À Sombra de um Delírio Verde from
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Domingo passado estive num evento em São Paulo, TedxDaLuz – só descobri a pronúncia quando ouvi falando, “tedex da luz” –, um ciclo de palestras e apresentações de sensibilização, no sentido do desenvolvimento das percepções mais sutis da existência e da evolução humanas em meio à diversidade infinita em unidade absoluta no planeta e no universo. Saí de casa na sexta pela manhã e me desliguei dos boletins de notícias que acompanho, longe das distorções e traições da mídia comercial.
Durante o evento recebi a informação do massacre, sexta-feira à noite, dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Um crime anunciado, prometido e previsível. O coração apertou e se formou um nó na minha garganta, entre a raiva, a tristeza e a vergonha. Os povos originais são perseguidos e dizimados desde que os europeus chegaram por aqui, tomando posse do que não era seu apenas por não encontrar armamentos para lhes fazer frente e de olhos cobiçosos no que consideravam “riquezas”, em sua visão fria e convenientemente preconceituosa.
Aliás, a “civilização” européia fez isso em todos os continentes, invadindo, saqueando, produzindo morticínios, escravidão, torturas, genocídios. Não entendo como alguém minimamente lúcido pode admirar essa “civilização”, evoluída a partir da miséria e do sofrimento impostos em todos os lugares onde chegaram e por onde passaram.
Os povos originários os receberam de braços abertos e, em troca, foram enganados, usados, escravizados e expulsos dos territórios onde viviam. O europeu não se contentava nunca e, gradualmente, milhões e milhões de nativos foram violentados, mortos ou postos em fuga. Famílias, tribos, povos inteiros.
Quando a evolução da sociedade colocou a necessidade de novos critérios de comportamento menos desumanos, ao menos na aparência, pelo incômodo de consciência com a desumanidade descarada, foram se criando reservas para as populações indígenas remanescentes, para depósito e justificativa do roubo dos seus territórios. Entulharam-se em tais reservas os sobreviventes de várias etnias, todas destruídas física, moral e culturalmente. A sociedade da produção e do consumo, da exploração e do controle da maioria por alguns poucos não pode tolerar a existência de coletividades que não partilham dos seus valores, não dependem dos seus produtos e são evidentemente mais felizes em sua simplicidade.
Os exploradores do trabalho alheio, seus arautos e forças armadas, sem conseguir escravizar plenamente os povos nativos, trataram de criminalizá-los, desumanizando, difamando, apontando sua reação ao saque, à invasão e ao extermínio como prova da sua “selvageria” para justificar a necessidade da aniquilação.
Ao não se deixar dominar e com sua autonomia plena, os povos indígenas incomodam. O fato do índio produzir tudo o que precisa para viver, de forma independente, autônoma, e não assimilar o trabalho como o centro da vida, muito menos a produção em massa e a busca do lucro e dos excessos materiais, constitui um “péssimo exemplo” de liberdade, alegria e independência que apavora os concentradores, os dominantes e manipuladores da estrutura social dita civilizada. Daí o ódio, forjado e implantado de todas as formas nos valores da sociedade da época e até hoje.
Não me esqueço de quando eu acampava em Barra do Riacho na época em que se implantava a Aracruz Celulose, as histórias que ouvia dos pescadores e moradores da área, de como estavam ocorrendo conflitos com os índios que viviam na área (conflito é um eufemismo pra massacre), terminando com seu aniquilamento e expulsão dos sobreviventes. Na época ainda vigorava a ditadura dos militares e a imprensa era mais amarrada ainda do que atualmente – nada saía na mídia. Vinte anos depois, esses sobreviventes e seus descendentes, já organizados e lutando pra recuperar pelo menos parte do território roubado, com o inusitado apoio da FUNAI, conseguiram algumas migalhas e passaram a ser acusados de inviabilizar o “progresso”. Alguém me enviou a foto de um “autidor” plantado numa cidade de lá, não lembro se era na Serra ou em Aracruz, afirmando “a Aracruz trouxe 1500 empregos, a FUNAI trouxe os índios”, como se fossem eles os invasores. Essas distorções mentirosas são recorrentes no processo de extermínio e dispersão.
Essa “civilização” é, ainda, uma vergonha pra humanidade inteira, pela destruição inerente à sua existência que causa em todos os sentidos, enquanto arrota uma superioridade ridícula, com base num desenvolvimento tecnológico reservado a minúsculas parcelas da coletividade, justamente as mais arrogantes e egoístas, exploradoras, controladoras e dependentes da maioria.
Os Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, ou os que sobraram daquele povo, não possuem mais apenas a sabedoria ancestral da harmonia com a natureza e entre si, numa sociedade sem miséria ou abandono, sem predominância de uns sobre os demais. Eles foram acrescidos da sabedoria que a resistência ao sofrimento produz. Será difícil encontrar algum deles que não tenha vários parentes, amigos e conhecidos assassinados. Séculos de perseguição, expulsões, assassinatos, sem descanso ou intervalo, covardemente, sob a indiferença da coletividade, com a conivência de todos os governos e a participação das forças públicas que, na verdade, servem aos interesses privados dos poucos poderosos, como é de praxe.
Os povos originários não acreditam num deus que criou o mundo para o ser humano, um deus que tem filhos preferidos e estimula a guerra, exige bajulação e sacrifício, que se vinga e impõe sofrimentos eternos aos que o desagradam em seus absurdos regulamentos. Ao contrário, na sua concepção a existência é a integração de todos os seres, minerais, vegetais e animais, onde a Terra é a mãe de todos e merece o máximo respeito, os rios são as artérias e veias do mundo e a água é o sangue que deve ser mantido puro. Sabem que somos parte da natureza e que dependemos dela integralmente, daí sua veneração e gratidão por ela. Não podem entender a destruição e a contaminação, sem medida ou contenção, produzidas pela sociedade “evoluída”, como se fossem os donos da natureza, em nome de benefícios imediatos e ilusórios, sempre restritos aos poucos poderosos.
Devemos muito, toda a família humana e sobretudo os adeptos dos valores europeus, a esses parentes que foram submetidos pela força das armas e das doenças, violentados em seus direitos, inferiorizados em todos os sentidos e declarados culpados pelos crimes que sofreram e sofrem cotidianamente com a ambição desmedida que é estimulada em nossa sociedade, assim como o egoísmo e a indiferença diante do sofrimento alheio.
Se (ou quando) a sabedoria desses povos for abraçada e assimilada pela nossa coletividade, aí sim, poderemos sonhar e construir uma sociedade menos injusta, perversa e covarde, mais solidária, equilibrada e bela. E, afinal, verdadeiramente humana.
Aos Guarani-Kaiowá, toda minha solidariedade, todo meu respeito e minhas lágrimas de tristeza e vergonha. Sentimento que se estende a todas as etnias nativas, exterminadas e remanescentes. E aos miseráveis, aos sabotados, os explorados ou abandonados da nossa "bela" sociedade. Que a luz das consciências reflexivas se espalhe e percebamos a humanidade inteira como uma única família. Que o senso de justiça se desenvolva e molde nossos valores e comportamentos para além das induções criminosas da propaganda mentirosa que só tem como objetivo a contínua concentração de poder, o enriquecimento cada vez maior dos ricos dominantes sobre o sangue dos povos.
Eduardo Marinho – 24 de novembro de 2011