quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Escolha sexual?

Quando eu morava em Minas e ia manguear em Belo Horizonte, nos bares, nas noites, tinha alguns percursos que eu fazia, encontrando os bares, as mesas nas calçadas, os lugares onde se podia entrar pra vender. Conheci muitas figuras interessantes, que me instruíram, sem perceber, a respeito da humanidade. Era entre 1988 e 1992.
Havia um bar com mesas nas calçadas - era uma esquina -, a última mesa quase em frente a um prédio, na sequência da avenida Brasil. Nessa última mesa conheci um moço dos seus vinte e poucos anos, que tinha capacidade reflexiva, que se identificava com meu trabalho questionador, cheio de idéias, denúncias, propostas, tiradas, ironias, enfim, ficamos quase amigos. Várias vezes ele comprou meus broches, gostava, dava de presente. Ele morava no prédio, tomava sua cerveja na mesa mais próxima.
Uma vez ele me perguntou, depois de questionar como eu chegava àquelas idéias e pensamentos, se eu não sentia uma solidão imensa. Eu nunca tinha pensado nisso. E naquele instante, eu percebi todas as solidões da minha vida, a quantidade de vezes em que eu estava sozinho no mundo, em estradas, em reservas florestais, em meio às multidões, nas periferias, cercado de gente também. Senti uma solidão imensa que me fez refletir, pensar e me modificar de várias maneiras. Vi espaços, sertões, estradas, solidões, em cidades, em idéias, em sentimentos.... Ele percebeu, na minha reação, toda uma divagação, passou muita coisa nos meus olhos de memória, até recuou, "não queria causar um sofrimento", eu o tranquilizei, tava só pensando, percebendo o que não tinha percebido.
Esse moço era bem feminino e se percebia fácil a sua homossexualidade. Eu nunca tinha falado nisso, até porque isso pra mim não tem a menor importância, além do desrespeito inaceitável e tão comum em nosso meio. Mas quando ele me tocou tão fundo e me fez refletir a respeito de mim mesmo, da minha vida, da trajetória até ali, já com três filhos... Acho que me senti na liberdade de questionar também, de minha parte.
E perguntei como era isso de ser homossexual. É escolha, opção sexual como a gente escuta por aí?Em princípio ele se incomodou com a abordagem direta, "mas é assim tão evidente?" Eu ri, era evidente demais, os modos eram totalmente femininos, mas disse "não, mas eu percebo" e ele relaxou, "ah, claro, você percebe, é natural..." Perguntei, é uma escolha, quando aparece, como tu fica sabendo? Ele riu, "escolha? Cê acha que alguém pode escolher ser homossexual? A gente sabe como o mundo trata os homossexuais, alguém pode escolher isso? Só se for masoquista." Achei óbvio.
E contou que era um menino normal de classe média, jogava bola com os amigos, quando foi chegando a idade em que os amigos falavam de meninas, ele se desinteressava, queria jogar bola, ir pra outras atividades. Até o dia em que, depois de uma partida de futebol, um amigo tomou um banho na sua casa e ele sentiu desejo por esse amigo. Entrou em pânico, "não posso ser viado", tentou namorar meninas, se enturmar em casais, só deu errado, só problema, não era sua onda, não era sua sexualidade. Nunca tinha sentido tanta solidão, não podia falar disso com ninguém, nem com a própria mãe, com quem se dava muito bem. Andou perdido, sem rumo, entre góticos, punks, até encontrar um coroa que disse a ele que ele era homossexual, que era preciso assumir, que toda a angústia vinha disso, da sua negação. E o levou pra redutos homossexuais, pra conviver com a homossexualidade naturalmente, pra se sentir humano, digno e respeitável.
Não é uma escolha, aprendi com a vida, com a observação, com a boa vontade, com a sinceridade. É um fato, uma situação, uma realidade, mas não uma escolha, uma opção. Se houvesse opção nesta sociedade primitiva e violenta, ninguém escolheria ser homossexual, seria, como disse meu amigo, masoquismo uma escolha dessa.

9 comentários:

  1. Eduardo, você é um luxo. Amo suas análises sobre a sociedade. Você e o cara mais incrível que já conheci e nem te conheço pessoalmente, talvez nunca conheça mas tudo que vc fala se encaixa como uma luva no meu sentimento sobre a sociedade brasileira.

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  2. O "estar" é passageiro o "ser" é perene, mas cedo ou mais tarde, a alma exigirá a verdade para seguir com o mínimo de satisfação. Muitos vivem uma vida inteira de aflição, e teimam em não questionar ou rever conceitos, isso tanto para o âmbito pessoal quanto para a vivência social. Acredito que com a velocidade da informacao e sua abrangência, por conta dá internet, as pessoas estão tendo acesso as informações, assim, trocar idéias, antes restrita ao meio onde viviam. Questionamentos foram levantados e discutidos por pessoas de diversos lugares do mundo, encontraram os seus iguais, um novo momento, um novo ciclo, uma nova fase. Um exemplo é você Eduardo, que trouxe idéias e observações, multiplicada pela internet, alcançou milhares de pessoas que em suas palavras tiveram afinidades e suas aflições identificadas.
    Quando você não era conhecido, poucos sabiam dos seus pensametos, hoje, muitos conhecem suas idéias e gostariam de te conhecer, como você mesmo disse, é só a responsabilidade que aumenta.
    Não estamos sozinhos só estamos espalhados. 🍀

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  3. Eduardo amo suas postagens poste mais coisas desse tipo: relacionamento, amores... fale um pouco do rio de janeiro e sua boemia,malandragem!! sou do litoral-sp e gostaria de saber desse universo,vê relatos tão vividos sobre situações é maravilhoso e esclarecedor

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  4. bom texto e tema também. não é uma escolha, é uma condição orgânica do corpo... outra coisa, é ridiculo as pessoas que acham que isso pode ser curado, como se fosse uma doença. temos muito o que aprender ainda sobre a vida...

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  5. Gratidão por compartilhar as tuas experiências do cotidiano!!! Respeito ao diverso!

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  6. Eduardo, eu já discuti com uma amiga minha sobre esse contexto. Ela afirmava que a pessoa "escolhia" ser ou não homossexual. Eu até expliquei para ela que numa sociedade extremamente preconceituosa, conservadora, com valores distorcidos, qual ser humano em sã consciência escolheria ser homossexual? Ela continuou dizendo que era escolha, eu até entendo o motivo (por ela ser evangélica).

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  7. Eduardo, eu já discuti com uma amiga minha sobre esse contexto. Ela afirmava que a pessoa "escolhia" ser ou não homossexual. Eu até expliquei para ela que numa sociedade extremamente preconceituosa, conservadora, com valores distorcidos, qual ser humano em sã consciência escolheria ser homossexual? Ela continuou dizendo que era escolha, eu até entendo o motivo (por ela ser evangélica).

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  8. Eduardo,

    Quanto mais passa o tempo e passo por experiências diferentes, mais percebo que homossexualidade é apenas uma categoria a mais para dividir as pessoas, mostrando que são mais diferentes do que pensam. Hoje, acredito que 'assumir-se' homossexual não é mais do que uma resignação. A pessoa tem muito mais a perder do que a ganhar buscando encaixar-se em esteriótipos sociais que ela se sente com menos capacidade. Há aqueles que receberam considerável estímulo de várias espécies, para encaixarem-se no esteriótipo do que se considera feminino ou masculino. Mas outros receberam bem menos, e encontram maior dificuldade para suplantar 'deficiências', e acabam 'assumindo-se' como 'homossexuais'.

    Mas na verdade a gente é uma coisa só:seres humanos, divididos em estratos sociais, sendo uns explorados e outros explorando ou zelando para a manutenção do sistema desigual.

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