, dos vales do rio do Carmo, de Bento Rodrigues até ali. Talvez só as crianças vão ainda ver esse rio limpo, se é que vão. Eu puxava pela memória dele e seus olhos brilhavam, saíam dali pra outros tempos, ele quase sorria, lembrando, contando, revivendo. Mas caíam de volta no presente, dava pra ver a expressão mudando a alegria imaterial caindo numa tristeza sólida, tava ali, na cara. Era um abismo, ele vinha ao fundo, tava ali, era o presente, a realidade na nossa frente, eu olhava as máquinas, a quantidade infinita de troncos em confusão, embolada, o velho olhava parecendo distante. Ele não queria estar ali, mas vinha, sem pensar, a cabeça vazia, só o sentimento o trazia, ele sentava e ficava olhando. Sem pensar, às vezes lembrando, lembrando... ele preferia estar nas lembranças, o olhar longe no tempo, quando o rio era mais limpo, mais cheio de peixes. Ele tava fraquinho, já vinham estragando ele, mas ainda tinha muito peixe, muita água, muita coisa. Agora mataram ele, morreu o rio, é como morrer um parente, é mais que isso, é a morte da família inteira, de muitas famílias. É, meu fio, acabou pra mim. E o velho me olhou pela última vez e foi embora, sem levantar dali, silenciando e olhando, às vezes vendo, às vezes sem ver. Eu não tinha mais o que dizer, ele não tinha mais o que falar. Quando levantei e me despedi, ele apenas levantou a mão, olhando longe, sem ver. Já mais distante olhei pra trás. Ele estava lá, sentado, magro, cabeça branca, silencioso, olhando o rio... o rio morto.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Rio Doce, a cidade

A hdrelétrica Rizoleta Neves foi esvaziada na expectativa dos próximos possíveis rompimentos de barragens. Indício claro da "confiança" da mineradora em suas próprias barragens de rejeitos altamente cancerígenos.


Ontem saímos de Mariana em direção à hidrelétrica Rizoleta Neves – aquela que foi mulher do Tancredo -, por causa dos rumores da ameaça de um novo rompimento das represas de rejeitos químicos acima da de Fundão, a que acabou com vários povoados e matou o rio Doce. Em Rio Casca o gás estava acabando, procuramos gasolina mas o posto estava fechado. Um funcionário nos disse que em Rio Doce havia um posto aberto até mais tarde e nós fomos pra lá. Chegamos no começo da noite, tanques quase vazios – gnv e gasolina -, mas também estava fechado. Fazíamos um lanche quando conhecemos Alex, operador de máquinas, escalado pra retirar os troncos acumulados no rio. Mostramos as fotos de Bento Rodrigues e ficamos conversando até ele ir embora.

Tivemos que esperar o dia, saímos da cidade e paramos no trevo de entrada, onde havia um caramanchão no ponto de ônibus, perfeito pra gente dormir. E foi o que fizemos. Os mosquitos estavam frenéticos, mas nós estávamos cansados e dormimos.

Dia amanhecido, tomamos um café e fomos abastecer a viatura. O dono do posto contou como foi a chegada da lama contaminada. Prevista pra chegar às seis da manhã, a onda de rejeitos estava sendo esperada por várias pessoas na ponte e ele estava lá. A maré tóxica chegou na hora prevista, trazendo os troncos arrancados ao longo do trajeto, dois corpos nus logo na frente. Ouvi das pessoas com quem conversamos que foram retirados cinco corpos na área de Rio Doce, mais vários pedaços, pernas, braços... não se vai saber quantos morreram na lama. Os troncos congestionaram na área de lazer aquático da cidade, o barco de passeios turísticos encalhou na beirada, depois da primeira parte da enxurrada, mais volumosa, baixar alguns metros, o acúmulo foi tal que, enquanto a corrente continuava, a massa de madeira, parada, estalava com a pressão. Ele não entrou em mais detalhes e não quis dar entrevista, “eu não podia ficar muito tempo, tinha que abrir o posto”. 

Abastecemos com gasolina e fomos pra ponte, perto da base dos trabalhos. O rio era só troncos empilhados, lama dura e água lamacenta dos rejeitos, em nuances já vistas desde Bento Rodrigues, passando nas valas entre os montes, tanto dos rejeitos quanto das madeiras. Várias máquinas trabalhavam, dando a impressão de que eram insuficientes pra tanto entulho. Disseram que estavam dando as toras pras carvoarias da região, mas vi poucas carvoarias praquela madeirama toda. Depois de tantas mentiras, não dá pra acreditar em nada que venha de empresas ou funcionários – eles também são enganados quanto às intenções, embora saibam o que está acontecendo na prática, que tampouco é divulgado. Soubemos que a represa deixou passar um bocado, mas depois fechou e a força da correnteza formou uma onda na direção contrária, subindo o rio de volta. Pessoas que estavam na ponte variam nas avaliações do tamanho dessa onda, entre dois e três metros de altura. Tiramos fotos do barco, da área, das máquinas, da ponte. E fomos pra represa.

O barco de passeio, inútil, será retirado por guindastes e transportado em carreta pra outro lugar, navegável.
O rio Doce entulhado, o barco encalhado e a ponte ao fundo.

As máquinas parecem trabalhar em vão, diante do mundo de troncos em montanhas.



Depois da ponte, continua a aglomeração de troncos arrancados em Mariana, pela força do rompimento, pela maré da morte.

É de perder a conta a quantidade de montes e mais montes de vegetação arrancada, de troncos e galhos.

A vista da ponte sobre o rio Doce e o caminho que segue pra represa da hidrelétrica, que tem as turbinas desligadas. Não consegui saber onde ficou sem energia com isso, não está faltando nas casas da região. Talvez fosse uso industrial.


Havia notícia de uma estrada interrompida, mas a que usamos não tinha interrupção, entramos numa estradinha de terra que levava à Pedra do Escalvado, em Santa Cruz do Escalvado, área de trilhas bastante freqüentada. Passando dali, a estradinha piorava muito e por ela fomos até a represa. A marca da maré estava bem alta, mas as comportas estavam abertas, confirmando o que ouvimos, que estavam esperando que se rompessem as barragens de rejeitos acima da de Fundão, de onde saíram os milhões de toneladas que destruíram a vida no vale do rio Doce. Por isso esvaziaram a hidrelétrica. A marca da lama estava pelo menos dez metros acima do nível da água, ou melhor, daquele líquido viscoso cor de terra vermelha. A destruição nas margens é a mesma de rio acima, uma desolação homogênea que só perdia em tamanho pro início da tragédia, nos distritos de Mariana. Registramos as imagens e seguimos pela trilha, cheia de buracos, pedras, gado e atoleiros. À nossa direita, o rio descia pra represa, sem parar, mas não vi troncos naquele trecho, apenas os rejeitos acumulados em montes secos dentro do rio e as margens devastadas até grande altura do nível da corrente.

Rafael prepara a captura de imagens.

Vista por dentro, se vê a marca de onde chegou a lama química, antes de abrirem definitivamente as comportas.

O vermelho tóxico e o azul da Celestina. Ela carrega uma câmera na testa.

Foi do lado de lá que a estrada desabou, impedindo a passagem.

Ao longo do rio se vêem os montes de rejeitos químicos cancerígenos deixados pelo tsunami da morte.



Na volta, paramos de novo no canteiro de obras onde antes era a área de lazer aquático, sem saber muito bem por que. Eu quis fotografar o “Quiosque”, transformado em base de operações, mas a imagem não favorecia. Caminhamos na direção do barco, eu tinha visto um homem velho, magro, sozinho, sentado numa pedra debaixo das árvores perto do barco encalhado, olhando a montanha de troncos e a máquina que parecia deslocar as madeiras de um lado pro outro, a esmo, trabalho com aparência de inútil, diante do tamanho dos “montes”. Cheguei nele, perguntei se estava trabalhando ali, ele riu um riso triste, “trabalho só na minha rocinha, nas minhas criações, com 84 anos não tem emprego pra mim, não”. Surpreso com a distância entre a idade e o aspecto, sentei do lado e ficamos conversando um pouco. Ele tinha uma tristeza profunda nos olhos, “cabou o rio”. Ele não tinha nenhuma relação de ganho com o rio Doce, como tanta gente por ali, mesmo sua roça usava água de outras fontes mais próximas, não seria afetada pelos venenos. Mas ali ele tinha os prazeres da vida, se reunia com a família, pescava, compartilhava os peixes preparados ali mesmo. “Era bonito ver as voadeiras (jetskis) passando, jogando água pra cima, fazendo curva, os meninos faziam elas ficar em pé... às vez passava pertim da gente e a gente achava ruim, levantava o fundo do rio, espantava os peixes...” Agora ele tava com saudade daquilo, a melancolia no olhar era evidente, contaminante. “Eu vi muita enchente por aqui, maior que essa, a água foi até lá em cima” e apontava pra além da estrada. “Mas era água, depois que ia embora voltava tudo como antes”. Silenciou por uns instantes, depois completou em tom mais baixo...“nunca mais vou ver o rio, tô com 84 anos, não vou ter tempo de ver. Muita gente mais nova também não vai, talvez só as crianças, daqui a muitos anos. Talvez nem elas...”  Seu Idalino chorava pela boca. Eu não tinha o que dizer, sofri junto, entendi a dor dele, compartilhei um pouco. Levantei pra ir embora, um tapinha nas suas costas, um nó na garganta, não pude dizer nada além de “fica com deus, seu Idalino”, ele nem respondeu, acenou com a cabeça e levantou a mão, olhar perdido entre os emaranhados de troncos que agora tomavam a lagoa antes azul que se formava nessa área perto da ponte. Sua tristeza era sólida, funda, contagiante.

Voltamos a Mariana, onde nos escondemos e nos recuperamos na Moita, mais especificamente na Pocilga. Entenda quem puder.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.