No primeiro jogo, Brasil e Croácia, desci da casa de Brisa pra expor os desenhos e, depois de armar a exposição, comecei a observar os preparativos. Os poucos bares em verdeamarelo, fitas, bandeiras e bandeirinhas, decorações nas paredes e tetos, bastante gente, camisas amarelas da seleção, com a marca da cbf, uma empresa privada denunciada por incontáveis falcatruas. Resolvi subir até o Pretinho, ninguém ia ver desenhos por enquanto. Fui passando e olhando a expectativa, as expansões de euforia, as expressões, os gritos, apitos, vuvuzelas, poucas mas barulhentas, achando tudo muito idiota e ao mesmo tempo me sentindo arrogante com esse pensamento. Cheguei lá, peguei uma cerveja e sentei em frente. Havia uma televisão em cima do telhado do bar, na parede do segundo andar. Resolvi escrever o que viesse na cabeça, abri o caderno, ponhei a caneta do lado e comecei a apreciar os acontecimentos. O tempo andou e achei que o texto ficou velho pro momento, ia deixando pra um dia mais longe, talvez, mas uns amigos leram em Beagá e acharam que teria proveito publicar. Bueno, taí.
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Catarse coletiva, produzida e conduzida, gera lucros gigantes.
À custa de muito sofrimento da população mais pobre, maioria. |
Assim vi o jogo...
Eduardo Marinho
Fui andando por Maringá, do muro onde exponho até o Pretinho. Ele colocou uma televisão no alto da parede acima do bar, no outro lado da rua construiu umas mesas anos atrás e deu uma garibada, cadeiras e bancos, improvisando uma minúscula pracinha. Sentei ali, peguei uma cerveja e abri o caderno.
Pelo caminho vinha observando. Camisas amarelas, muitas, os poucos bares lotados, fitas verdeamarelas penduradas, bandeirinhas, falas entusiasmadas, bonés e expectativas, tudo soa falso. Não hostilizo, não tenho nenhum sentimento de condenação, de reprovação, de repulsa, observo com respeito, um pouco de tristeza, só um pouco. Não é novidade. Falar em direito à alienação seria forçar a barra, mas não me dou o direito de julgar, não tenho. É preciso reconhecer a eficácia do trabalho de distorção, de alienação, feito por exércitos de marqueteiros, publicitários, animadores, comentaristas e todo o aparato midiático. Transformam um evento criminoso, que tem no Estado seu principal cúmplice e apoiador, numa festa de cores, sons e emoções, de entusiasmo e estupidez, de consumo e lucros gigantes pros patrocinadores e empresas agregadas. Tranformam tragédias em alegria - só podia ficar falso.
"De arrepiar", "momento histórico", "emoção à flor da pele", disparam a cada momento os chamados jornalistas esportivos. Ridículo, infantil, primário. Momento histórico foi o encontro de comunicadores periféricos, meses atrás na Rocinha. Fala-se em emoção, em alegria, e não se lembra que duzentos e cinqüenta mil famílias (duzentos e cinqüenta MIL famílias) foram expulsas das suas casas em nome da copa pra favorecer a especulação imobiliária, construtoras e outras empresas, além de "varrer" a pobreza que a sociedade produz pra longe dos olhos abastados, a tal "limpeza social", tão repulsiva quanto vergonhosa. "Dia de festa", grita o apresentador na televisão, inúmeras vezes. "Momento histórico" também é repetido à exaustão - pobres historiadores, pobre história.
Cenas coloridas, limpas, nítidas, muitas câmeras em todos os ângulos, alta tecnologia. Torcidas uniformizadas cantando e pulando sem parar. "Festa na arena esportiva!"
"Vem aí o Brasil!" E entra a seleção dos milionários do futebol, porta-bandeiras das multinacionais. Uma copa de mentiras e perversidades sem conta nos seus bastidores, sob o silêncio criminoso da mídia. O jogador famoso, agora comentarista, carrega o filho nos braços e diz que está "feliz e contente". Um paraplégico chuta a bola, amparado por um equipamento de última geração, do qual a população não vai sentir nem o cheiro. A televisão repete o chute chôcho vezes sem conta. Os comentaristas falam sem parar, não podem parar, fofocam, falam merda em cima de merda, incansáveis. Da responsabilidade dos jogadores com seus países - não se fala em patrocinadores -, de "união dos povos"- coexistência de torcidas no mesmo espaço geográfico, nada além disso, obviamente, "momento especial", "significativo", "simbólico", a fanfarra não tem limites.
Rolam os hinos. Olhos fechados, mãos nos corações, parecem acreditar nessa presepada toda. São muito bem pagos pra isso, embora a ilusão acabe nos contratos. O hino brasileiro é interrompido na primeira parte, regras da fifa, é muito grande. Mas a população canta a segunda parte por conta própria, os jogadores acompanham. Lágrimas, comoção, locutores embargados, "é muita emoção!"
Dada a partida, foguetório, gritaria, cachorros se escondem, apavorados, ovos goram nos ninhos, nos galinheiros, com as explosões. "O Brasil fica com a posse da bola!" e o país que eu conheço não possui nem a si mesmo. Publicidade explícita, implícita, subliminar, insinuada, a psicologia como crime contra a humanidade. Em inglês, croata, português. Nas imagens e à minha volta, olhares hipnotizados. Incômodo suave, nada novo, apenas um lamento cotidiano.
Gol contra. Simbólico. É o que se faz com o povo, autoridades mancomunadas com empresas, gol contra em cima de gol contra, em nome do lucro de bancos e grandes empresas.
Falta de frente pro gol, o jogador mais caro bate e erra. E o blablablá continua, babaca, falastrão.
Gol do Brasil! Gritaria no povoado, foguetório, pavor canino, tragédia aviária. Melhora a qualidade do jogo. A publicidade, frenética, sacode as marcas onde as câmeras acompanham o jogo. Ao fundo de cada jogada, logotipos dançam, aparecem, piscam, se movimentam, penetram no inconsciente coletivo, em inglês, croata, português...
No intervalo se intensifica o festival de falação de besteiras, a publicidade intensiva e ostensiva, o desrespeito à inteligência. O inimigo mostra a cara deformada pela mídia, bonita e falsa. Noticiam manifestações, sempre "baderneiros" que "obrigam" a polícia a "reagir". Inconformados com a putaria da copa, com a promiscuidade político-empresarial, com a entrega da soberania não existem pra mídia. São todos mal intencionados, no mínimo ingênuos que se deixam levar. Bem intencionada é a copa.
Pênalti no segundo tempo. Neimar beijou a bola. Neimar beijou a bola, repetem os locutores. Gol do Brasil. Quase que o goleiro pega,"o desespero do goleiro" é exibido várias vezes. Gritaria ao longe, poucos fogos, mais uns sustos na fauna local. Dois a um. "Jogo difícil, jogo sofrido" dramatiza o narrador. "Brasil prende a bola", "jogo complicado" diz o idiota, digo, o jornalista mais bem pago do Brasil - e se não for, tá nas cabeças. "Haaaaaja coração!!", grita ele. Haja estômago, digo eu, pouta quel pariu, "não é fácil controlar os nervos nessa altura!"
Gol de novo, chute de bico no sufoco dentro da área. Tres a um pro "Brasil". Gritaria de novo, acho que acabaram os rojões, não pipocou, ainda bem. "Uma vitória sofrida", diz o imbecil. Mais sofrida que a expulsão da própria casa, aos milhares, centenas de milhares? Mais que os feridos, espancados e presos por uma polícia treinada e preparada pra atacar a própria população, violar leis, agredir, machucar pessoas que nada têm a ver com nenhum tipo de crime?
Acaba o jogo, vitória do "Brasil". Não sinto a menor euforia, nem mesmo alegria. Nessa copa, cada vitória, cada jogo já começa com gosto de derrota.