Impressionante é o mínimo que expressa o sentimento.
Devastação apocalíptica nos povoados de Mariana, onde as pessoas parecem
anestesiadas, sem acreditar no que estão vendo, na destruição plena e
contaminada. Parece uma daquelas pancadas que se sente o choque e se sabe que a
dor virá em seguida, surgindo com o tempo, do fundo abalado pela porrada. A
devastação resultante é como um rastro da morte que passa em massa e arrasta
tudo o que encontra pela frente. Na beira dos rios, ribeirinhos pobres se
instalaram, desde sempre, em área de ninguém, se arriscando nas enchentes, se
prevenindo com lugares mais altos, protegendo suas pequenas importâncias ou perdendo
o pouco que têm, pra conseguir tudo de novo aos poucos, numa seqüência de cair
e levantar comum aos mais pobres. Pescadores, lavradores, garimpeiros viviam
nas beiras dágua, muitos com família, em barracos improvisados, de taipa,
estuque, chão batido, telhados de palha, criando seus patos, às vezes porcos,
galinhas, lavouras variadas. Estavam tranqüilos, não havia chuva, não havia perigo de enchente, quando ficam todos de orelha em pé no nível do rio. Ninguém os avisou, eles não tinham como se informar. Pelo Gualaxo do Norte, pelo rio do Carmo até o Rio
Doce, o volume da lama de rejeitos da mineração subiu as encostas, arrancando
árvores, levando casas, pontes, máquinas, carros, tratores, tudo, num estrondo
enorme. No meio, essa gente ignorada, invisível na sociedade, que não entrou na
conta dos mortos.
“Com os troncos vieram pedaços de gente, orelha, braço,
costelas, pés, tudo picado pela madeirama, não deu pra contar. Na frente da
troncarada tinha dois corpos inteiros, que a gente tirou e a turma da Samarco
levou.” Dono do posto na cidade de Rio Doce.
Em Rio Doce ficou a maior aglomeração de troncos que eu vi na região. Desceram da serra enquanto a inclinação é forte, em Rio Doce o vale já ameniza a inclinação, o peso dos troncos os faz parar. |
“Eles tão vendendo essa madeira toda. Tão separando as de
qualidade pras madeireiras, as sem qualidade pras carvoarias. Eles não perde
nada.” Funcionário terceirizado pela Samarco, num dos canteiros de obras
improvisados em Rio Doce, a cidade.
“A gente ouviu falar, telefonaram pra cá avisando que a
barragem tinha rompido. Mas são oitenta quilômetros de lá até aqui, era pra
lama ter acabado pelo caminho. Ninguém acreditou, ninguém tomou providência,
ninguém tava preparado.” Papagaio, ex-garimpeiro e faz tudo na prefeitura de
Barra Longa.
Quintais envenenados, hortas atropeladas pelos metais pesados. |
“Parecia o rugido de mil bichos, urrando pelo escuro, de madrugada,
cobrindo esses terreno tudo, chegando nos quintais, subiu por aqui, foi lá em
cima, acabou com tudo que tava plantado, e foi descendo rio abaixo aquele
rugido medonho. Aqui tinha de tudo, horta, fruta, cana, feijão, criação, até
pros passarinhos a gente plantava, preles vir cantar.” Rômulo, dono da birosca
feita em sua casa, onde comemos peixe vindo de outro lugar, trazido pelo
Papagaio.
O departamento de márquetim da Samarco é um dos mais
exigidos depois do rompimento da barragem. O “janeiro cultural” que a empresa
armou pra entreter e ocupar os flagelados pela lama química, além de gerar
ótimas imagens com os sorrisos que esperavam nas crianças, não teve muita
adesão, ninguém se interessou. Eles preferiam ter suas casas de volta, seu
trabalho, suas hortas e criações, suas ocupações cotidianas. Isso a Samarco não
pode nem pretende dar.
Mas o departamento de márquetim é persistente. Agora chamam
os flagelados, os quase mortos, os que perderam tudo, de “beneficiários”. Incrível.
A cara de pau não tem limites.
“Ninguém avisou a gente, a gente não sabia de nada, quando
viu era o rio morrendo e morrendo tudo dentro dele. Minha mãe tinha sonhado na
outra noite, contou pra gente e eu não consegui dormir, pensando no sonho dela.
A morte tá vindo pelo rio, ela disse. Eu levantei de madrugada, sem sono, fui
pra beira do rio. Tava amanhecendo quando eu vi chegar essa lama, aquele monte
de peixe morto na frente da onda. Parecia uma coberta, não vinha na água, vinha
cobrindo a água, como uma pele, um cobertor, por cima da água.” Rondon, cacique
no território krenak.
Agora, na área dos krenak, só os cães e os urubus andam entre as pedras do rio Doce. Carniça contaminada. |