segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ninguém nasce bandido



Tempos atrás, para chegar em casa, eu passava pelo meio do "movimento", no morro do Fogueteiro, subindo da rua Itapiru em direção a Santa Teresa. Todos me conheciam, morei por ali um ano. Uma vez, eu vinha subindo devagar, de noite, carregado de compras, mais o material de trabalho, quando de um beco sai um moleque pequeno e escuro, com uma bolsa atravessada e uma pistola cromada na mão. No escuro, o cromado aumentava o tamanho da arma e a desproporção com o garoto. Não o conheci e, por instinto, atentei em seus movimentos. Ele caminhou com desenvoltura em direção à turma do "plantão", falou com uns caras da boca, entregou ou pegou alguma coisa que tirou ou colocou na bolsa - não reparei - e saiu andando na direção de uma escada. Dois garotos pequenos jogavam bola perto de um poste mais acima e, nesse momento, deixaram a bola escapar pro lado de cá. Junto com a bola veio o grito - "pega aê!" A bola rolava na direção do menino com a arma e ele virou, levantou a bola com habilidade, matou no peito, fez uma embaixada com os dois joelhos, com os dois pés e devolveu pros meninos no exato local onde eles estavam.

Foi durante esse ato que percebi, meio espantado, ser um menino da idade do meu filho, talvez um pouco mais ou menos. E aí eu pude me dar conta da humanidade dele e da situação em que se encontrava. Tanto que morreu algum tempo depois, como outros que conheci, em tantos lugares.

No desenho eu pretendi inverter o processo de percepção, e escondi a pistola sobre um fundo escuro de uma cerca, para mostrar primeiro a humanidade do menino. Depois, o risco e as opções que lhe são postas, na vida, além de abstrações inatingíveis para a esmagadora maioria, roubada no ensino, na cidadania, na dignidade, nas oportunidades de desenvolvimento real, nos serviços "públicos" e em consciência.

Um outro menino, que chega da escola, de mochila, carregando compras com a mãe, que vem logo atrás, passa tranqüilo pelo fuzil encostado na mesa de sinuca, enquanto os caras do movimento se arrumam com suas mercadorias, funcionários do tráfico nas posições mais expostas e arriscadas, sujeitos a extermínios constantes, mas facilmente substituíveis em meio à miséria circundante. Nesses locais de exclusão, o Estado só se apresenta com a polícia e é quando o terror se implanta na forma mais aguda, pondo em risco a vida de todos na área, matando com triste freqüência envolvidos ou não com o tráfico.
 
Na birosca rola uma cerveja, uma cana, uma idéia, enquanto as mulheres penduram as roupas lavadas nos varais. Há algo de antigo na favela, de quando as casas ainda tinham quintais e espaço.

29 comentários:

  1. Mt bom! Sou fascinada pelo seu trabalho.
    Parabéns! Mta paz e luz.
    Abraços!

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  2. Muito bom o trabalho, excelente a reflexão.

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  3. Muito bom, estou divulgando teu trabalho no meu pequeno blog, chama-se "Bicicleta Alternativa".

    Parabéns cara, grande artista tu és.

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  4. Olá Eduardo! Desde já deixo meus elogios pelo excelente trabalho que vc realiza, parabéns! Assim vemos que nao estamos sozinhos na luta contra esse sistema atual 'bomba-relogio', controlado por uma elite doentia megalomaniaca que só pensa em poder, acumular, ter..alienando e guiando as pessoas como gado, caminhando lentamente para a autodestruição..e a muitoo tempo esses caras guiam o mundo na vontade deles..mas tenho certeza que a humanidade vai acordar do sono profundo e retomar o poder de decisão, na forma que sempre deveria ser..Estou divulgando algumas postagens em meu blog, 'wake up'[http://revelatti.blogspot.com], dá uma passada la depois ^^

    Falou cara, abraço!
    Paz e Luz

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  5. Sugiro pesquisar, só pra começar, o Clube de Bilderberg, no gúgol. Projeto Haarp também é uma boa, pra quem quer conhecer o potencial dos poderes vigentes no planeta. Pobre Haiti, tão nobre história, tanto esculacho feito pelos interesses das grandes empresas, dos "donos" do mundo, do capital, do mercado financeiro, das transnacionais.

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  6. Que desenho massa cara!

    E com seu texto ele cria ainda um sentido maior!

    Parabéns pelo seu trabalho e por sua vida!

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  7. Este blog é simplesmente fantástico! Também desenho,nunca corrompi minha arte e sempre me mantive auto-didata, não confiei nunca em sistema de ensino e estado. Dei-a uma vista de olhos no meu blog!
    Abraço!

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  8. Muito belo o modo com o qual você retrata a realidade presente nas favelas; e realmente, ninguém nasce bandido. Não haveria motivos sociais para uma pessoa recorrer à atos criminais senão houvesse o descaso com a massa pobre brasileira. Se somos vítimas de crimes, assaltos, assassinatos etc, é porque erramos em algum lugar em nosso passado e insistimos neste mesmo erro. "Nós" somos os reais criminosos.

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  9. Erramos cotidianamente. Nossos desejos e valores são, em sua maior e essencial parte, produzidos por profissionais de propaganda, publicidade e márquetim, a soldo de empresários que lucram com o consumo desenfreado, a desinformação e a desunião das pessoas. Desperdiçar, enquanto houver tanta carência abjeta, é desumano. Consumir o mínimo necessário é solidariedade com essa enorme parcela abandonada, explorada, prostituída, roubada e enganada.

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  10. Muito bom...cara o que tu faz é sensacional...muito bom mesmo...parabéns...paz e amor!

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  11. Eu não generalizaria tanto, rapaz, creio que não são todos os quais se deixam levar pelas propagandas enganosas que nos passam falsas necessidades. Você é um exemplo disso e há muitos outros que se negam a consumir feitos porcos por não querer contribuir pela miséria já existente. Em minha vida buscarei o sucesso pessoal, não o comercial. Não pretendo contribuir para que mais humanos se tornem pó enquanto poucos se tornam ouro, infelizmente somos nada comparado àqueles que anseiam o dinheiro e o bem material.

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  12. Há muitas coisas que se generalizaram, independente das nossas interpretações ou apartes. Mas, nesse texto específico, não percebi nenhuma generalização. De que você está falando? Que há exceções, isso é claro, mas exceções só comprovam a regra geral.

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  13. Diferentes cidades, semelhantes realidades... = (
    Assisti outro dia o documentário do fotógrafo Yan Arthus, onde ele documenta as "coincidentes" realidades dos países "em desenvolvimento"; as mazelas que acontecem por esse mundão afora, as vidas - de todas as espécies - que são sugadas e massacradas... O nome é "O Mundo Visto de Cima" (ou algo semelhante). Ainda não achei para baixar aquele, mas se tiver tempo de ver ao menos a introdução, acho que irá gostar (ou não, rsrs, mas indico mesmo assim): http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/yann_arthus_bertrand_captures_fragile_earth_in_wide_angle.html

    Parabéns pelas artes - desenho e texto.

    Abraços,

    Lu = )

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  14. Estou falando que você generalizou ao falar que "Nossos desejos e valores são guiados por propagandas", essa foi sua generalização, não são todos, na minha opinião.

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  15. Não são todos, é certo. Há exceções. Mas são exatamente isso: exceções. O que é que geral pensa do MST? E do Hugo Chávez, Evo Morales, Raul Castro, Daniel Ortega? Alguma mídia divulga que esses países eliminaram o analfabetismo (declaração da UNESCO) e implantaram eficientes sistemas de saúde pública gratuitos, além de livrarem seus Estados das garras das grandes empresas transnacionais que acorrentam a maioria dos governos, impedindo-os de cumprirem suas funções constitucionais para com seus povos?

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  16. São essas empresas que controlam a mídia, são esses interesses que a mídia defende com unhas e dentes, atacando histericamente tudo que serve às reais necessidades da maioria, tudo o que reivindica, conscientiza ou defende a população.

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  17. Concordo plenamente com o senhor, Eduardo. Aliás, o mais engraçado é que quem tem esse tipo de conhecimento ou são pessoas que pesquisaram ou que conseguiram isso em algum ensino privado(considero faculdade ensino privado, porque só que tem ensino privado consegue algo na faculdade[excluindo cotas]). Bom, então acho que concordamos, não há mais o que discutir.

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  18. Antes de tudo...sou Português ( só para entenderem o enquadramento eheh ).

    Vivi uns meses em Salvador na Bahia, junto ao Porto da Barra.
    Nos primeiros dias, acabado de chegar ( estava a fazer uma tese final de Licenciatura, sobre a fundação da cidade de Salvador ), tive um convite para uma festa em casa de outro português ( onde participavam inumeros estrangeiros e brasileiros ).
    Eram umas 4 da manhã...e decidi regressar.
    A pé...
    Sem saber bem onde estava, fui andando com algumas indicaçoes de pessoas que ia encontrando na rua.
    Perto de casa, vi um supermercado 24H aberto, e aproveitei para comprar sucos, aguas e iogurtes...
    Fiz o trajecto final até casa, com os sacos na mão. Ao chegar a casa, estavam vários meninos de rua a dormir no passeio..em cima de cartão.
    Um deles estava acordado ( o mais novo..tinha uns 6 anos ) e piscou-me o olho.
    Eu perguntei: vc quer um iogurte?
    Ele levantou..e falou baixinho: claro tio!
    Fomos ao meu apartamento e lhe dei todos os sucos e iogurtes que comprei, ficando com a água.
    Ele foi embora...
    Fui na varanda, e lá estavam eles a beber tudo. O mais novo fez OK com os dedos para mim!

    Dias depois, como sempre, fui na Praia do Porto da Barra no final da tarde, e estava deitado na areia e pedi um Guaraná. ( eles levam ao local onde estamos sentados )
    Como sempre levava um real.
    Paguei com um real, e disse: fica com o troco.
    Ele voltou e me deu 0,5 real de volta.
    Eu falei: fica com o troco.
    Ele disse: Nao quero.
    Pq? - disse
    E ele disse: Eu era um dos meninos que estava na rua naquela noite. De vc eu já tive tudo!

    Abraço. Adorei o teu video na Internet! Virei fã! Meu emai: nmms1975@gmail.com
    Se um dia for aí te compro uma peça de arte..seu..seu..."artista" hahaha

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  19. Um grande abraço, Nuno. Vivi em Salvador um bom tempo da minha vida, em situações de alta aprendizagem. Tenho uma filha nascida lá, tenho lembranças e experiências incríveis dessa época, morando na ilha, em Arembepe... de 82 a 85 vivi por ali, fora várias passagens, vindo do norte ou do sul. Muita história, muitas histórias.

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  20. Este comentário foi removido pelo autor.

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  21. Faço questão de comentar aqui e te parabenizar pelo seu trabalho. Parabéns. Sua luta não será em vão

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  22. Eduardo, ouvi falar do seu trabalho e assisti a um vídeo no youtube também. Quero te dar os parabéns pela arte e, principalmente, pela coragem.
    Divirjo de você em pontos relativos à forma e ao conteúdo da luta e à crítica aos marxistas. Generalizar é complicado e a luta por uma sociedade livre passa muito longe do idealismo. O nó está, como nos ensina Marx, nas relações de produção, a base material e concreta das ideias, políticas, mídias, governos etc.
    Hábraços revolucionários!

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  23. Cara parabéns!
    Nem sei se vc acredita no ensino de Jesus, mas na minha opinião vc vive esse ensino na prática.
    Vc é mais cristão do q eu, que cresci em uma igreja evangelica.

    Mais uma vez parabéns, e q Deus te abençõe muito, e seja a tua força no dia da angustia.

    abraço.

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  24. O problema é que não me sinto parte de uma parcela, mas sim do todo. Não creio num Deus divisionista, que salve um bocado e mande a maioria pra um inferno "eterno". Colhemos, todos, os frutos ou espinhos que plantamos, e seguimos adiante, rumo ao infinito, à eternidade, à perfeição, à liberdade, à felicidade, seja lá o que forem essas coisas que, do ponto e do nível primário que nos encontramos, ainda não temos condições nem de imaginar o que sejam. E qualquer um que me diga que sabe e quiser explicar, se situa, a meu ver, entre a infantilidade e a pretensão. Falta humildade pra perceber que a razão não alcança, que é preciso usar a intuição, é preciso sentir. Explicar acaba criando códigos tirânicos e espiritualmente ridículos, arrogantes e simplificadores, o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, o céu e o inferno "eternos". E ficamos assim, uns apontando o dedo pros outros, cada grupo pretende ter o privilégio da "verdade" e acusa os outros de estarem com o "inimigo". Respeito. Mas tô fora. Vejo da minha própria maneira, cheio de dúvidas, mas em busca, em desenvolvimento. E levo tudo em conta, sem me tornar seguidor de nada, além da minha própria consciência.

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  25. Aliás, é a consciência nossa centelha divina, nosso contato com o impalpável, com o imponderável, a energia cósmica, deus, seja lá o nome que nossa ignorância inventar. E a consciência é, essencialmente, intuitiva.

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  26. Estou amando ler você, Eduardo! A sua fala é muito terna, e suas sacudidas chacoalham direto e exatamente onde são necessárias! Claro, já estive com os olhos abertos, arregalados em meus momentos de buscar a luta, mas acomodei com a vida e deixei passar batido essas tantas coisas que deveriam ainda, sempre estar pulsando na nossa consciência... Sentei sim, vendo a vida passando correndo diante de mim, que triste... Parabéns e obrigada pelo despertar que você nos sugere de uma forma tão euqilibradamente clara e direta, completamente compreensível e inegável. Nem tem mais pra onde olhar. Quero acordar de novo, interiorizar e passar adiante. Obrigada.

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  27. A classe média é uma coletividade grande e variada, com muitos níveis econômicos, culturais e instrucionais. A coletividade se assemelha ao garimpo, um monte de cascalho, lama e pedras, salpicado, aqui e ali, por pedras preciosas. Do grosso, se aproveitam as exceções. Mas a preciosidade humana tem uma característica ímpar - ela contamina.

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