sábado, 1 de setembro de 2018

Capciosidade feita Utilidade

Recebi uma pergunta que antigamente se chamava de capciosa. "Como você vê o direito de legítima defesa do indivíduo?" Uma convocação ao confronto planejado, uma avaliação de que lado se está. Mas não caí na armadilha. E aproveitei pra dizer o que penso.

Esse é apenas um assunto de "campanha eleitoral", como chamam essa farsa, superficial demais como toda campanha publicitária, enquanto se evita a todo custo refletir sobre as causas de tanta violência e criminalidade. O foco é "combater" a criminalidade, como se fosse possível secar a casa sem fechar o furo no encanamento. O teatro tá montado pra canalizar as atenções. Essa disputa, essa rixa entre coxinhas e mortadelas, direita e esquerda, capitalismo e comunismo é coisa fabricada, programada, condicionada estrategicamente, sociedade do confronto, da disputa, do "vencer na vida", do consumo como valor social, da superficialidade, da forma sem conteúdo. São chamarizes (iscas pra chamar a atenção) pra que não se questione de verdade as raízes dos problemas sociais. Pra que não se perceba a intenção total e deliberada na manutenção dessa violência e criminalidade, até como fator de apavoramento. Isso facilita a criação de falsas soluções, como armar a população pra que "se defenda", aumento do sistema carcerário (com significativa privatização, pra quem tem olhos de ver), diminuição da maioridade penal e outras aberrações sub-humanas que só farão aumentar os índices da barbárie. É como desviar o fluxo do furo pra saídas da casa, que acumularão, criarão poças, se infiltrarão e minarão os alicerces da casa. Melhor fechar o buraco no cano, consertar o vazamento - e aí se encontra o atendimento dos direitos constitucionais da população, investimento maciço na educação livre pra qualquer um que deseje, abertura das comunicações pra todos, abrigamento de todos os desabrigados, alimentação pra todos os famintos, informação e formação pra todos. Estamos entre o empresarismo vigente e o humanismo que pretendemos. Entre o modelo empresarial - onde ainda estamos - e o modelo humanista - que já se mostra nos embriões, nos grupos de exceção, ainda invisibilizados e, quando visíveis, ironizados, desqualificados ou atacados.

Uma sociedade que tenha como prioridade a sua população e a sua integridade ambiental terá todas as condições pra receber cada criança que nasce, com moradia, alimentação saudável, saberá formar, instruir e educar os futuros adultos na integração em uma coletividade harmônica, com o objetivo de existir se desenvolvendo cada vez mais na direção da paz social, da harmonização das relações, eliminando fácil, pura e simplesmente o espectro vergonhoso da miséria, da ignorância e do abandono. Propostas sociais que não tenham essas prioridades imediatas, não podem ser vistas como humanas, são propostas empresariais, onde o lucro e o patrimônio são valores acima da vida, do ser humano, da harmonia social e da eliminação de tanto sofrimento desnecessário, por existirem todas as condições materiais pra isso. O empresarismo cria indiferença ao sofrimento alheio e o "justifica". A miséria é "a justa punição da incompetênca", como disse Galeano.

Interesses banqueiros, mega-empresariais, dominam a sociedade. Dominam os poderes públicos de várias maneiras, influenciando a educação e dominando as comunicações, conduzindo pelo inconsciente os valores, os comportamentos, os objetivos, os desejos, as opiniões - mesmo diversas - em massa. Cada vez que vejo uma nova palavra ou expressão brotando entre os pretensos instruídos da sociedade, sinto cheiro de laboratórios de pensamento, das academias, da mídia ou de ambos. Gente existindo como lixo, miséria e abandono nas periferias das milhões de pessoas exploráveis ou descartáveis são a exposição da desumanidade social imposta pelo "mercado" e exercida pelos Estados dominados.

Áreas dominadas, educação e comunicação, postas a serviço dos interesses mega-empresariais. São estratégicas na formação de um povo instruído e culto ou consumista e competidor, conhecedor da sua história e informado sobre o mundo ou ignorante e desinformado, capaz de escolher individual e coletivamente os melhores caminhos a seguir, as necessidades a suprir, as prioridades sociais ou facilmente conduzível pelo massacre midiático-publicitário pela formação ideológica nas escolas particulares e pela ignorância produzida pelo ensino público. Por isso são as mais ferrenhamente dominadas e sabotadas nas suas funções sociais. Não são as únicas, todas as áreas são lucrativas e estão dominadas. Mineração, transportes, medicina, alimentação, tecnologia, agronegócios, indúsrias, tudo.

Mede-se o valor humano pela propriedade, pela renda, pelo cargo, não pela humanidade, sentimentos, temperamentos, caráter. O objetivo é vencer na vida, e não apenas se satisfazer com ela, viver em paz e satisfeito com a existência. O sucesso é medido pela qualidade do consumo, pela quantidade de riqueza acumulada, não pelos afetos criados, pelo avanço da consciência, pela utilidade coletiva ou pela solidariedade. Os insatisfeitos são canalizados pela idéia de "mudar o mundo", de comandar os de baixo, de organizar as massas, programados que são pela hierarquia da escolaridade. Assim são anulados em seus propósitos, entre "vitórias e derrotas", "auto-críticas" e "reposicionamentos", impotentes em "mobilizar" as suas "massas". Antes de revolucionar a sociedade, é preciso revolucionar a si mesmo. É constrangedor, pra mim, encontrar pessoas ligadas a movimentos sociais divulgando sorteios pra estadias em hotéis de luxo. Esses privilégios da riqueza são frutos da injustiça social, coisa pra se ter vergonha, não pra se desejar, é o que me diz minha consciência. Bom, em lugar de "constrangedor" eu podia dizer "revelador", não?

Como é revelador perceber que médicos recebem "comissões" de laboratórios e indústrias médicas - como a de próteses -, engenheiros que superfaturam preços e subqualificam materiais, funcionários públicos que recebem propinas pra cumprir suas obrigações ou pra não cumprir, professores estafados por excesso de trabalho mal remunerado, a não ser nas poucas escolas caras, por exigências de elites na formação dos seus filhos, transportes públicos invariavelmente torturantes e desrespeitosos, forças de segurança fazendo guerras em meio aos bairros mais abandonados pelo estado contra os funcionários do crime "organizado" (por quem?).

Posso citar aqui ponto por ponto em nossa sociedade, mas seria aumentar demais esse texto. As demonstrações de que o Estado, conduzido como é, representa o crime organizado contra seu próprio povo, contra seu território, contra suas riquezas, contra sua soberania, contra o desenvolvimento das nações como sociedades instruídas, bem formadas, bem alimentadas, bem informadas, conscientes de si e da necessidade de desenvolvimento da sociedade humana, estão em cada ponto. Tomar consciência disso é o fundamento na criação de novas condições de existência da humanidade no planeta. As primeiras raízes a se perceber estão dentro de cada um de nós. O ampliar da visão é um processo permanente, no ritmo do desenvolvimento da consciência. As conseqüências se fazem sentir no coletivo, em seguida a cada passo. A caminhada não tem fim, pelo menos à vista, ao longo das gerações futuras até onde a imaginação alcança - a minha, claro. Há quem imagine "o fim de tudo".

25 comentários:

  1. Muito bom o Texto. Parabens. Quero dizer que estou tendo uma grande influência sua,onde nunca fiquei tao maluco de tanta reflexão que me fez sentir. Como tivesse acendido a luz, ou trocado (igual qnd disse da despensa da casa que troca a lampada). Mas me incomodo por me sentir preso nesse sentimento e nao conseguir fazer as mudancas totais e saber o quao de errado algumas das minhas atitudes e pensamentos que possuo,e na teia de aranha que a sociedade me acorrentou. Mas obrigado de coracao, pela troca de informacao q vem passando.

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    1. As mudanças não são totais, é um processo permanente. A gente faz o que pode. Permanentemente.

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    2. Cara da uma lida nos textos de eckhart Tolle, são bastante interessantes, acredito que possa te ampliar ainda mais.

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  2. Bem certo isso que tu falou
    Imagina esse povo desnorteado e armado
    É isso que estão armando
    Na cara dura

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  3. Eh otimo ler seus textos, sinto que as vezes eh melhor do que eu posso expressar! Ve os problemas com clareza incrivel! Grata por isso.

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  4. O conhecimento é libertador. Obrigada pela sua influência em nos fazer ''pensar fora da caixinha''. Não há melhor forma de ir contra o sistema se não buscando o conhecimento.

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  5. Oi Eduardo, excelente texto. Concordo em tudo. Voce precisa abrir uma conta no instagram para postar seus textos. Abracos!

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  6. Você merecia o nobel! Não aquele convencional, que é pobre e condicionado a sociedade, exclusivo para os "vencedores" competidores, oportunistas, e meritocratas. Quando eu digo nobel, eu falo de mim, assim como da sociedade em geral, te pedir desculpas e sentir vergonha de "verdade" por não fazer pela "humanidade" nem 1% do que você fez e tem feito sozinho, sem ajuda, na raça, humildemente, sem fins lucrativos, por instinto, é como se você estivesse em uma busca incessante pela "sabedoria", e encontra-se pelo caminho todas as falhas mundanas, todas distorções de realidade, manipulações, conspirações, armadilhas, chantagens, torturas, todo tipo de ferramenta ardilosa, maliciosa, tendenciosa, dissimulada, astuciosa, pervertida... todos os meios de confundir, induzir, e conduzir a massa, amassasse dentro da mochila pra caber o máximo de informações possíveis, e como mágica, passasse seus "sentimentos" e conhecimentos adiante ao acesso de todos, desde o mais baixo até o mais alto, sem olhar a quem, disposto a fazer até cego enxergar, sua história de vida é um milagre, vejo você como um exército de um homem só, polímata, autodidata, dedicando a vida em prol dos mais necessitados, pioneiro, um verdadeiro terrorista midiático, um perigo no gabinete do governo, uma crise na balança dos banqueiros, uma queda no monopólio indiferente dos mais ricos e poderosos abastados de poder, revolucionário não apenas pelo fato de ter alterado a frequência a sua volta porém sobretudo antes disso teve como objetivo vital a mudança interior... Não tem medo, não causa polêmica, não busca fama, mesmo assim se tornou reconhecido, se tornou reconhecido mas não obteve o reconhecimento justo, que seria o nosso de observar e absorver seus ensinamentos... falamos muito, pouco fazemos, a pratica é presente, teoria é futuro, não se sabe, pratica é saber, teoria é chutar, aprender é viver, não vencer na vida não é errar, é ganhar, fácil é "tudo", sem valor algum, sem sentido, difícil é não ter nada.. é fácil não olhar, difícil é ajudar, luxo é inútil, lixo é útil, pra quem sente, não pra quem sabe, pra quem entende, uma das coisas mais fantásticas é que não nos damos conta mas muitas das vezes da onde menos esperamos é onde mais vamos nos surpreender, é assim que no lixão nasce uma flor, são nas pequenas coisas que encontramos o maior dos tesouros, nas mais simples se escondem as pedras preciosas, ninguém iria imaginar que isso pudesse ser feito nessa magnitude a qual foi feita, quem diria que um "rico mendigo" nos desse essa baita lição de moral, respeito, dignidade, visão de mundo, reflexão profunda, questionamento febril, oportunidade de pensar por si próprios, capacidade de exercitar a mente, e de brinde, um convite ao mundo real. Perspicaz, deixando a fantasia no imaginário, captando e percebendo os enigmas de cada âmbito e esfera, sob a perspectiva em todos os aspectos de diferentes grupos, denominações, nichos, tribos, patamares, parcelas, graus e degraus, desde a castelos e palácios, até catedrais, decifrando os códigos da "humildade", se tornou um homem rico de valores, de conduta, de princípios, de raízes, de caráter, amor ao próximo, vocação pra causar dúvidas nos racionais, mostrando a lógica das coisas pros irracionais promovendo solidariedade na rua expondo sua arte que encanta e ao mesmo tempo não só fascina mas assassina qualquer que seja pensamento mesquinho, egoísta, superficial, competitivo, hipócrita, demagogo, ganancioso, desumano e corrupto da nossa sociedade...

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  7. A solução é simples: respeitar os direitos humanos de todos, principalmente dos mais pobres, que são sempre os que mais sofrem. Isto não é questão de ideologia, mas de necessidade, civilidade, para que a sociedade não mergulhe de vez na barbárie.

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  8. Olá Eduardo, você conhece Agostinho da Silva?
    https://www.youtube.com/watch?v=EJttGZQw9uw

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  9. https://www.youtube.com/watch?v=FCcHAgV5Ur0

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  10. A sociedade tem conciencia desse controle Edu, o problema é que o controlador tem o poder e não tem interesse em mudar, o motivo: pura ganancia, necessidade de consumo, a solução é a criar formas e força de virar a mesa.

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  11. Eduardo tu é luciferiano! parabéns pelo texto revelador!

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  12. Eduardo Marinho, porque vc diz que as escolas particulares são ideológicas? Pode explicar ?

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    1. Ideologia, em um sentido amplo, significa aquilo que seria ou é ideal. E no caso das escolas particulares eles passam a ideologia de competição, de vencer na vida, de superioridade etc.

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  14. Este comentário foi removido pelo autor.

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  15. Sou muito grata por ter encontrado seus escritos e falas durante um período que considerava obscuro. Desde criança, também questiono o sistema e dentro de mim algo nunca me deixou feliz e satisfeita com essa vida medíocre baseada em consumo e falso poder. Na Universidade achei que com militância esquerda iria conseguir mudar algo. Comecei mais uma vez a ver a farsa por trás destes movimentos. Como você mesmo disse, nenhuma área fica isenta do controle dos endinheirados. Não vejo mais sentido nesta forma de vida tradicional. Me desliguei do curso. Não sou artista como você mas gosto muito da natureza e é isto que irei fazer. Vou me mudar para o interior e plantar, escrever, criar e viver. O sentido da existência. Portanto, mais uma vez gratidão pela sua existência. É bom não se sentir sozinho nesse mundo de individualistas.

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  16. Quanto mas conhecimento absolvemos, mas
    ignorantes nos tornamos já que somente atraves da iluminação enxergamos nossas limitações.

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  17. Muito interessante seu raciocínio, Eduardo. Me identifico muito. Sua visão de mundo sintonizou com muitas das minhas reflexões. Cara, me ajudou a modificar (ainda estou modificando e me libertando) minha maneira de viver! Estou absorvendo!

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  18. Olá amigo e leitores de comentários, hahaha

    É o segundo texto seu que leio e, certamente não quero ser leviano com qualquer comentário preciptado, mas devida à espontaneidade com a qual a reflexão me veio à mente, achei importante compartilhá-la: mesmo que a causa (o furo do encanamento, estrutura, sistema, etc) possa ser reparado para assim prevenir futuros males, é utópico (portanto uma pena) considerar que as pessoas tomarão consciência disso que não seja através de um processo contínuo de aprendizado, que pressupõe estágios entre planejamento, execução, etc e, no caso do Brasil, a questão do armamento ou violência é uma realidade, onde pessoas matam e morrem sem ter refletido (pelo menos suficientetemente) sobre essa questão durante a vida de modo a tentar alterar esse resultado. Resumindo: existem muitas pessoas a favor de um mundo repleto de paz, prosperidade e desenvolvimento, mas é como se fôssemos poetas em meio ao faroeste, refletimos, ilustramos, mas existem aqueles que matam e aqueles que morrem, tudo fruto de uma estrutura social que poderia ser questionada, mas depende do investimento que fazemos no berço da sociedade para um dia chegar nessa posição.

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  19. As vezes a vida também pode ser muito justa, nos da a oportunidade de fazermos a coisa certa, com pessoas certas...só não nos avisa quando esse momento chega.
    A maturidade, as dificuldades que enfrentei, os desafios que venci e "principalmente" os que perdi, me ensinaram a não julgar, a não esnobar nada nem ninguém, me ensinaram que as oportunidades não são as mesmas para todos.
    Quando nos libertamos dessas vaidades, passamos a enxergar a alma das pessoas que cruzam nossas vidas todos os dias.
    Não se arrependa de fazer o bem quando este não for reconhecido por quem o recebeu, o importante é que vc fez sua parte...quando menos esperamos, todas as sementes boas que deixamos pelo difícil caminho em que passamos, um dia começaram a florescer e seu caminho de volta será maravilhoso. Porém cada um de nós é quem decide que sementes deixamos.
    Poucos tem a consciência de que colheita é obrigatória no caminho de volta, um sorriso pode se transformar em abraço, carinho, admiração, respeito, etc...enquanto o desprezo, a indiferença que muitos tem por pessoas que "aparentemente" não podem lhes oferecer nada, podem se transformar em obstáculos intransponíveis no retorno, nesses casos, um sorriso de nada mais pode ajudar, "esta safra" já está perdida...
    Sejamos sábios na escolha das sementes que deixaremos por nosso caminho

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observar e absorver

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