segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Saiu no El País, mas é da Eliane Brum

Bolsonaro quer entregar a Amazônia

Transformar as terras protegidas da floresta em mercadoria é a principal missão do presidente eleito

Eliane Brum

Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo. Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.
Alguém se ilude que um homem com a biografia do megaprodutor de soja Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro”, quando se opõe à fusão dos ministérios é por amor ao meio ambiente? Ele apenas sabe que é importante manter minimamente as aparências lá fora enquanto a bandalheira corre solta aqui dentro. E sabe também que não é necessário fundir para dominar. Antes mesmo de ser ministro ele já demonstrou ter larga experiência no assunto. O setor do agronegócio que compreende a importância do combate ao aquecimento global para a agropecuária e o comércio internacional é muito menos influente no Brasil do que o agrobanditismo que está no poder.
O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.
As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.
Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.
Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.
Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.
Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.
Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.
Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.
Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.
Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.
Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.
Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.
Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.
Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.
Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (...) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado...”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.
O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.
E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo. Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.
Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.
Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.
É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.
Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.
Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.

Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.
Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.
A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.
Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT). Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.
Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.
É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.
A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.
Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.
Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.
Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silva provaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.
Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “vamos conversar?”.
É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

sábado, 8 de dezembro de 2018

Era só a pior opção da mesma coisa

- a "melhor" do ponto de vista do punhado de parasitas, a mais perversa; pior pra coletividade humana, pior pra busca de harmonia social, pior pro mundo.

A lambança revelada não surpreende em nada. A natureza de um sistema social criminoso não oferece outra face, porque só tem faces podres e falsas. Aos poucos vão se tocando de que foram enganados, manipulados, induzidos como fantoches a pensar como programado. Estímulos de pensamentos, sentimentos, atitudes... não surpreende a postura de torcida, fanatizada, cega e agressiva, na defesa do seu "time". Assim correu a eleição, sem que os candidatos debatessem, sem propostas de governo de verdade, só superficialidades sem condições de prática, sem debates, sem explicações, sem nada. Como uma novela, agora o enredo embola e demonstra: era só a mesma coisa, a mesma merda, os porcos mais porcos do chiqueiro agora fazem pose. Alguns dos seus eleitores vão ainda demorar a tomar vergonha na cara - as denúncias só transformam seus líderes em mártires, como nas igrejas dos pastores mais safados que, quando vêm as denúncias, são "obra do diabo".

Sem querer despertar "demônios", agora as caras estão aparecendo, pra quem não tinha visto antes. Só o orgulho, a arrogância, a cegueira pras próprias falhas, podem impedir a vergonha de brotar no coração dos que são honestos - "fomos enganados", dirão estes. Enquanto os outros continuarão em pé de guerra, cegos, fanáticos, perversos, superficiais ao extremo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

"Perdão às minhas crianças, por não ter dito adeus"



Por: Minoska Cadalso Navarro
20 noviembre 2018 

Desde 2016, o dr. Arnaldo Cedeño Nuñez atendia as crianças indígenas da etnia Apalai Waiana no Brasil. "Não pude me despedir, viajei e talvez em 20 dias, na sua inocência, esperem minha volta. Não vai acontecer, por isso peço perdão". Assim relata o dr. Arnaldo. 

Esse dia eu não vou esquecer nunca. Era 11 de setembro de 2016, a manhã estava nublada, havia previsões de chuva e turbulência. Subi ao aviãozinho, viajava a partir da cidade de Macapá, no estado do Amapá, no Brasil, até a aldeia Bona, pertencente ao município Almeirim do estado do Pará".
O doutor Arnaldo, em sua memória, sinto que volta a viver aqueles momentos, para ele muito tensos, "não nego que temia, imagine-se, só viajaríamos o piloto e eu, o qual me deu as instruções para casos de emergência porque atravessaríamos a selva amazônica até chegar à comunidade indígena da etnia Apalai Waiana".
"O percurso durou duas horas, o trajeto era complicado e arriscado, só depois de umas quantas viagens comecei a apreciar a natureza formosa e quase virgem que via das alturas".
Ao jovem galeno, oriundo da província de Granma, conheci através das redes sociais, por ocasião da declaração do Ministério de Saúde de Cuba, de não continuar no programa "Mais médicos", quando Cedeño publicou, no seu perfil, uma nota: "Perdão por não lhes haver dito adeus!!!"
A quem pedia perdão o médico cubano?

El doctor Arnaldo con niños y miembros de la etnia Apalai Waiana en Brasil. Foto: Cortesía del Dr. Arnaldo Cedeño Núñez.

"Eu fui para a aldeia indígena no dia seguinte à eleição do presidente Bolsonaro. Durante dois anos, cada vinte dias convivi com os nativos. Não havia luz elétrica, nem telefone, nem internet, só tínhamos um televisor no posto de saúde, que funcionava duas ou três horas na noite, enquanto houvesse combustível pra alimentar a eletricidade, mas nesses dias o equipamento de tv estava quebrado e eu não sabia nada do que estava acontecendo".
"Com as crianças da comunidade havia uma relação afetiva, sempre lhes levava caramelos e eles, em troca, me ofereciam a pouca comida que tinham. Aprendi sua cultura, seus jogos, seus cantos, sua inocência, chegava a chorar quando adoeciam e me doía que seu futuro estivesse fechado apenas na selva e rios que lhes serviam de sustento".
"Dois dias antes de sair definitivamente do lugar, quis fazer um descanso na noite, coloquei a rede fora do posto de saúde e deitei. Na aldeia havia uma festa, foi então que chegaram uns meninos e me pediram permissão para me cantar umas canções na língua indígena. Não gravei e não me perdôo. Eles me salvaram nesse dia de uma picada de cobra, porque descobriram que debaixo da rede havia uma pequena. Um deles, com sua sandália, quase descalço, a matou".
Por uns segundos, o doutor se mantém em silêncio.
"Não sei porque, sentia o pressentimento de que algo não ia bem, mas nunca pensei que não voltaria a vê-los. Prometi passar com eles o natal, uma data importante para os brasileiros, mas não pude me despedir, me fui e talvez em 20 dias, em sua inocência, esperem minha chegada. Não vai acontecer, não pude dizer-lhes adeus e por isso lhes peço perdão".

El doctor Arnaldo y sus pacientes de la etnia Apalai Waiana en Brasil. Foto: Cortesía del Dr. Arnaldo Cedeño Núñez.

"O que você traz a Cuba, das crianças indígenas da etnia Apalai Waiana?
"Deles trago as melhores recordações, por exemplo, quando chegava o aviãozinho, todos vinham com suas carinhas risonhas a meu encontro, no começo me tocavam para sentir a textura da minha pele, que eles notavam que era diferente".
"Eram curiosos e me perguntavam de que etnia era o médico cubano, então lhes explicava que em Cuba não tínhamos cacique, nem tribos. Um dia perguntaram sobre nossa comida e me comovi muito ao saber que se alimentavam apenas de mandioca e frutas, estão mal nutridos, sobretudo os menores".
Percebo emoção na voz do doutor Arnaldo, ele faz uma pausa para me dizer por último: "Lhes dei meu amor, ensinei a dançar e cantar, entendendo a nossa cultura, e minha única tristeza é não ter podido abraçá-los em minha despedida".

Desde el año 2016, el doctor Arnaldo Cedeño Núñez atendía a los niños indígenas de la etnia Apalai Waiana en Brasil. Foto: Cortesía del Dr. Arnaldo Cedeño Núñez.



É preciso enxergar antes de solucionar


Falando diretamente e sem curvas, a sociedade ainda não é humana, é empresarial. Tudo gira em torno de interesses e poderes econômico-financeiros, mega-empresariais, vale mais o patrimônio que a própria vida. Da gente, dos bichos, das plantas, das águas, da terra, do ar. Quando a sociedade alcançar finalmente o patamar de humana, com o custo que se fizer necessário pra isso, a vida e a integração com a natureza que a gera estarão no centro de importância, a solidariedade será não uma virtude, mas uma ferramenta de trabalho, de existência, tão natural quanto comer ou sorrir. E não se verá gente como lixo, jogada em qualquer canto sujo.
A partir daí, vou vendo o quanto de miséria cerca todas as cidades, às vezes entranhadas também em seus vales e morros, vou percebendo o quanto essa legião excluída dos benefícios sociais, roubada em seus direitos básicos de existência, é necessária na manutenção da estrutura social. A multidão se aperta nos transportes pra fazer funcionar, debaixo de exploração intensa, a sociedade que a oprime. Milhões que são o alicerce, a base de funcionamento de tudo o que existe, literalmente tudo, pois em tudo são os que estão na base. Desde a extração das matérias primas, sua transformação, até a entrega dos produtos e dos serviços. Do começo ao fim. E são também que recolhe e limpa o descarte.
A maioria é o alicerce social, inclusive financiando o Estado através dos impostos embutidos nos produtos básicos pra sobrevivência, de uso geral, formando a massa tributária, que é a grana que o Estado arrecada pra pagar suas mega-despesas. Mais da metade de tudo o que o Estado arrecada, mais da metade da arrecadação dos impostos, da massa tributária, é paga pelos mais pobres. São eles quem financia a sociedade como um todo, somos todos nós. Pergunta - o que faz as pessoas aceitarem se apinhar em transportes coletivos que tomam horas incontáveis de suas vidas, apenas pra levar e trazer de trabalhos explorados, mal remunerados, em situações de pressão e humilhação, com pouco tempo pra viver? O que produz a aceitação de uma vida vazia de sentido, o tempo passando, da juventude à maturidade e à velhice, com a morte como ponto final, muitas vezes com a clara sensação de ter vivido em vão? 
"De que valeu a minha vida?" Imaginei esta pergunta aos meus dezenove anos sendo feita a mim mesmo, lá no final, na velhice, nos momentos da partida inevitável. Observava os mais velhos, ouvia o que diziam sobre a própria vida e as impressões que tinham. Às vezes eu mesmo perguntava, provocava, pra ouvir. Sobretudo um ficou marcado na memória, talvez porque ocorreu em um momento chave da minha vida e teve influência direta nas minhas atitudes na época. "Eu fiz tudo o que me disseram pra fazer, me formei, montei minha empresa, me dediquei a ela...", seus olhos miravam o passado, enquanto ele contava parte da sua história, em pedaços distantes no tempo. "A sensação que eu tenho é que mentiram pra mim, lá no começo da minha vida, e eu passei a vida inteira correndo atrás dessas mentiras". As pausas pra ele eram lembranças do passado que passavam na sua frente. Pra mim eram revelações da minha intuição, chocantes pelo inesperado, eu estava literalmente em choque. "Eu sou visto como um empresário de sucesso, um vitorioso... e aqui dentro eu me sinto um fracassado, um derrotado".   
Isso não vai acontecer comigo, eu me dizia repetidas vezes. Eu morro antes, mas não chego na idade desse cara desse jeito. Com esse vazio, com essa sensação. Tem que haver algum sentido em algum lugar. E eu vou buscar. Ou vou encontrar, ou vou morrer procurando. Fui direto na secretaria da universidade e me desliguei dela, peguei meus documentos escolares e levei pra entregar a meus pais. Era o pagamento da minha "dívida".
Desligamento total, da escola, da família, dos amigos, da classe social. O banimento foi completo, a realidade mudou, os lugares e relações sociais mudaram e já não havia mais pontos de encontro. E eu pude ver a cara do Estado onde ele não usa máscaras. Ali onde o serviço público forte é a polícia, que já chega com ódio nos olhos, pronta a agredir, humilhar e matar, cérebros lavados de humanidade, embebidos em medo e ódio contra os "territórios perigosos", as periferias e favelas onde vivem os milhões de vítimas de crimes sociais, em situação de estímulo ao crime, de desesperança e abandono, roubados em seus direitos constitucionais. 
Um Estado que não cumpre sua própria constituição, sobretudo nos direitos humanos, básicos, da maior parte da população, pode ser visto como uma organização criminosa, armada contra o próprio povo pela cúpula da elite alinhada com os interesses de elites mundiais, banqueiros e mega-empresários de alto calibre. O Estado não esconde a cara nos postos de saúde, nos hospitais, nos recursos aplicados na saúde pública. Falta tudo, de médicos a esparadrapo, de remédios a ambulâncias, de aparelhos a macas e lençóis. Em qualquer departamento público de atendimento aos mais pobres o desprezo, os maus tratos, a má-vontade é palpável (cabe aqui o contraponto dos profissionais bem intencionados, humanos, que se dedicam, vocacionados no serviço público, que encontram todos os entraves pra exercer suas funções, desde a falta de recursos até a discriminação, a ironia, o deboche, a perseguição pelos maus funcionários, muito bem adaptados a uma estrutura espúria que premia a perversidade, a ambição, o egoísmo com cargos de poder e controle - uma estrutura mau caráter que privilegia o mau caráter e persegue os bons). 
Seja na área que for, jurídica, administrativa, de transportes, trabalhista, qualquer uma. Interesses empresariais de porte grande têm prioridade e rapidez. Ao povo, desimportância, roubo, mentiras, desgaste, exploração, repressão e desdém. É estratégica a formação psicológica e ideológica profunda, na ignorância, na desinformação, no sentimento de inferioridade, de impotência, na aceitação da "realidade" como ela é, implantando conformação, no modelo de educação empresarial, anti-social, e no massacre midiático-publicitário-ideológico. As exceções são méritos pessoais  e de grupos em ações pontuais, isoladas e devidamente ignoradas pelos meios de comunicação, pra não dar "mau exemplo" pra esmagadora maioria, mediocrizada e dominável. 
Não tenho a pretensão de apresentar soluções, nem mesmo caminhos. Trato apenas de rasgar o véu que cobre a realidade. Nenhuma instituição funciona com sinceridade, no objetivo de atender à maioria da população, nem mesmo em seus direitos humanos, básicos, fundamentais e constitucionais. É preciso enxergar o Estado como uma farsa, pelo simples motivo de que o povo está mentalmente entorpecido, ignorantizado, superficializado, desinformado - ou deformado em sua visão de mundo -, incutido de valores programados, induzidos ao consumo, a valores e comportamentos condicionados, conseqüência de um trabalho profundo de penetração na sociedade dessa deformação informacional que são os meios de comunicação privados e os criminosos das redes sociais, a começar pelos seus donos. É uma atividade criminosa de deformação da realidade, de controle social descarado, formando opiniões, criando "inimigos públicos" que são, em geral, justamente os que propõem uma sociedade menos injusta, que denunciam os crimes cometidos contra a população, o meio ambiente e a vida. A mídia é a voz dos parasitas sociais que dominam de alto a baixo a estrutura social. Voz que sobretudo fala ao inconsciente coletivo, usando conhecimentos profundos da mente humana.
Há muitos que já enxergam e não se deixam levar. E mais e mais vão surgindo, exceções às regras da manada. Estes vão criando formas de viver à sua maneira, escolhendo por si e não pelas programações sociais, alcançando um bem estar proibido no esquema social. Nesse caminho, soluções vão surgindo nos seus locais, pra resolver os seus problemas. Quanto mais gente for vendo que não se pode contar com o Estado e suas instituições, pelo menos enquanto dominadas por quem são, mais soluções de autonomia irão surgindo. É um trabalho inter-geracional. Que já vem de onde nem se vê mais e vai pra onde ainda não se vê. Não vejo soluções nem saídas, vejo caminhos formando um caminho coletivo. Caminhamos há milhares de milênios, cada vida é um passo nesta caminhada que não vemos nem começo nem fim e na qual somos apenas um passo. Que seja um passo firme e útil, que eu possa ter a satisfação de ter vivido uma boa vida, pra mim e pro mundo.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

A carta do médico

Médico cubano escreve carta a Bolsonaro
18/11/2018

Carta aberta a Bolsonaro. De um médico cubano que lamenta ter que deixar pra trás tantos amigos que fez entre os que não tinham acesso à medicina, a não ser com grandes sacrifícios, viagens longas, sem grana, pra se acantonar em qualquer lugar pra arrumar uma consulta rápida, despachados com remédios que nem sempre funcionavam, o que obrigava à repetição dessa epopéia a cada consulta rarefeita no tempo. Lamenta, mas compreende a situação, a inviabilização da continuidade, pelos anúncios pelas atitudes, declarações e intenções do presidente "eleito", aquele que entra no comando da estrutura administrativa da sociedade, em nome dos poderosos pela imposição econômico-financeira, reforçada pela atuação dos mega-empresários de todas as áreas. A carta é a manifestação dos sentimentos desse médico, diante das reviravoltas institucionais, sentimentos humanos acima de tudo.

“Bolsonaro, meu filho, quando você diz que Cuba fica com meu salário, eu só penso nas seguintes questões:
1- Eu aceitei os termos de um contrato, por livre e pessoal determinação.
2- Ciente de que, com esse dinheiro, minha mãe, irmãos, sobrinhos, primos, tios , vizinhos, as famílias todas têm garantido o cuidado de sua saúde. Sem pagar nada .
3- Ciente de que minha formação como médico é graças à criação de universidades públicas em todo o território nacional (de Cuba). Onde filhos de pedreiros, advogados, fazendeiros, faxineiras, empregados dos correios, médicos, etc. compartilham a mesma sala de aula sem discriminação por sexo, cor, ideologia ou riqueza. Isso, Bolsonaro, chama-se igualdade. Coisa que você não conhece, porque não existe num país onde a corrupção e os privilégios políticos acabam com a riqueza do Brasil.
3- Eu tenho a coragem de trabalhar para o povo brasileiro, mesmo sem receber esse salário de que você fala. Porque eu não trabalho só por uma questão econômica. Eu trabalho porque gosto da minha profissão, porque jamais vou ficar rico às custas dos pobres. Porque jamais vou usar a política como meio de vida. Porque jamais vou enganar os pobres com falsas promessas. Porque jamais vou plantar o ódio e discriminação no coração de ninguém. Porque vou pensar bem as coisas antes de falar para não ter que fazer como você (pedir desculpas todos o dias pelas loucuras que fala).
4- Eu posso, sim, trazer alguém de minha família. Não trouxe, Bolsonaro, porque pobre tem que ter prioridades na vida e, para mim, a prioridade é ajudar minha família, mais que comprar uma passagem aérea sabendo que em casa temos outras necessidades e prioridades.
5- Sei também que você conta com o apoio de uma pequena parte de meus colegas que, por motivações políticas e econômicas, acham melhor se enriquecer de dinheiro e não de amor, experiência, valores morais , patriotismo, dignidade. Porque eu posso não concordar com meu salário lá em Cuba. Eu posso até não concordar com o sistema político de Cuba. Mas também não tenho porquê difamar meu país. Eu vi isso também nos brasileiros pobres, maioria no Brasil. Eles gostam do Brasil, daquele povoado onde nasceram, só que com certeza gostariam que esse mesmo Brasil que eles tem no coração tenha igualdade, pobreza zero, fome zero, discriminação zero, violência zero, corrupção zero, saúde e educação de qualidade. Mas ainda assim, no Brasil imperfeito, eles gostam de seu país .
6- Você diz que os cubanos “estão se retirando do Mais Médicos por não aceitarem rever esta situação absurda que viola direitos humanos”. Não, Bolsonaro, o que realmente viola os direitos humanos é privar aos pobres do Brasil do acesso à Saúde, por não concordar com outras ideologias políticas. Porque você quer mudar as regras, sem perguntar aos beneficiários do programa se realmente os cubanos fazem o trabalho do jeito que tem que ser. Porque aqui no Brasil a gente tem preceptores brasileiros, a gente está fazendo um curso de medicina familiar, tudo sob a supervisão de excelentes profissionais brasileiros. A gente não está lá em qualquer canto fazendo as coisas por capricho não. Agora vem você a dizer que nós estamos fantasiados de médicos. Aqui o fantasiado é você. São todos os que apóiam sua absurda visão da realidade. Você só está lutando pelos privilégios da classe médica, da classe política. Lamentável! Sim, sr. Bolsonaro, o que resulta lamentável é ver como um cara sem conhecimentos de nada, apenas de armas, consegue se eleger presidente. E ainda assim, mais lamentável ainda foi ver alguns pobres elegerem você. Deus tome conta dos pobres. Deus tome conta do Brasil.
7- Quem estudou na época dos livros, quem estudou na época que as pesquisas eram feitas nos livros e não no Google ou na internet merece respeito. Quem lutou pela vida e chorou pela morte de uma pessoa ou de uma criança merece respeito. Quem foi lá, onde para muitos é o fim do mundo, para cuidar dos doentes, merece respeito. Quem ficou longe da família para devolver o sorriso de um idoso ou uma criança merece respeito. Aí é para tirar o chapéu, viu? Absurdo que 66 países no mundo estão se beneficiando de nosso labor e vem você nos chamar de fantasiados. Pior ainda, duvidar de que alguém queria ser atendido por cubanos.
Peço respeito pelos meus colegas.
Peço respeito à livre escolha de meu povo.
Peço respeito para os pobres e ignorantes.
Peço respeito para a Medicina Pública.
Peço também a você estudar o que significa amor ao próximo.
O que significa Pátria.
O que significa dignidade.
O que significa diplomacia.
O que significa Medicina familiar.
O que significa igualdade.
O que significa respeito de pensamento.
O que significa ser o presidente dos brasileiros pobres também e não só dos ricos e poderosos.
Saúde e longa vida para você.
Deus abençoe você e seu povo.”

Yonner González Infante
Médico, membro do programa “Mais Médicos”

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Auditores fiscais desmoralizam o "rombo da previdência"



O tal "rombo da previdência" alardeado pela mídia insistentemente, "denunciado" pelos mais macabros "políticos", é uma farsa, uma fraude, uma mentira. Por trás, os interesses empresariais, os privateiros desumanos, que pretendem destruir direitos pra vendê-los a quem pode pagar. Quem não pode que se lasque, que sofra e que morra. É anti-social, desumano, perverso, vergonhoso.




sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Feira de Santana, TV Olhos Dágua

Entrevista à tevê Olhos D'água, da universidade estadual de Feira de Santana (UEFS). Foi feita em agosto, durante os movimentos na Chapada Diamantina do final de junho até final de setembro. A edição foi feita e saiu há oito dias. São mais de quarenta minutos de papo.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Via Celestina, o treiler.

A viagem foi do Rio a Santana do Livramento, fronteira com o Uruguai, Rivera. Depois subiu a Porto Alegre e fechou o circuito no Rio de novo. Dois meses de estrada, parando pra expor, pra falar, pra arrumar a grana pra seguir viagem. Aí tem uma pequena amostra, pequena demais pros quase seis mil quilômetros rodados.



domingo, 7 de outubro de 2018

A carona do juiz

Uma vez, na Dutra, eu ia de Resende pro Rio, de carona e à noite. Parou um carro, corri como se deve quando pára um carro, carregando a mochila. A porta abriu, o cara acendeu a luz, vi um cara simpático, "bem vestido". Vai pra onde? Pro Rio. É pra lá que eu vou. Então dá licença. E sentei no banco do carona, mochila entre as pernas. Reparei que tinha um cabide na janela atrás do motorista, coberto com um plástico, imaginei um paletó. E era mesmo. Como sempre, me disponho a conversar nas caronas, quem dá carona tá a fim de papo e esse era meu dever, que eu cumpria com prazer. Muitas histórias ouvi, contei e vivi em tantos anos. Falamos sobre a sociedade, as injustiças sociais, as mentiras midiáticas, fui vendo que o cara era bem esclarecido. Mas o linguajar o denunciava. Acabei perguntando se ele era da área jurídica. Ele, me pareceu que um pouco constrangido, revelou que era juiz. Eu era um hippie, na visão dele, a quem ele tava dando uma carona. Eu olhei bem pra ele, tínhamos falado da brutalidade policial - com alguns exemplos práticos que eu contei, acontecidos na minha vida -, da distância que o sistema jurídico tinha de qualquer idéia de justiça, envolvido em interesses econômicos, em manipulações de leis, "malabarismos jurídicos", e da realidade que vive a base da sociedade. Estava numa situação bem humana, não reconhecia nele nenhuma superioridade sobre mim, era uma pessoa que tava me dando uma carona, eu era quem era, ele era o que ele era, não me importava o que fosse. Nem passou pela minha cabeça me conter pra falar. Eu olhava de igual pra igual, de pessoa pra pessoa. Juiz? Tu é juiz? Ele confirmou com a cabeça. Tu não sente uma vergonha social, não? Ele sorriu. Entendeu o que eu dizia. Sinto, sim. Conhece a associação juízes pela democracia?, ele perguntou. Não, nunca nem ouvi falar. Ele me deu um cartão, se informe, tem exceções no meio jurídico também. Depois vi, uma associação desconsiderada no meio jurídico predominante, ironizada, tolerada como fora da realidade, marginalizados de elite, com direitos e privilégios sociais, o que aumenta, a meu ver, a responsabilidade social. A aversão da mentalidade dominante sinaliza o que tem de bom na sociedade, a difamação e o preconceito muitas vezes caem em cima do que há de humanista, de sensível à realidade e conscientizador, espalhador de luzes sobre as trevas de ignorância lançadas nos olhos da sociedade como um todo. Foi um de tantos encontros, nunca mais vi o cara.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Mar Grande, Bahia, 1982/3

Em Mar Grande, na ilha de Itaparica, eu morava com Brisa neném e a mãe no morro da Pirâmide. O abastecimento de água era feito com latas e era preciso descer o morro duas vezes, até o poço lá embaixo, no meio de um monte de mangueiras, pra suprir as necessidades da casa. Na "balança", uma vara com uma lata de cada lado. Uma vez resolvi fazer uma viagem só e pendurei quatro latas. Eram setenta e dois litros de água, dezoito em cada lata, e foi um esforço grande pra subir as trilhas. No outro dia eu tinha o corpo tão dolorido que deixei de "preguiça" e voltei a fazer duas viagens.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O saque do pré-sal em mais um capítulo

Taí um dos grandes motivos pra derrubada do governo anterior e a instalação desse aí, claramente traidor das nações brasileiras, a serviço dos interesses parasitas internacionais.

Ontem, dia 30 de setembro, foi entregue mais um lote do pré-sal às petroleiras internacionais, as mesmas que entre outros poderes mundiais patrocinou a derrubada de um governo por corruptos traidores internos, as mesmas que levaram mais de um trilhão em isenção de impostos, enquanto o governo a seu serviço arrecada os níqueis de aposentados e pensionistas pobres, a merreca da Cultura, corta programas em educação e saúde, em saneamento, na indústria, no comércio, em todas as áreas ligadas diretamente à maioria da população, de baixo poder aquisitivo, pobres e periféricos.

O maior crime organizado do país é o que domina o Estado. E a criminalidade do Estado produz naturalmente todas as outras criminalidades. É da natureza social, empresarista, banqueira, anti-social e desumana. É preciso criar outra natureza, outros valores, outros objetivos de vida e outras formas de viver. Se não no mundo, pelo menos em nós mesmos, em nome da nossa própria paz de espírito. É preciso parar de se deixar induzir pelas mentiras sociais, pelo massacre midiático, publicitário e ideológico. É preciso ver com os próprios olhos, não com as lentes impostas pela mídia comercial desonesta, instrumento de dominação mental e de distorção da realidade
.
O presidente de uma das petroleiras diz que não precisa temer as eleições porque o Brasil tem um histórico de cumprimento de contratos. O que ele não diz tá subentendido. Eles contam com o poder judiciário, com o poder legislativo e sobretudo, com o poder da mídia de distorcer a realidade e promover tensão e caos. Contam como pressão decisiva e insuportável sobre qualquer governo.

Parece que restam 25% do petróleo de alta qualidade do pré-sal sem ser "leiloado", quer dizer, entregue. Ainda.

Outros motivos pro golpe no petê, igualmente importantes e entre muitos outros, são o investimento (por mínimo que tenha sido), na educação da população, em moradia, em informação; o investimento em saúde pública, na indústria nacional, a recusa em vender irrestritamente o patrimônio público - apesar de aceitar vender grandes parcelas. A ignorância e a desinformação são fundamentais na condução da opinião pública pela mídia. Não é à toa que o Estado que não respeita sua própria constituição está dando o conversor de televisão digital na cesta básica, pra quem não pode pagar. Controle mental, puro e simples.

sábado, 29 de setembro de 2018

Historinhas de viagem

Em Volta Redonda, Mineiro, o mecânico, trabalha no bairro Vila Americana, na rua Argentina, entre as ruas Equador e Canadá. Seguindo um pouco mais, atravessamos a rua México pra almoçar. Fronteiras inexistentes no mapa se encontram nas esquinas periféricas de Voltão.

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Em Vitória da Conquista, na Bahia, há um pequeno aeroporto, que recebe um ou dois vôos comerciais por dia, construído onde antes havia um lixão. Na cabeceira da pista, onde há restos do lixão, urubus passeiam procurando comida. Um funcionário do aeroporto tem uma incumbência específica. Antes de cada vôo, ele pega sua motocicleta, carregado de rojões - esses mesmos que se soltam no São João ou nos jogos de futebol - e vai até a cabeceira. Sua função é espantar os urubus, pra que os aviões pousem sem risco de engolir alguns em suas turbinas. Na base do rojão.

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O fubá na prateleira não tinha o T de transgênico, parecia bom, orgânico.
- Esse fubá é transgênico?
- Não, é só milho mesmo.
São muitos os que não sabem o que é transgenia... o ruim é que o tempo vai ensinar.

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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Para Brisa

Pra você, cercada dessa ignorância social raivosa que infesta a coletividade, debatendo essas propostas superficiais que não buscam as raízes dos problemas sociais e pretendem "combatê-las" de forma que, claramente, vão agravá-las. Por exemplo, criando mais universidades do crime (penitenciárias) ao invés de buscar os porquês de tanta criminalidade - crimes de Estado, constitucionais, contra a maioria da população, negando direitos, condições de moradia, de educação, de alimentação, de informação, criando miséria, pobreza, ignorância e desinformação, deixando as comunicações do país sob controle empresarial, mantendo áreas de exclusão social onde o massacre publicitário-midiático cria desejos compulsivos de consumo, como valor social e pessoal, onde não há condições econômicas pra isso, praticamente convocando ao crime milhares e milhares de jovens, adolescentes, adultos e crianças. Tratando superficalmente de todos os temas, apelando pra termos sonoros como "família", "Deus", "pátria", longe de apresentar propostas sinceras, profundas e realizáveis no sentido de solucionar os graves problemas permanentes através dos tempos e de governos que servem aos poderes econômicos.

Não se trata de "combater" esse ou aquele candidato, mas sim de pensar em formas de sociedade onde não exista gente como lixo, abandonados sociais, ignorância e miséria, onde não exista a exploração desumana que força milhões e se apertarem em transportes públicos torturantes, várias horas por dia. Onde não haja mendicância ou doenças sem atendimento. Onde não se produzam desabrigados sociais, os chamados moradores de rua. Onde não se veja o constrangedor - e revelador - constraste entre a riqueza ostensiva e indiferente de poucos e as condições miseráveis de dar vergonha a qualquer sociedade que se proponha humana.

Essas discussões eleitorais, grosseiras, agressivas, conflituosas, são uma indução à superficialidade que se aproveita da ignorância implantada estrategicamente por uma educação parcial - empresarista e enquadradora. Essas discussões grotescas, insultuosas, violentas, são programações sociais, imposições midiáticas, jogo de ilusão, como faz a mão do mágico, que chama a atenção enquanto a outra age e faz o truque. A outra mão é o mercado financeiro, o poder econômico que submete o Estado e faz de tudo pra impedir a sociedade de ser solidária, harmônica, com prioridade no ser humano, de verdade, onde seja um escândalo a existência de miséria e abandono, da fome, do desabrigo, da ignorância, da desinformação, com tantas condições reais, tecnológicas, de produção e distribuição, relativamente simples e de baixo custo.

Uma população bem alimentada, instruída, informada, tem muito melhor condição de decidir a forma social mais justa, equilibrada e harmônica. Uma sociedade onde as crianças - todas, como prioridade - recebam uma formação amorosa, desenvolvam suas aptidões de acordo com a índole e as vocações de cada uma e tenham estimulado o desenvolvimento do senso de justiça, da capacidade reflexiva, na criação de valores mais humanos. Uma educação centrada não no mercado de trabalho, mas na harmonia social. Assim se constrói uma coletividade menos grosseira, no caminho da evolução planetária.

Quando essa harmonia for o objetivo da existência coletiva, não é difícil imaginar o nível de criminalidade, se é que haverá algum. Mas é preciso perceber que essa desarmonia, essas brigas, discussões brutais, é produção estratégica dos laboratórios de pensamento que se utilizam de muitas formas, mas sobretudo da mídia, pra implantar, induzir essa discórdia dispersiva que passa longe de atingir a estrutura social que se alimenta de todas as mazelas sociais, que precisa mesmo de miséria e ignorância, de superficialidade mental, de alienação, de confrontos inumeráveis, coletivos e pessoais.

Não é à toa a deturpação de significado de várias palavras tidas pelo poder verdadeiro, muito acima das marionetes políticas que distraem a atenção do público, como palavras subversivas. Assim, "radical", ir às raízes, procurar as causas mais profundas, refletir sobre as fontes verdadeiras dos problemas, aprofundar o pensamento, passou a significar "agressivo", "intolerante", "violento", "extremista".

"Individualista" passou a ser "egoísta", "criativo" é "empreendedor", "solidariedade" agora é "empatia" (eca, parece nome de doença do fígado). É preciso não estranhar a superficialidade, a agressividade, a competitividade, os confrontos. São produções sociais, induções, deformações, condicionamentos, enfim, uma "condução de gado" muitíssimo bem montada na estrutura social que ainda persistirá muito tempo, enquanto outras formas de pensamento, de relacionamento, de valores sociais fermentam como embriões invisíveis por aí, invisíveis mas não inativos, ao contrário, extremamente contaminantes. Desenvolvendo formas de se relacionar, de existir, criando relações solidárias e cooperativas. O processo, como eu disse, é planetário, permanente, as mutações se fazem por gerações e gerações.

A busca da harmonia social começa da busca de harmonia pessoal, na busca de harmonia nas nossas relações com o mundo. Não posso transformar a sociedade da forma que gostaria, obviamente. Então procuro fazer essas transformações em mim mesmo, na minha vida, nos meus valores, nas minhas relações.

sábado, 15 de setembro de 2018

Saindo de Brasília








Desta vez passamos com pressa por Brasília, muito a fazer pelo caminho, até chegar em casa, já precisando ser logo. Abaixo, fotos da viagem, passando por Correntina. Em Muquém de São Francisco, paramos pra fotografar o santo e descobrimos um ninho na manga dele. Soja transgênica a perder de vista, fazendas que sumiam no horizonte, tratores e máquinas, vazio de gente, aridez agronegócica.

Na saída da Chapada, pintura no céu.
 
Paisagem estranha. Máquina corta o feno, outra prensa, puxada por tratores. Estas fazem uma poeira densa e branca.

O ninho tá na manga esquerda, à direita de quem olha.
Combina com a história de tratar os animais como irmãos.

Ao longe, a fumaça da prensagem do feno.
A torre tá com um ar sinistro, como um esqueleto, isolado e morto. E a feira piorou tanto que não teve exposição por ali.
Em Brasília, fomos recebidos em Brazlândia, onde arrumamos ótimo mecânico, que tem duas kombis e tem afeto por elas. Ganhamos duas velas pra Celestina, conhecemos a família de Márcio Veloso e ganhamos um almoço bem gostoso. Ficaram vários ímãs, fanzines e um desenho. É esse o tipo de mecânico que gosto pra Celestina. Agora tá tinindo pra partir pra Uberlândia. Vamos daqui a pouco, na noite, que é mais frio, gasta menos pneu, desgasta menos as peças e depois de certa hora, a estrada fica vazia. Parando aqui e ali pra tomar um café, a viagem segue.



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A chegada em Viçosa e o trem pra Ubá

Década de 80.

A última carona havia me deixado a alguns quilômetros de distância da cidade, segui pela estrada, que vinha de Ponte Nova e chegava em Viçosa, andando pelo acostamento. Levava mochila, banca pendurada no ombro (mesa desmontável, portátil, numa perna de calça costurada, com uma alça) e o painel de trampo (brochinhos, brincos, alguns colares e pulseiras). Vinha de bermuda, chapéu de feltro, sandálias havaianas, cabelo comprido e barba rala. Depois de uma grande curva à direita, a pista descia quinhentos metros e terminava numa rua calçada com paralelepípedo. Terminava mesmo, em T, e já era o centro da cidade. Viçosa era muito pequena, naquela época. 

Do outro lado da rua, num posto de combustíveis, tinha uma fila de carros esperando e se estendendo até fora, junto à calçada. Carros novos, bonitos, grandes, brilhantes. Eu caminhava descendo pela estrada, de frente pra cena. Na calçada havia um latão de lixo, perto da entrada, junto a um poste. Mergulhada nele, com as pernas de fora, uma criança catava latinhas de alumínio. Apoiada na beira do tonel pelas dobras das pernas, o corpo sumia lá dentro. O vestido virado deixava à mostra a calcinha muito branca, contrastando com o preto das pernas, as latinhas apareciam pela borda e caíam no chão, mal se viam as mãozinhas que jogavam e voltavam ao fundo pra buscar mais. Junto ao tonel, uma outra criança menor, também preta e menina, juntava as latinhas que caíam, com os pés. Não devia ter mais de quatro anos. Ela segurava um saco plástico pequeno nas mãos e, no chão, havia um saco maior e mais grosso, com um volume enrolado dentro e uma pedra em cima. 

Um dos motoristas estava em pé, fora do seu carro, e observava as crianças, impassível. Era um senhor de cabelo e bigode brancos, óculos de aro dourado, boné no estilo francês, bem vestido e fumando um cachimbo. Eu vinha caminhando, olhando, atravessei a estrada, cheguei do outro lado da rua e parei pra olhar a cena. Com tristeza, a diferença brutal e a indiferença das pessoas, como as situações de sobrevivência miserável que a parte "instruída" desta sociedade aceita acontecerem, "naturalmente". Constrangedor contraste entre privilegiados e abandonados sociais, quando eu foco nisso dá uma espécie de nó na garganta, os olhos ardem. Não fazia ali nenhum julgamento pessoal, era uma percepção coletiva, se há algo condenável é o modelo social como um todo. Viçosa é uma cidade universitária, imaginei que o cara era um antigo professor. Tinha jeito, cara, idade e pose pra isso. As pessoas se acostumam com a miséria, entre os abastados é até recomendável, é como parte da paisagem, apenas "lamentável", mas "inevitável". Esses pensamentos, acompanhados de uns anti-depressivos, acalmam a consciência e anestesiam os sentimentos de solidariedade social.

As latinhas foram escasseando, de repente as perninhas fizeram um movimento rápido pra baixo e o tronco da menina surgiu, se erguendo de dentro do latão ainda com uma latinha em cada mão, e ela caiu fora, em pé na calçada. Pensei em oito anos, o vestido branco, sapatos brancos, cabelo puxado pra trás e um coque no alto da cabeça, bem amarrado com uma fita também branca. Dava pra ver que eram meninas de família, bem cuidadas, apenas muito pobres. Não olhou pra ninguém, abaixou, pegou a pedra, abriu o saco plástico e foi pegando cada latinha no chão, batendo pra amassar e jogando no saco. A menor ajudava empurrando com os pés as latas que estavam mais longe, olhava pra maior e a maior não olhava em volta, concentrada no que fazia. A fila dos carros andou e o professor voltou pro seu carro. Motores foram ligados, movimentos foram feitos, sem que ela nem uma vez olhasse. Terminou, enrolou a boca do saco, envolveu nela a pedra, segurou e estendeu a outra mão. A pequena agarrou na hora, saíram andando ao longo da entrada do posto e seguiram pela calçada. A grandinha olhava em frente, a menor olhava pra trás, pros lados, pras pessoas, pros carros, pra tudo, na curiosidade irresistível das crianças mais pequenas, enquanto andava quase correndo pra acompanhar os passos da irmã que, de cabeça erguida, seguia seu caminho e puxava pela mão. Num momento a menorzinha olhou pra mim, do outro lado da rua. Tropeçou, olhou pro chão, se equilibrou e voltou a me olhar, de olhos bem abertos, sempre agarrada na mãozinha da irmã. Eu era diferente do que ela estava acostumada, carregado de coisas, caminhando quase paralelo a elas, um pouco atrás. Sorri e acenei pra ela, que sorriu encabulada e olhou pra frente sorrindo. 

Eu ia na mesma direção, fui pelo outro lado da rua mesmo. Tinha pensado em fazer um contato, mas achei que ia incomodar com meu "ser estranho", além de ter percebido na dignidade da mais velha o desejo de não fazer contato, de passar despercebida, como é comum entre os desprezados. É preciso respeitar. Acompanhei de longe até que elas entraram numa esquina e foram em direção a uma área sem calçamento. Quando iam virar a menorzinha me olhou de novo, sorri e acenei outra vez. Aí ela sorriu e acenou com a mãozinha. Eu segui em frente e fui expor na universidade.

                                                                        *******

Passei alguns dias em Viçosa. Estava numa das separações do meu primeiro casamento e a saudade das crianças maltratava demais. Isso me deixava inquieto, beberrão, conversador, topador de qualquer parada. Precisava estar em movimento, mudar de lugares e de gentes, de ambientes, climas e relevos, andar na estrada pra ficar sozinho e refletir na vida, andar na cidade pra esquecer da vida, pra anestesiar os sentimentos. Ou ao contrário, encontrar sinais e toques que precisava encontrar, trazidos pelos acasos da vida, pelas coincidências inexplicáveis. Precisava manguear, expor, trampar, conversar, beber, me entorpecer, esquecer, lembrar, pensar, me isolar e me misturar, alternando meio sem controle. Viçosa já tinha dado o que podia, queria ir embora.

Estive abrigado em várias repúblicas de estudantes, nesse dia arrumei minhas coisas quando acordei e saí carregando tudo. "Hoje não vou dormir em Viçosa", avisei. Expus na universidade de dia, mangueei nos bares da noite, parei pra beber e a madrugada chegou. "Vou quando amanhecer o dia". Eram umas quatro da manhã e eu ainda estava bebendo, sentado numa mesa de um bar, quando vi passarem duas locomotivas, bem devagar e em frente ao bar, puxando uma dessas intermináveis composições de vagões. Eu sabia dos trilhos, mas não tinha visto passar nenhum trem até ali. "Ele passa sempre às quatro e quinze da manhã", me disseram. Eu estava bêbado, não lembrava o quanto havia bebido, entre cervejas, conhaques e cachaças e fiquei olhando os vagões. "Tá carregando o quê, essa porra?" "Sei lá" foi a resposta. "E tu sabe pra onde tá indo?" "Sei, pra Ubá". Ubá? É pra lá que eu vou. Levantei, fui colocando a mochila enquanto pedia a um dos garçons, "vê a conta rapidinho aí, cumpade!" Já estava com o equipamento completo, mochila, banca e painel, quando o cara trouxe. Os vagões continuavam passando lentamente, eu cuidava pra ver se a fila de vagões não vinha terminando. Paguei e fui na direção do trem. Tive a impressão que a velocidade aumentava, disse "parece que tá mais rápido", em dúvida se não era impressão por estar bêbado, e alguém falou "quando chega fora da cidade a velocidade aumenta". Me apressei, esperei passar a escadinha que tem no fim de cada vagão e, com uma corridinha e um impulso, me agarrei nela. Estava mais rápido, mas deu pra agarrar, com apenas uma das mãos - a outra segurava o painel - e os pés nos degraus. 

Cambaleei pra frente e pra trás, me esforçando pra me equilibrar. A subida foi difícil, com peso e uma única mão pra segurar e trocar de degraus. Quase caí várias vezes, fui subindo com dificuldade, aos poucos, o trem aumentando mais a velocidade, saindo da cidade e entrando no breu da escuridão. Com muito esforço, cheguei à borda do vagão, senti que não conseguiria levantar as pernas pra passar e, com uma cambalhota dolorosa, desabei lá dentro. Eram pedras de carvão mineral. Fiquei um tempo me recuperando do esforço e da pancada, sem conseguir pensar direito. Arrumei de alguma forma as pedras, fazendo uma espécie de berço, joguei a mochila por cima e deitei de costas sobre ela. Apaguei em pouco tempo, com o ruído do trem e o vento fresco.

Acordei suando, queimando com o sol alto, o trem de novo andava devagar, fui acordado pelo apito. A ressaca pesava minha cabeça, estava também ressecado pelo sol, a dor atrás dos olhos era de matar, o corpo todo doía. Eu espremia os olhos com a claridade, virei de costas pro sol rolando sobre as pedras, a cabeça latejando. "Deve ser Ubá". Apoiei as duas mãos e os dois pés e ergui o corpo de forma a colocar a cabeça acima da borda e olhar onde estava. A velocidade era mínima. Olhei e conseguir ler Ubá-MG numa parede. Quase ao mesmo tempo, ouvi gritos e alguém soprou um apito. O trem estacou nesse instante e eu caí de costas sobre as pedras. "Ah, caralho, putaquilpariu!" Fechei os olhos, doía tudo. 

Senti que era comigo, que devia sair logo dali, mas era tudo muito pesado, cabeça, braços, pernas, mochila... fui me aprumando, consegui colocar a mochila, cada movimento doía, a cabeça latejava, os olhos lacrimejavam, até os dedos doíam. Estiquei o braço na direção da banca, consegui segurar a alça quando ouvi "parado!" Fiquei imóvel, virei a cabeça devagar na direção do grito. O guarda me apontava uma pistola, por cima da borda, na escada do vagão da frente. "Pega essas merda e desce a escada!" Concordei com a cabeça, puxei a banca, peguei o painel e fui. No chão, bem na frente da escadinha, outro guarda me apontava outra pistola do mesmo tipo. "Desce devagar!" Eu não tinha outra maneira pra descer, tinha que ser devagar mesmo. Reparei no uniforme, Polícia Ferroviária Federal. Nem sabia que existia essa polícia. Bueno, digamos assim, estava conhecendo agora.

Fomos caminhando, passando trilhos, até a base deles, na estação, um do lado e outro atrás, os dois de armas na mão. Dentro era escuro, pra quem vinha do sol alto, mandaram sentar numa cadeira e começaram a perguntar, de onde vinha, como tinha entrado no trem, eu contava tudo, com a maior naturalidade, o trem passou na minha frente, eu esperava amanhecer pra pegar a estrada, ouvi que a composição ia pra Ubá, nem sabia que era proibido pegar carona num vagão. Eu passava mal, pedia água, ressecado. "Água é o cacete!" era a resposta. Eles pareciam não se conformar, queriam alguma coisa mais grave, mas não tinha. Gritavam. Eu não reagia, falava baixo, mesmo com eles gritando, mesmo sentindo as pancadas, dizia "precisa mesmo disso?" e olhava nos olhos deles. Acho que cansaram de mim, eu não era mesmo nenhuma ameaça. Não me deram água, por mais que eu pedisse. Eles saíram, conversaram, voltaram e ameaçaram, "da próxima vez, vai ficar aqui, na cela, e tem processo federal, sabia?" Eu não sabia, mas sabia que eles estavam prestes a me soltar, aquilo era só o epílogo. Continuei na mesma, calmo, com cara de enjôo, me sentindo meio morto, cabeça pesada, doendo, garganta seca, falando muito baixo. A senha de saída, afinal, "some daqui!" foi dita com a porta aberta, não precisei falar mais nada, peguei minhas coisas e saí pra luz ofuscante do sol de duas ou três da tarde.

Matei minha sede na torneira do jardim em frente à estação ferroviária. Depois andei um pouco pela cidade, encontrei uma obra abandonada, entrei e dormi até tarde da noite. Acordei com mais disposição, saí, tomei mais água e perambulei até achar um bar. 

sábado, 8 de setembro de 2018

Meia dúzia de pensamentos

A solidariedade só é uma virtude nas classes abastadas. Nas classes  baixas, nas periferias, favelas, nas áreas de ilegalidade constitucional, de abandono social, a solidariedade é uma ferramenta de sobrevivência coletiva, automática, que brota nas dificuldades cotidianas dessas áreas.

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Consciência não se alcança, se desenvolve. O que se alcança são degraus, estágios de consciência. O desenvolvimento é permanente.

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Humildade não é uma virtude mas, sim, senso de proporção e inteligência, na disposição de aprender e crescer contínuamente com a alma, o espírito, o abstrato do ser. É uma das bases indispensáveis da sabedoria. Não confundir com humilhação, cegueira comum aos orgulhosos e aos arrogantes.

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A sinceridade é a garantia de uma vida em paz consigo mesmo e com as pessoas que convivem com a gente. Não é uma questão moral, é uma questão prática. A vida e as relações pessoais são bem melhores quando a gente é sincera, mais espontâneas, sinceras e confiáveis. Onde a sinceridade não é bem-vinda é o campo da falsidade, da hipocrisia, da superficialidade. Não pode haver harmonia nem paz de espírito. Uma questão de qualidade de vida. E as escolhas são pessoais.

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A mídia seduz para trair, encena para enganar, mente para servir aos poucos que se servem do todo em prejuízo de todos. Desinstruídas, desinformadas, alienadas, hipnotizadas, as multidões se tornam gado, facilmente manipulável. Na seqüência, a própria mídia criminaliza as vítimas, "responsáveis" pela degradação social, culpadas da sua desgraça. E as pessoas, em sua maioria, repetem a mídia, acreditam nela, se deixam seduzir pela falsidade, insconscientes, sabotadas em educação, em formação de senso crítico, em informação, no desenvolvimento de consciência que é seu direito. Humano e constitucional.

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O trabalho interno é permanente e é a raiz das mudanças verdadeiras. Sem ele, é tudo cênico. Com ele o trabalho coletivo se aprofunda, cria raízes e se fortalece. É a diferença entre sinceridade e falsidade. Em tempo, falsidade nem sempre é mal intencionada. Ilusão é a falsidade dos bem intencionados.




sábado, 1 de setembro de 2018

Capciosidade feita Utilidade

Recebi uma pergunta que antigamente se chamava de capciosa. "Como você vê o direito de legítima defesa do indivíduo?" Uma convocação ao confronto planejado, uma avaliação de que lado se está. Mas não caí na armadilha. E aproveitei pra dizer o que penso.

Esse é apenas um assunto de "campanha eleitoral", como chamam essa farsa, superficial demais como toda campanha publicitária, enquanto se evita a todo custo refletir sobre as causas de tanta violência e criminalidade. O foco é "combater" a criminalidade, como se fosse possível secar a casa sem fechar o furo no encanamento. O teatro tá montado pra canalizar as atenções. Essa disputa, essa rixa entre coxinhas e mortadelas, direita e esquerda, capitalismo e comunismo é coisa fabricada, programada, condicionada estrategicamente, sociedade do confronto, da disputa, do "vencer na vida", do consumo como valor social, da superficialidade, da forma sem conteúdo. São chamarizes (iscas pra chamar a atenção) pra que não se questione de verdade as raízes dos problemas sociais. Pra que não se perceba a intenção total e deliberada na manutenção dessa violência e criminalidade, até como fator de apavoramento. Isso facilita a criação de falsas soluções, como armar a população pra que "se defenda", aumento do sistema carcerário (com significativa privatização, pra quem tem olhos de ver), diminuição da maioridade penal e outras aberrações sub-humanas que só farão aumentar os índices da barbárie. É como desviar o fluxo do furo pra saídas da casa, que acumularão, criarão poças, se infiltrarão e minarão os alicerces da casa. Melhor fechar o buraco no cano, consertar o vazamento - e aí se encontra o atendimento dos direitos constitucionais da população, investimento maciço na educação livre pra qualquer um que deseje, abertura das comunicações pra todos, abrigamento de todos os desabrigados, alimentação pra todos os famintos, informação e formação pra todos. Estamos entre o empresarismo vigente e o humanismo que pretendemos. Entre o modelo empresarial - onde ainda estamos - e o modelo humanista - que já se mostra nos embriões, nos grupos de exceção, ainda invisibilizados e, quando visíveis, ironizados, desqualificados ou atacados.

Uma sociedade que tenha como prioridade a sua população e a sua integridade ambiental terá todas as condições pra receber cada criança que nasce, com moradia, alimentação saudável, saberá formar, instruir e educar os futuros adultos na integração em uma coletividade harmônica, com o objetivo de existir se desenvolvendo cada vez mais na direção da paz social, da harmonização das relações, eliminando fácil, pura e simplesmente o espectro vergonhoso da miséria, da ignorância e do abandono. Propostas sociais que não tenham essas prioridades imediatas, não podem ser vistas como humanas, são propostas empresariais, onde o lucro e o patrimônio são valores acima da vida, do ser humano, da harmonia social e da eliminação de tanto sofrimento desnecessário, por existirem todas as condições materiais pra isso. O empresarismo cria indiferença ao sofrimento alheio e o "justifica". A miséria é "a justa punição da incompetênca", como disse Galeano.

Interesses banqueiros, mega-empresariais, dominam a sociedade. Dominam os poderes públicos de várias maneiras, influenciando a educação e dominando as comunicações, conduzindo pelo inconsciente os valores, os comportamentos, os objetivos, os desejos, as opiniões - mesmo diversas - em massa. Cada vez que vejo uma nova palavra ou expressão brotando entre os pretensos instruídos da sociedade, sinto cheiro de laboratórios de pensamento, das academias, da mídia ou de ambos. Gente existindo como lixo, miséria e abandono nas periferias das milhões de pessoas exploráveis ou descartáveis são a exposição da desumanidade social imposta pelo "mercado" e exercida pelos Estados dominados.

Áreas dominadas, educação e comunicação, postas a serviço dos interesses mega-empresariais. São estratégicas na formação de um povo instruído e culto ou consumista e competidor, conhecedor da sua história e informado sobre o mundo ou ignorante e desinformado, capaz de escolher individual e coletivamente os melhores caminhos a seguir, as necessidades a suprir, as prioridades sociais ou facilmente conduzível pelo massacre midiático-publicitário pela formação ideológica nas escolas particulares e pela ignorância produzida pelo ensino público. Por isso são as mais ferrenhamente dominadas e sabotadas nas suas funções sociais. Não são as únicas, todas as áreas são lucrativas e estão dominadas. Mineração, transportes, medicina, alimentação, tecnologia, agronegócios, indúsrias, tudo.

Mede-se o valor humano pela propriedade, pela renda, pelo cargo, não pela humanidade, sentimentos, temperamentos, caráter. O objetivo é vencer na vida, e não apenas se satisfazer com ela, viver em paz e satisfeito com a existência. O sucesso é medido pela qualidade do consumo, pela quantidade de riqueza acumulada, não pelos afetos criados, pelo avanço da consciência, pela utilidade coletiva ou pela solidariedade. Os insatisfeitos são canalizados pela idéia de "mudar o mundo", de comandar os de baixo, de organizar as massas, programados que são pela hierarquia da escolaridade. Assim são anulados em seus propósitos, entre "vitórias e derrotas", "auto-críticas" e "reposicionamentos", impotentes em "mobilizar" as suas "massas". Antes de revolucionar a sociedade, é preciso revolucionar a si mesmo. É constrangedor, pra mim, encontrar pessoas ligadas a movimentos sociais divulgando sorteios pra estadias em hotéis de luxo. Esses privilégios da riqueza são frutos da injustiça social, coisa pra se ter vergonha, não pra se desejar, é o que me diz minha consciência. Bom, em lugar de "constrangedor" eu podia dizer "revelador", não?

Como é revelador perceber que médicos recebem "comissões" de laboratórios e indústrias médicas - como a de próteses -, engenheiros que superfaturam preços e subqualificam materiais, funcionários públicos que recebem propinas pra cumprir suas obrigações ou pra não cumprir, professores estafados por excesso de trabalho mal remunerado, a não ser nas poucas escolas caras, por exigências de elites na formação dos seus filhos, transportes públicos invariavelmente torturantes e desrespeitosos, forças de segurança fazendo guerras em meio aos bairros mais abandonados pelo estado contra os funcionários do crime "organizado" (por quem?).

Posso citar aqui ponto por ponto em nossa sociedade, mas seria aumentar demais esse texto. As demonstrações de que o Estado, conduzido como é, representa o crime organizado contra seu próprio povo, contra seu território, contra suas riquezas, contra sua soberania, contra o desenvolvimento das nações como sociedades instruídas, bem formadas, bem alimentadas, bem informadas, conscientes de si e da necessidade de desenvolvimento da sociedade humana, estão em cada ponto. Tomar consciência disso é o fundamento na criação de novas condições de existência da humanidade no planeta. As primeiras raízes a se perceber estão dentro de cada um de nós. O ampliar da visão é um processo permanente, no ritmo do desenvolvimento da consciência. As conseqüências se fazem sentir no coletivo, em seguida a cada passo. A caminhada não tem fim, pelo menos à vista, ao longo das gerações futuras até onde a imaginação alcança - a minha, claro. Há quem imagine "o fim de tudo".

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Distorções, raízes, indução e subversão


Ser radical não é ser extremista. Buscar as raízes, as razões de ser das coisas, isso é ser radical. Mas ser radical, numa sociedade que induz à superficialidade, é subversivo. Por isso se trocou o significado. Radical se tornou "agressivo", "briguento", "intolerante", "desagradável", "polêmico", se distorce o significado da palavra pra evitar a sua compreensão. E evitar a sua prática. Ser radical é ser profundo, reflexivo, buscar entender a realidade indo às raízes das coisas. Posso ser gentil, tímido e, ao mesmo tempo, radical. Mas essa distorção do significado não é nenhum acaso.

Buscar as raízes da miséria e ignorância, por exemplo, ou o por quê de tanta ânsia de consumo como valor social, ou o por quê do tráfico ser combatido há tantas décadas, com fúria, guerra, ódio e matanças, e não ter sido extinto - ao contrário, parece tão forte como nunca, imbatível. O por quê da polícia ser tão agressiva, sobretudo com os mais pobres; os por quês dos serviços públicos serem perversos, insuficientes, torturantes quando se trata dos mais sem direitos da sociedade, dos mais pobres (em saúde, em educação, em informação, em moradia, em saneamento, em tudo). Ou por quê as comunicações são dominadas com fúria pela mídia comercial e o Estado está distribuindo o conversor pra televisão digital na cesta básica. São muitos por quês a perguntar e, se a gente radicaliza, ou seja, busca a raiz das coisas, percebe a infâmia deste modelo de sociedade.

Entender por quê preciso viver um inferno pra ter tanta coisa que não preciso, competindo, aturando situações horríveis, na avidez pelas sextas e na tristeza das segundas, ao custo das coisas que verdadeiramente preciso, minha paz de espírito, minha consciência tranqüila, a troca de afeto com a coletividade, o sentimento de utilidade, de satisfação em viver. A sociedade impõe um modelo de educação centrado na competição, na disputa, em vencer, que apresenta o mundo como uma arena competitiva onde é cada um por si. Seria melhor se tivesse seu foco na formação de pessoas pra integrar uma coletividade harmônica ou que pretende alcançar a harmonia social. Mas a educação imposta atende interesses empresariais, temos os bancos e as mega-empresas no poder, nos bastidores dos poderes dito públicos, dominando e determinando de forma enviesada (a chamada "política") a formação das crianças, das pessoas, de corações e mentes através do modelo empresarista de educação e do controle das comunicações, da mídia que invade todas as casas, formando mentalidades e deformando a realidade.

Não venho trazer "a solução", não teria essa ingênua pretensão. Mas creio que mais e mais pessoas enxergando mais e mais a realidade além da que nos é mostrada, farão surgir - como estão fazendo os grupos de exceção que já existem, invisíveis e invisibilizados pela mídia, quando não atacados ferozmente com calúnias, difamações e criminalizações várias - soluções diversas, locais, regionais, ao longo do tempo e das gerações, como percebo que é o processo de evolução planetária. Estão se formando, continuamente, pessoas que vão construir uma sociedade humana, menos injusta, menos perversa, mais solidária, mais amorosa. O tempo de uma vida é um grão de poeira na eternidade incompreensível.

Participar com o melhor da minha consciência é o que posso ter de mais satisfatório e, pra isso, devo estar em estado de conscientização permanente, de migo pra comigo. As raízes mais profundas a que tenho acesso estão em mim mesmo. Gosto e preciso ser radical. Preciso e gosto de trabalhar com isso. Assim tenho satisfação em viver, num mundo onde se toma toneladas de anti-depressivos todo dia. Um egoísmo que resultou coletivo. Vai ver que nem todo egoísmo é ruim. Aliás, já se reparou como estão ligados individualismo a egoísmo? Não faz o menor sentido, ou faz, mas no sentido da distorção de significado. Individualista é a pessoa que respeita o indivíduo, seja ele o que for, do jeito que for, tenha a forma ou a maneira de ser que for. Desde que respeite todos, merece o respeito de todos. Isso é individualismo. Mas, na sociedade da padronização, não pode. É preciso padronizar formas, pensamentos, comportamentos, visões de mundo, desejos, objetivos de vida, valores pessoais e sociais, pra manter a sociedade como é. Então se distorce o significado e individualismo se torna sinônimo de egoísmo. Porque o significado é subversivo.

Laboratórios de pensamento trabalham no controle mental exercido pela mídia e pelo seu massacre ideológico-publicitário. Seria bom se perguntar "será que o que eu quero da vida é o que eu quero mesmo ou eu fui induzido a querer?" Essa mesma pergunta pode ser feita com "visão de mundo", com "valores", com muitas coisas. Alguns dirão que é alucinação minha e eu recomendaria ouvir com atenção a letra do Belchior em Alucinação. Respeito qualquer opinião, mas mantenho a minha enquanto não perceber algum erro. E acho que a sociedade precisa de mais radicalismo e individualismo - reflexão e respeito. A ordem vigente é desumana, anti-vida. É preciso subvertê-la, evidentemente. Estamos todos num inferno. E as exceções do inferno são os demônios, são o inimigo que se faz de "admirável", de "exemplo inalcançável", sedução e indução.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Trator de Palmeiras agride Celestina, a kombi.

Ele veio de ré, direto, sem olhar pra trás.
Estrada Palmeiras-Vale do Capão, o trator operava espalhando pó de pedra - não sei por que cargas dágua usam isso, levanta uma poeira densa e fina no ar. Paramos à distância, coisa de 50 metros. Ele atravessava, buscava carga na pá, jogava no chão e espalhava de ré, com a própria pá. Não havia nenhum outro funcionário, nada de cones, balizas, nenhuma sinalização, ninguém pra orientar os carros ou o tratorista. Ele pegou mais uma carga do pó, jogou e veio vindo de costas, alisando o chão. Eu vi que vinha na nossa direção, mas a cabine era de vidro e eu imaginei que ele estava olhando pra onde ia. Só que ele não estava, quando vi a pá da traseira chegando perto demais, olhei pelo retrovisor e tinha um carro parado bem atrás. Não deu mais tempo de nada, a pá traseira quebrou o parabrisa e empurrou a kombi pra trás meio metro. Com o barulho e os gritos, o trator parou. Fui ao tratorista, na cabine, um menino de pouco mais de vinte anos, assustado e com medo de perder o emprego. Quis dizer que "cês também enfia o carro debaixo da máquina", esboçando uma agressividade defensiva, mas não pode explicar o movimento sem olhar pra onde estava indo. Pedi pra ele chamar a chefia, um responsável, ele ligou pelo celular. Aí começou a comédia.

Chegou uma moça, num carrão, dizendo ser secretária do vice-prefeito. Vendo as coisas, ouvindo as explicações, ligou pra mais alguém vir. Minha impressão é que disseram pra ela "vai lá ver o que tá acontecendo" depois da ligação do garoto. Em pouco tempo, chegou o secretário de infra-estrutura da prefeitura. Quis saber se a kombi tava com os documentos em dia pra registrar a ocorrência. Claro, kombi velha, qualquer falha aí e poderia esquecer o assunto ali mesmo - e com ameaças. Mas tá tudo certim com os doc da velha senhora, até a vistoria do gás tá em dia, coisa que nem mesmo os guardas rodoviários lembram de pedir. Concordamos em registrar a ocorrência, até pra ir a Seabra fazer o conserto - tem um posto de polícia rodoviária na chegada que pode nos parar pelo vidro quebrado. João Batista, esse é o nome do secretário, discordou quando falei que seria preciso ter mais funcionários e sinalização, "aqui não precisa disso não". Clarinha perguntou se as leis de trânsito no país não valiam por aqui e ele ainda insistiu, "aqui nunca teve isso não". A reação dela fez o secretário parar de falar, se afastar e prestar atenção no celular. Pra chamar a polícia civil, segundo ele, e fazer a ocorrência. Em seguida, disse pra irmos nós mesmos na delegacia, que tinha falado com o responsável - imaginei que era o delegado, mas soube que não fica delegado aqui, talvez escrivão ou agente. Tiramos várias fotos, registrei os números do trator e fomos. Duzentos metros depois um carro em direção contrária sinaliza pra nós. Paramos, era o delegado - ou, sei lá, o responsável pela delegacia -, estava indo ao fórum, em Iraquara, disse que vinha ver o acidente e que dissera ao João Batista que estava de saída da delegacia pro forum. A delegacia estava fechada, não havia ninguém pra registrar a ocorrência. O secretário não tinha como não saber disso, quando nos mandou lá. Decidimos ir à prefeitura pra falar com ele. Chegando lá, Clara entrou e foi informada por uma funcionária que a secretaria da infra-estrutura era noutro lugar e o secretário devia estar lá. Estávamos dando a volta na praça quando João Batista desponta vindo à prefeitura. Fiz sinal e ele parou. Recomendou de novo o BO, afirmou estar em contato - ele tinha passado o uatizape dele pra Clarinha - e que "tudo se resolveria". Sei. Em seguida João encostou o carro na porta da prefeitura, abriu a porta da frente e quem entrou? A funcionária. Ela estava esperando o secretário, que a levou pra almoçar, mas disse que ele devia estar na secretaria, longe dali. Eles almoçaram, inclusive, na mesma "comida caseira" onde nós comemos. Boa comida e preço baixo. Fomos depois até a delegacia, que estava realmente trancada - parece que as "falas públicas" se desacreditam por si, é preciso conferir.

Durante os acontecimentos, ficamos sabendo que o trator não é da prefeitura, mas do vice-prefeito. Está "emprestada" à prefeitura porque a máquina do município está quebrada. Que em Palmeiras não vigoram as leis sobre obras em rodovias - um tratorista sozinho operando numa estrada aberta, sem sinalização, sem funcionários, nada pra orientar os motoristas e os movimentos.

Com tudo o que penso dos poderes chamados "públicos", não espero muito. Na verdade, não espero nada além de engabelação, promessas mentirosas, adiamentos e omissão. Gostaria de estar errado, mas seria preciso pessoas de bom caráter, senso de justiça, que assumissem a responsabilidade pelos erros cometidos que me deram um prejuízo grande, pro meu padrão econômico. E isso, na máquina do Estado, é coisa rara. Sobretudo nos postos de mando. Como não sou ninguém importante (leia-se influente ou cheio da grana), sei bem o trato que me espera. Mais uma vez, espero estar errado. Se estiver e me pagarem o prejuízo, volto aqui pra contar.

Amanhã vamos a Seabra - depois de registrar a ocorrência pela manhã, conforme nos disse o policial. Vamos gastar o que não podemos no conserto, lanternagem e parabrisa. Na volta, procuramos o secretário da infra-estrutura de Palmeiras, João Batista, pra ver o que acontece. Aguardemos.

O agressor e a agredida.
Foi uma cena e tanto ver a escavadeira rompendo o vidro e quase entrando.
A ressaca da porrada é sempre triste. Mas considerar que ninguém se machucou, além da kombi, já alivia. Celestina resiste.


Uma grande covardia...


Meio metro de arrasto, com o pé no freio pra não atingir o de trás. Não atingiu.
A publicidade do poder "público" e um efeito da sua ação. Tá certo que um é estadual, outro é municipal, mas no fim é tudo a mesma coisa, posam de públicos mas defendem interesses privados como prioridade. É o modelo da nossa sociedade.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.