quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Rio Doce, a cidade

A hdrelétrica Rizoleta Neves foi esvaziada na expectativa dos próximos possíveis rompimentos de barragens. Indício claro da "confiança" da mineradora em suas próprias barragens de rejeitos altamente cancerígenos.


Ontem saímos de Mariana em direção à hidrelétrica Rizoleta Neves – aquela que foi mulher do Tancredo -, por causa dos rumores da ameaça de um novo rompimento das represas de rejeitos químicos acima da de Fundão, a que acabou com vários povoados e matou o rio Doce. Em Rio Casca o gás estava acabando, procuramos gasolina mas o posto estava fechado. Um funcionário nos disse que em Rio Doce havia um posto aberto até mais tarde e nós fomos pra lá. Chegamos no começo da noite, tanques quase vazios – gnv e gasolina -, mas também estava fechado. Fazíamos um lanche quando conhecemos Alex, operador de máquinas, escalado pra retirar os troncos acumulados no rio. Mostramos as fotos de Bento Rodrigues e ficamos conversando até ele ir embora.

Tivemos que esperar o dia, saímos da cidade e paramos no trevo de entrada, onde havia um caramanchão no ponto de ônibus, perfeito pra gente dormir. E foi o que fizemos. Os mosquitos estavam frenéticos, mas nós estávamos cansados e dormimos.

Dia amanhecido, tomamos um café e fomos abastecer a viatura. O dono do posto contou como foi a chegada da lama contaminada. Prevista pra chegar às seis da manhã, a onda de rejeitos estava sendo esperada por várias pessoas na ponte e ele estava lá. A maré tóxica chegou na hora prevista, trazendo os troncos arrancados ao longo do trajeto, dois corpos nus logo na frente. Ouvi das pessoas com quem conversamos que foram retirados cinco corpos na área de Rio Doce, mais vários pedaços, pernas, braços... não se vai saber quantos morreram na lama. Os troncos congestionaram na área de lazer aquático da cidade, o barco de passeios turísticos encalhou na beirada, depois da primeira parte da enxurrada, mais volumosa, baixar alguns metros, o acúmulo foi tal que, enquanto a corrente continuava, a massa de madeira, parada, estalava com a pressão. Ele não entrou em mais detalhes e não quis dar entrevista, “eu não podia ficar muito tempo, tinha que abrir o posto”. 

Abastecemos com gasolina e fomos pra ponte, perto da base dos trabalhos. O rio era só troncos empilhados, lama dura e água lamacenta dos rejeitos, em nuances já vistas desde Bento Rodrigues, passando nas valas entre os montes, tanto dos rejeitos quanto das madeiras. Várias máquinas trabalhavam, dando a impressão de que eram insuficientes pra tanto entulho. Disseram que estavam dando as toras pras carvoarias da região, mas vi poucas carvoarias praquela madeirama toda. Depois de tantas mentiras, não dá pra acreditar em nada que venha de empresas ou funcionários – eles também são enganados quanto às intenções, embora saibam o que está acontecendo na prática, que tampouco é divulgado. Soubemos que a represa deixou passar um bocado, mas depois fechou e a força da correnteza formou uma onda na direção contrária, subindo o rio de volta. Pessoas que estavam na ponte variam nas avaliações do tamanho dessa onda, entre dois e três metros de altura. Tiramos fotos do barco, da área, das máquinas, da ponte. E fomos pra represa.

O barco de passeio, inútil, será retirado por guindastes e transportado em carreta pra outro lugar, navegável.
O rio Doce entulhado, o barco encalhado e a ponte ao fundo.

As máquinas parecem trabalhar em vão, diante do mundo de troncos em montanhas.



Depois da ponte, continua a aglomeração de troncos arrancados em Mariana, pela força do rompimento, pela maré da morte.

É de perder a conta a quantidade de montes e mais montes de vegetação arrancada, de troncos e galhos.

A vista da ponte sobre o rio Doce e o caminho que segue pra represa da hidrelétrica, que tem as turbinas desligadas. Não consegui saber onde ficou sem energia com isso, não está faltando nas casas da região. Talvez fosse uso industrial.


Havia notícia de uma estrada interrompida, mas a que usamos não tinha interrupção, entramos numa estradinha de terra que levava à Pedra do Escalvado, em Santa Cruz do Escalvado, área de trilhas bastante freqüentada. Passando dali, a estradinha piorava muito e por ela fomos até a represa. A marca da maré estava bem alta, mas as comportas estavam abertas, confirmando o que ouvimos, que estavam esperando que se rompessem as barragens de rejeitos acima da de Fundão, de onde saíram os milhões de toneladas que destruíram a vida no vale do rio Doce. Por isso esvaziaram a hidrelétrica. A marca da lama estava pelo menos dez metros acima do nível da água, ou melhor, daquele líquido viscoso cor de terra vermelha. A destruição nas margens é a mesma de rio acima, uma desolação homogênea que só perdia em tamanho pro início da tragédia, nos distritos de Mariana. Registramos as imagens e seguimos pela trilha, cheia de buracos, pedras, gado e atoleiros. À nossa direita, o rio descia pra represa, sem parar, mas não vi troncos naquele trecho, apenas os rejeitos acumulados em montes secos dentro do rio e as margens devastadas até grande altura do nível da corrente.

Rafael prepara a captura de imagens.

Vista por dentro, se vê a marca de onde chegou a lama química, antes de abrirem definitivamente as comportas.

O vermelho tóxico e o azul da Celestina. Ela carrega uma câmera na testa.

Foi do lado de lá que a estrada desabou, impedindo a passagem.

Ao longo do rio se vêem os montes de rejeitos químicos cancerígenos deixados pelo tsunami da morte.



Na volta, paramos de novo no canteiro de obras onde antes era a área de lazer aquático, sem saber muito bem por que. Eu quis fotografar o “Quiosque”, transformado em base de operações, mas a imagem não favorecia. Caminhamos na direção do barco, eu tinha visto um homem velho, magro, sozinho, sentado numa pedra debaixo das árvores perto do barco encalhado, olhando a montanha de troncos e a máquina que parecia deslocar as madeiras de um lado pro outro, a esmo, trabalho com aparência de inútil, diante do tamanho dos “montes”. Cheguei nele, perguntei se estava trabalhando ali, ele riu um riso triste, “trabalho só na minha rocinha, nas minhas criações, com 84 anos não tem emprego pra mim, não”. Surpreso com a distância entre a idade e o aspecto, sentei do lado e ficamos conversando um pouco. Ele tinha uma tristeza profunda nos olhos, “cabou o rio”. Ele não tinha nenhuma relação de ganho com o rio Doce, como tanta gente por ali, mesmo sua roça usava água de outras fontes mais próximas, não seria afetada pelos venenos. Mas ali ele tinha os prazeres da vida, se reunia com a família, pescava, compartilhava os peixes preparados ali mesmo. “Era bonito ver as voadeiras (jetskis) passando, jogando água pra cima, fazendo curva, os meninos faziam elas ficar em pé... às vez passava pertim da gente e a gente achava ruim, levantava o fundo do rio, espantava os peixes...” Agora ele tava com saudade daquilo, a melancolia no olhar era evidente, contaminante. “Eu vi muita enchente por aqui, maior que essa, a água foi até lá em cima” e apontava pra além da estrada. “Mas era água, depois que ia embora voltava tudo como antes”. Silenciou por uns instantes, depois completou em tom mais baixo...“nunca mais vou ver o rio, tô com 84 anos, não vou ter tempo de ver. Muita gente mais nova também não vai, talvez só as crianças, daqui a muitos anos. Talvez nem elas...”  Seu Idalino chorava pela boca. Eu não tinha o que dizer, sofri junto, entendi a dor dele, compartilhei um pouco. Levantei pra ir embora, um tapinha nas suas costas, um nó na garganta, não pude dizer nada além de “fica com deus, seu Idalino”, ele nem respondeu, acenou com a cabeça e levantou a mão, olhar perdido entre os emaranhados de troncos que agora tomavam a lagoa antes azul que se formava nessa área perto da ponte. Sua tristeza era sólida, funda, contagiante.

Voltamos a Mariana, onde nos escondemos e nos recuperamos na Moita, mais especificamente na Pocilga. Entenda quem puder.

5 comentários:

  1. silêncio, sem palavras, quase consigo ver "seu Idalino" tão parecido com tantos outros que conheci...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Que tristeza na alma... muito, muito triste. Obrigada por compartilhar. Seus textos tem vida, sofri com você e com "Seu Idalino".

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  4. Seu Idalino é o retrato de muitos outros né... provavelmente o Rio Doce que conhecera ficará só nas lembranças em sua memória. Para todos nós brasileiros isso é revoltante, dói demais no coração... mas em especial para esse jovem senhor, é como se arrancassem uma parte de seu coração. É como a perda de um ente querido.

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  5. Como pode, diante de tanta dor, tanta desolação, tragédia, tantos fins sem recomeço, as fotos que vcs estão tirando terem uma beleza estranha... são incríves, na verdade. Como conseguimos ver beleza em meio a tanta tristeza?

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