sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Ninguém nasce bandido





Tempos atrás, para chegar em casa, eu passava pelo meio do "movimento", no morro do Fogueteiro, subindo da rua Itapiru em direção a Santa Teresa. Todos me conheciam, morei por ali um ano. Uma vez, eu vinha subindo devagar, de noite, carregado de compras, mais o material de trabalho, quando de um beco sai um moleque pequeno e escuro, com uma bolsa atravessada e uma pistola cromada na mão. No escuro, o cromado aumentava o tamanho da arma e a desproporção com o garoto. Não o conheci e, por instinto, atentei em seus movimentos. Ele caminhou com desenvoltura em direção à turma do "plantão", falou com uns caras da boca, entregou ou pegou alguma coisa que tirou ou colocou na bolsa - não reparei - e saiu andando na direção de uma escada. Dois garotos pequenos jogavam bola perto de um poste mais acima e, nesse momento, deixaram a bola escapar pro lado de cá. Junto com a bola veio o grito - "pega aê!" A bola rolava na direção do menino com a arma e ele virou, levantou a bola com habilidade, matou no peito, fez uma embaixada com os dois joelhos, com os dois pés e devolveu pros meninos no exato local onde eles estavam.


Foi durante esse ato que percebi, meio espantado, ser um menino da idade do meu filho, talvez um pouco mais ou menos. E aí eu pude me dar conta da humanidade dele e da situação em que se encontrava. Tanto que morreu algum tempo depois, como outros que conheci, em tantos lugares.

No desenho eu pretendi inverter o processo de percepção, e escondi a pistola sobre um fundo escuro de uma cerca, para mostrar primeiro a humanidade do menino. Depois, o risco e as opções que lhe são postas, na vida, além de abstrações inatingíveis para a esmagadora maioria, roubada no ensino, na cidadania, na dignidade, nas oportunidades de desenvolvimento real, nos serviços "públicos" e em consciência.

Um outro menino, que chega da escola, de mochila, carregando compras com a mãe, que vem logo atrás, passa tranqüilo pelo fuzil encostado na mesa de sinuca, enquanto os caras do movimento se arrumam com suas mercadorias, funcionários do tráfico nas posições mais expostas e arriscadas, sujeitos a extermínios constantes, mas facilmente substituíveis em meio à miséria circundante. Nesses locais de exclusão, o Estado só se apresenta com a polícia e é quando o terror se implanta na forma mais aguda, pondo em risco a vida de todos na área, matando com triste freqüência envolvidos ou não com o tráfico.

Na birosca rola uma cerveja, uma cana, uma idéia, enquanto as mulheres penduram as roupas lavadas nos varais. Há algo de antigo na favela, de quando as casas ainda tinham quintais e espaço.

13 comentários:

  1. Muito legal o trabalho, Eduardo. Além de todo o contexto, também gostei muito do traço e das cores.

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  2. Fiquei um tempo olhando, observando a imagem, e me perguntando, por que um menor porta uma arma tão livre e facilmente ??????????????????????? qual a sensação que autoridades, como políticos veêm em ter números em sua contas bancária, simplesmente ignorando sua nação, seu estado "democratico", por que ?
    como diz o Edu, essa ELITEzinha, e egoista ao extremo, e isso me da tanto nojo que pqp...
    Abraços Edu !

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  3. Ao ler a seguinte frase:
    " (...)pude me dar conta da humanidade dele e da situação que ele se encontrava".

    Me fez parar para refletir sobre a percepção que normalmente se tem, sobre as pessoas de classes mais baixas, onde muitas vezes, confunde-se violência como sinônimo de pobreza, ignorando os fatos que permeiam esta condição.
    Ao considerar, que ao mesmo tempo em que o meio é construído pelo sujeito este é fruto do meio, e nossa sociedade como um espaço onde o individualismo e a desigualdade predomina.
    Surge a questão: Como podemos julgar ou responsabilizar unicamente, um sujeito pelos seus atos, quando é evidente que o meio em que este esta inserido contribui de forma significativa na sua forma de agir, na falta de acesso a instruções, conhecimento de valores ou educação?

    Transforma-los em "vilões" da história de uma sociedade, onde a violência cresce dia após dia, é muito mais cômodo, do que repensar sobre a questão e chegar ao "verdadeiro" motivo pelo qual isso ocorre (falha na Educação, a desigualdade e por ai vai...)
    Eh é ai que esquecemos que estamos falando de seres humanos iguais a qualquer um de nós, sendo que "ninguém nasce bandido".

    Beijoss...e Parabéns novamente pelos seus textos.

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  4. Parabéns pela sua coragem, pelo exemplo de conduta, em que discurso e prática se completam.

    Ao assistir o vídeo no Youtube, me senti representado por tudo que você falou, e motivado à seguir em busca...

    Abraço fraterno.

    Jorge Silva
    Joinville . SC

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  5. Afinal, quem é o bandido aqui?

    bom texto, Eduardo

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  6. Sensibilidade. Essa é a palavra usada para representar esse belo texto e essa sua fantástica cabeça.
    Parabéns!

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  7. Ia postando, a Internet "comeu" meu comentário...

    Pois vamos lá. O video é impressionante e de uma clareza imensa. O desenho e sua explicação dele outra grande viagem. A colocação da pistola contra um fundo no qual se mimetiza é uma grande jogada narrativa e ao mesmo tempo um muito sábio uso do jogo perceptivo.

    Como escrevi no comentário que a Internet comeu, gosto de admirar pessoas, e hoje escrevo aqui em estado de admiração.

    Grande abraço
    Ivan

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  8. Eduardo compartilho dos seus ideais, mas seu trabalho é de uma percepção incrível.

    Imagino que vc conheça o movimento Zeitgeist, se não, taí o Link. De qualquer forma taí divulgado para que as pessoas que te acompanham, possam tb conhecer esse trabalho de conscientização.

    http://video.google.com/videoplay?docid=7065205277695921912#

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  9. Seria tão bom se não tivesse tráfico ou algo do tipo, pois todos irá viver muito bom, felizes ia andar na rua seguro, vizinhos ia se sentar na porta e conversar sem nem um problema de tomar um tiro na cabeça sem querer, ou ver o seu filho la no tráfico, SERIA muito bom assim, mais nada é. Que pena podia ser um mundo diferente, mais culpados somos nós pois o nosso dever é cuidar do nosso mundo aonde nós vivemos, aonde ele nos dar a nossa estadia o nosso alimento.

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  10. Vim para aqui por indicação de Sérgio Filho, que o denominou como um filosofo iluminista, dei logo de cara com o moleque saindo do beco com sua pistola cromada, que na verdade é um menino boleiro, q não por acaso, não se tornou um craque do futebol e, gostei muito, me fez lembrar de um texto que fiz falando do mesmo assunto, no meu caso, os personagens principais são dois craques milionários da bola, porém nada diferentes do seu guri da pistola pro crivo aleatório de pessoas analfabetas de realidade. Falamos do mesmo assunto. Colo abaixo o texto:

    ADRIANO O FAVELADO
    num país de oligopólios

    Vagner Love foi filmado
    Escoltado por armados
    Adriano indiciado
    Deu motoca ao celerado
    Os dois sendo acusados
    De apologia aos drogados
    Adriano é alcoólatra
    Vagner Love é viciado
    Rotulados como monstros
    Pelo crivo enviado
    Por jornalistas intencionados
    Em mostrar o favelado
    Como lixo condenado
    Na favela o operário
    É tratado como otário
    Espancado por PMs
    Todos mancomunados
    Com os políticos desalmados
    Os nunca açoitados
    Cheirando o pó dos criticados
    Já Adriano
    O favelado
    Pode vender cerveja pra todo coronelado
    No horário nobre consagrado
    Isso tá liberado
    Ai de ele beber
    Será esculachado
    Pelo consumidor
    Do produto anunciado
    Adriano
    Vira logo
    Mau exemplo pras crianças do outro lado
    É taxado de xinxeiro embriagado
    Moralmente açoutado
    O trabalhador mora no morro
    Isso não é noticiado
    Quem é cria da favela
    Sabe que isso pouco importa
    O Bope sobe armado
    Morre preto favelado
    É tiro pra todo lado
    Como pode o Adriano
    Frequentar esse cercado
    Morando na favela
    Tu é trafica
    É fajardo
    Não tem carteira de trabalho que prove que ao contrário
    Na favela mora o povo
    O proletariado
    Essa gente que sustenta esse país desnivelado
    Fico muito preocupado
    Com valores deturpados
    Por uma mídia pardieiro
    Que legitima o congresso
    E condena o empregado
    Pro meu filho eu vou dizer
    Que exemplo é o Adriano
    Que não nega a favela
    Um lugar de povo amado
    Que devia ser lembrado
    Com muito mais cuidado
    E não associado à meia dúzia de armados
    Sem oportunidade por culpa do Estado
    Que culpa o favelado pelos seus próprios pecados
    Num país de oligopólios
    Todo predestinado
    Pro rico ficar rico e negar o favelado
    Eu prefiro Vagner Love no baile funk amado por tantos outros favelados

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  11. O desenho é lindo, e o texto, bem escrito e cheio de sensibilidade. Parabéns!

    (www.expressaoliberta.blogspot.com)

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  12. Cara,otimos textos , vi alguns videos seus no youtube ... hoje dia 28/03/2011 a partir de hj vc tera mais um fã,acompanheira seu proximos trabalhos ... é uma pena que não seja reconhecido como merece , enfim ,fica com deus meu brother !

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  13. Caramba: Só posso te dizer, parabéns pelo belo trabalho, Edu!

    Como forma de retribuir, vou deixar aqui um dos maiores sambas de todos os tempos, quando no ano de 1987, a São Clemente, emocionou a avenida com o samba "Capitães do Asfalto"

    Puxo aqui uma brasa, pois meu irmão já defendeu a São Clemente no futebol de praia e o Renatinho presidente, é um grande amigo da gente, pedra 90.

    O samba é lindo, eu era moleque e gostava, pois toda vez que a Escola entrava na Sapucaí vinha logo saudando:

    "Olha a críiiiiiiitica!"

    Samba Enredo 1987 - Capitães de Asfalto

    G.R.E.S. São Clemente



    Pequenino, triste feito um cão sem dono,
    Tão cansado de viver e sofrer
    Por aí perambulando
    Não teve sorte
    Seu berço não foi de ouro,
    Seu pai não teve tesouro
    É triste sua vida a vagar
    -seu moço, dê-me um trocado!
    Eu quero comer um pão!
    Sou menor abandonado
    Neste mundo de ilusão

    Enquanto o filho do papai rico
    Desfruta do bom e o bonito,
    Do dinheiro que o pai tem;
    Lá vai o menino pobrezinho,
    Que acorda bem cedinho,
    Pra vender bala no trem
    Muitas vezes é abandonado,
    noutras ele é maltratado,
    Na chamada funabem
    Alô brasil!
    Felicidade nunca existiu no Sam
    Se hoje ele é mau orientado,
    Será marginalizado
    Nas manchetes de amanhã

    A São Clemente
    Lembrou do seu existir:
    Somos capitães de asfalto
    Na sapucaí

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