segunda-feira, 4 de setembro de 2017

As entranhas da sociedade

O 'Atlas da Violência' (Ipea - Instituto de Estudos Econômicos Aplicados) diz que 70% dos mortos por armas de fogo são negros e mestiços. O jornalista Boechat se escandaliza. Responsabiliza a "classe política", o "andar de cima", em oposição aos duzentos milhões do "andar de baixo". Mira nas alfândegas, na "negligência" dos agentes do Estado, na perseguição de fronteira aos sacoleiros e não às armas que entram livremente, na preocupação das "autoridades" em "se encher de grana". Atribui às instituições todas as mazelas sociais - e não toca nos verdadeiros controladores de toda a estrutura social e da farsa das "políticas públicas". As tais "delações premiadas" são tratadas como fatos isolados, como revelação de uma relação corrupta, não como o descaramento do modo de funcionamento do Estado, do funcionamento rotineiro das instituições nas relações com os poderes econômicos, em permanente promiscuidade público-privada.

Essas "delações" revelam como o "poder público" se relaciona com empresas, o "poder privado", a naturalidade das propinas e das trocas de favores com o dinheiro e patrimônio público, tanto no Brasil como em outros países. As conseqüências diretas na sociedade - miséria, ignorância, violência e criminalidade - são desligadas das suas causas. Fico pensando se Boechat sabe, percebe essa promiscuidade e não fala porque não pode, ou se ele pensa que vê mesmo as causas da barbárie social em que vivemos nas instituições constituídas, e não nos seus constituidores - mega podres de ricos que chafurdam em privilégios, luxos e poderes acima dos institucionais.

A concentração de riquezas nas mãos de um punhado de podres de ricos coloca poderes irresistíveis nestes parasitas que determinam as "políticas públicas", financiando "políticos", campanhas eleitorais e publicitárias, com a cumplicidade da mídia e seu "jornalismo" distorcedor, tendencioso e construído pra induzir a opinião pública.

O quadro social se explica pelos interesses banqueiro-mega-empresariais - poucas dúzias de pessoas - que amarram o Estado - através das suas "autoridades" -, impedindo o cumprimento da constituição no respeito aos direitos de todos os brasileiros. Impõem a ignorância no ensino público e o modelo enquadrador na educação da parcela - classes médias - com acesso a direitos, conforme os interesses e a mentalidade empresariais. É preciso evitar a reflexão mais profunda sobre a sociedade e seus problemas, superficializando a mentalidade da população. Não se fala sobre harmonia social, a idéia imposta é competição desenfreada e geral, a miséria é a justa punição da incompetência. Os milhões de crianças que já nascem condenadas a essa "incompetência" não são mencionados, não são vistos, não se questiona essa produção infame de excluídos e explorados que resulta nos índices altos de violência e criminalidade. A resposta institucional é falsa, repressão e encarceramento só alimentam os ciclos de barbárie social em que vivemos. Falsa porque imposta por seus causadores.

Investimento pesado em educação, na formação do povo brasileiro, em alimentação e nos serviços públicos seria o melhor "combate" à violência e à criminalidade. É uma evidência óbvia e ignorada, escondida, silenciada e proibida. A estrutura social criminosa dominante se sustenta na ignorância, na desinformação, no roubo de direitos humanos, fundamentais, básicos e constitucionais da maioria esmagadora da população. É proibido investir em educação e cidadania.

É preciso enxergar a realidade como ela é. As soluções surgem a partir daí. É preciso acender as luzes. Soluções serão muitas, variadas e locais, nas bases da sociedade. O momento é de enxergamento. Mostremos uns aos outros, com humildade e espírito de serviço.

domingo, 3 de setembro de 2017

Via Celestina - documentário

O Hare me pediu pra publicar o vídeo que fizemos na função de arrumar uma grana pra comprar parte do material de trabalho que vai bancar a viagem e o filme. Não entendo a diferença, pois já tinha publicado o link da página dele, mas tá bueno, vamo lá. Aproveito pra explicar umas coisinhas.
Essa grana, cinco paus, vai servir pra comprar um microfone de por na roupa, por exemplo, o que já leva boa parte. Camisetas que vão ser impressas com os meus desenhos e vendidas nas exposições por Camila e Hare, pra render e pagar despesas de viagem. Ou seja, vai ser investida em dois trabalhos, no mínimo: as camisetas, que vão servir por aí, algumas provocando reflexões, pensamentos, sentimentos, estimulando contatos que se tornam relações construtivas, às vezes, pelo que já vi acontecer; e os vídeos, que vão compor o documentário e levarão o mesmo conteúdo de outra forma, áudio-visual como são os tempos de agora, com possibilidade de muito maior alcance. Os acontecimentos de viagem, muitas vezes, trazem oportunidades de reflexão e percepção, quando se tem olhos de ver, disposição interna. As lições estão em todo lado, cabe a cada um perceber as suas.
Durante mais de trinta anos eu fiz artesanato pra sobreviver. Logo que pude passei a colocar pensamentos, minha maneira de ver e pensar o mundo no meu trabalho. Vivendo das ruas, em exposição ou no mangueio* - a maior parte do tempo -, sob descrédito geral, o crédito era exceção. Desconfiança, preconceito, provocações, agressões gratuitas, abordagens policiais, assédio das guardas municipais se tornaram parte do cotidiano. Não me importava mais que o incômodo direto, o desvio do caminho ou pior, a perda dos trabalhos pra apreensão. Não era caso de revolta, eu via como da natureza social aquela perda. Não me enquadrava nas categorias que mereciam respeito, não entregara minha vida à mediocridade "normal" e imposta, era natural que a sociedade me atacasse. Eu tinha é que tomar mais cuidado, me antecipar às apreensões, arrumar rotas de fuga, ficar esperto. Em trinta anos, dá pra contar nos dedos as apreensões. É sempre uma sensação estranha, a da injustiça, mas era como a confirmação das minhas escolhas, de que estava no caminho certo pra mim. É uma sociedade mesmo injusta.
O descrédito e a desconfiança, rotineiros também, não me diziam nada. Eram mentalidades convencionais exercendo seus condicionamentos, visões superficiais e induzidas, em constrangedoras demonstrações das mentalidades enquadradas pelo sistema social alienante e condicionador, que induz à intolerância, ao preconceito, à discriminação de tudo que não se enquadra na "normalidade" imposta como padrão. Não é à toa que as coisas são como são e que se aceita miséria, ignorância e abandono como inevitáveis. Também é da natureza social pensamentos que me suponham as piores coisas.
Aprendi que o respeito alheio é muito bom, mas não pode ser necessário. O único respeito que não posso abrir mão é o meu próprio. Com isso, procuro ser inofendível. Qualquer opinião a meu respeito é direito de quem a tem, aliás direito e responsabilidade. Eu não gosto de formar opinião errada, por isso demoro a tirar alguma conclusão. Mas há quem tenha o vício de julgar e condenar, de supor intenções ocultas, geralmente no sentido interesseiro, mau caráter, apegado aos valores vigentes, grana, ganhar sempre, mesmo com traições, mentiras e enganos. Gente que age como determina a ideologia dominante, incapaz de discernir a sinceridade da falsidade. A arrogância de julgar anula o discernimento. Em alguns casos, muitos, as pessoas julgam por si mesmas, por seu próprio caráter, com base nos próprios valores e comportamentos. Aí o insulto diz muito mais do insultador do que do insultado. E o insultado não precisa se ofender, nem se alterar. A cabeça e o coração dão uma ginga e o insulto cai no vazio.
Uma vez eu estava expondo em Santa Teresa, parou um sujeito bem vestido, olhando atentamente os desenhos. Não interferi, fiquei quieto até que ele me olhou, apontando, e perguntou, "serigrafias?" Confirmei e ele, "quem faz os desenhos?" "Sou eu" e ele pareceu surpreso, mas se aproximou, "você numera no verso?" Ele entendia do assunto e ficou confuso quando respondi simplesmente "não". "Como assim?" Olhei pra ele e a expressão deixara por um instante de parecer arrogante e mostrava dúvida. Então respondi sorrindo, "eu não numero". De dúvida passou um instante de espanto, "não numera?" e daí pra indignação quando confirmei, "não". "Então 'isso' não tem nenhum valor no mercado de arte!" Sorri de novo, "é verdade, não tem nenhum valor no mercado de arte", olhando tranqüilamente nos olhos dele. Novamente ele expôs um instante de dúvida na fisionomia, talvez sentindo que havia alguma coisa que ele não estava percebendo. Aí eu expliquei, "eu faço arte é pra qualquer um, não pro mercado de arte. Não me interessam as qualificações do mercado e é natural que ele me desconsidere. Não me importo com isso. Não dou valor ao mercado de arte porque arte pra mim não é mercadoria, mas um meio de comunicação." A expressão facial foi passando da incredulidade pra revolta e daí pro absoluto desprezo. Virou, sem dizer nada além de um som interno, "hm", e foi embora com ostensivo nojo. Olhei ele virando a esquina do cinema, falando com todo o movimento corporal, e achei graça. Depois fiquei pensando que arte pra mim é mercadoria sim, pois é o que eu vendo pra viver. E é também meu veículo de comunicação pra falar com o mundo o que me engasga se eu não falar. Não tenho o foco na arte pela arte, meu foco é dizer o que vejo, penso e sinto. Minhas artes são mais reflexões que artes, mas isso já é outro papo.
Voltando ao assunto, venho de uma caminhada longa, acostumado com as piores opiniões a meu respeito - de quem não me conhece. Acostumado e imune. Um dia começaram a chegar câmeras e filmar eu falando. Não tinha idéia do que aconteceria, nunca pensei em visibilidade nem tive fama como objetivo. Já estava satisfeito fazendo meu trabalho e vendo que pessoas davam proveito, refletiam, questionavam, assimilavam o que eu tava dizendo. Isso já bastava, era o sentido que eu procurava na vida, apesar das escassezes materiais que de vez em quando aconteciam. E que nem pesavam tanto assim. Mas aí comecei a ter a cara conhecida além do que imaginava, a ser chamado pra falar nas mais diversas coletividades, mais ou menos a mesma coisa que falo cotidianamente, no meu trabalho e em toda parte onde andei e ando, onde expus e exponho, sem pretensões além de ter satisfação de verdade na vida - já que o que se apresenta pela sociedade como satisfações não me satisfaz nem de longe, ao contrário, mais fácil me constranger. Não que me dê o direito de julgar quem pensa, vê e quer diferente de mim, cada um com suas escolhas e suas conseqüências. "O plantio é livre, mas a colheita é obrigatória". Colho o que planto, então procuro cuidar do que estou plantando com minhas atitudes e escolhas. Não posso me incomodar com opiniões que me criminalizam, desqualificam ou desacreditam.
Eu me preocupo com o que sou tendo como referência minha própria consciência, ainda que a saiba precária e em desenvolvimento. É aprender com os próprios erros e, se possivel, com os erros alheios também - sem direito a interferências indevidas. E vamos adiante. O que se pensa e diz a nosso respeito não nos transforma nem no que se pensa, nem no que se diz. Não posso levar em conta, a não ser pra determinar de quem me aproximar e de quem me afastar, não muito mais que isso.

* Mangueio era o contato direto, a abordagem às pessoas pra arrancar o sustento. Por exemplo, ir de mesa em mesa, bar em bar, restaurantes, em praias, praças e ruas, em qualquer lugar, oferecendo o artesanato, com licença, boa noite, oi, tudo bem, quer dar uma olhadinha, quer ver um artesanato reflexivo, dá uma olhada, interrompendo conversas ou silêncios, encontrando todo tipo de reação, cotidianamente. Até a adolescência dos meus filhos, o mangueio foi a base da sobrevivência. E quantas vivências...


observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.