terça-feira, 26 de novembro de 2019

Vida, passagem de "nascimorte".

Aos dezenove anos eu pensava que não viveria além dos trinta anos - "não chego nos trinta". Pela vida que eu vivia, tinha a convicção de que "minha hora" a qualquer momento "chegaria". Vi "chegar a hora" de várias pessoas e muitos bichos, vi mortes de muitos tipos, às vezes com a sensação de que não tinha sido minha vez a cada vez que escapava - às vezes "milagrosamente". Depois vieram os filhos e, da primeira vez que bala zumbiu na minha orelha em tempos de paternidade, o sentimento de gravidade foi grande, pela primeira vez. E os riscos, então, passaram a incomodar e serem evitados. A prudência ocupou o lugar da temeridade. Ainda que se possa por essa "prudência" entre aspas. Era só a negação do exagero, dos riscos desnecessários.
E a vida foi passando, crianças crescendo, décadas que se viveram, trinta, quarenta, cinquenta... pelo meio dessa década reparei que tinha vivido já muito mais do que imaginava, nos princípios. Num momento de tristeza, brinquei comigo, que que eu ainda tô fazendo por aqui, filhos criados, ninguém dependendo mais de mim pra viver, já tinha produzido tanta coisa, espalhado pelo mundo, já tava me repetindo demais, tudo já gravado por aí em vídeo, no iutube, nas redes, dito, redito e repetido até demais, não precisa mais d'eu por aqui, não. Minha condenação, pelo jeito, é bem maior do que eu imaginava. Devo ter cometido algum crime hediondo noutra passagem.
A vida como uma condenação, uma sentença, um castigo - uma brincadeira antiga, que transforma a morte num alívio, como contraponto à tragédia que se vê. A morte não é mais que a porta de saída, tudo o que nasce tem como destino a morte, tudo o que entra na matéria vai sair um dia, de volta à sua dimensão original. De volta à dimensão espiritual da sua sintonia, sua freqüência vibracional, seu nível espiritual. "Isso não é filosofia, é física", dizia Einstein, o gênio da física. "Sintonize a sua freqüência e esta é a realidade que você terá. Não tem como ser diferente."
Morte não é o contrário de vida, mas de nascimento. Porta de saída é oposto a porta de entrada. Vida é o espaço e tempo que temos pra passar de uma porta à outra. Se mantenho isso na cabeça, os falsos valores implantados pela sociedade em sua farsa se tornam cada vez mais evidentes. É uma passagem. Uma passagem rápida, vamos vendo à medida em que vai passando. Formando uma visão bem diferente da que é mostrada, percebendo necessidades outras, além da publicidade, das pressões do consumo como valor. A satisfação consigo mesmo, com as próprias atividades, a troca de afeto, a criação de laços afetivos, de solidariedade, a cooperatividade, o bem estar da alma, interno, a busca de harmonia coletiva e individual.
O conforto interno aparece mais importante que o externo, por passageiro que é. Estar bem consigo mesmo, com seus sentimentos e sua consciência, é fundamental, nessa visão da vida, por ser o que prevalece no bem estar verdadeiro. O bem estar material, o excesso apregoado pelo massacre cultural publicitário, midiático, ideológico, é uma ilusão angustiante, isolante, falsificada e falsificadora da realidade - muito além das formas e aparências. O excesso, o luxo, a riqueza exigem o sacrifício da alma, da consciência, da sensibilidade, do senso de justiça. Exigem conivência e cumplicidade, indiferença com o sofrimento de multidões e perversidade no proveito dos crimes sociais que criam mão de obra barata, roubando direitos constitucionais. Numa sociedade em desequilíbrio, qualquer privilégio é uma grande responsabilidade diante da sabotagem dos direitos de tantos.
A "consideração social" custa muito caro em espiritualidade. Percebi que pra manter essa consideração - nasci num meio socialmente bem considerado - teria que sacrificar meus sentimentos e minha consciência. Não aceitei, decidi outra coisa, diferente do esperado, do convencional. Escolhi a alma, o bem estar, o conforto interno. O resto foi como que automático, a desconsideração começou na própria família de origem e se estendeu por toda a sociedade. Tudo começou a me tratar pior. Menos os que, naquele momento, me pareciam os melhores e mais interessantes, justamente os perseguidos, os párias, a ralé, os de vida rica em acontecimentos, dificuldades e histórias. Perdi o respeito e a consideração pela sociedade, pelo seu modelo estrutural, onde os interesses econômicos valem mais que o ser humano, mais que a vida, onde se vale o que se tem. E, por conseqüência, perdi também qualquer necessidade de consideração da sociedade, com seus valores furados, superficiais, vazios, impostos pela própria sociedade, com a mídia, o modelo de educação empresarista, a cultura do consumo, utilizando em larga escala psicologia do inconsciente pra enquadrar mentes e corações, formar mentalidades e visão distorcida da realidade. Toda aquela consideração era falsa, condicional à cumplicidade com os crimes sociais. E a desconsideração é sinceridade. Melhor um pé na bunda sincero que um sorriso falso. Na minha opinião, claro, há quem prefira o contrário.
Na sociedade do patrimônio, dos interesses econômicos, da ânsia por bens, luxos e privilégios duvidosos, o bem mais importante e, ao mesmo tempo, mais esquecido, mais sacrificado, é o bem estar consigo mesmo, com a própria consciência, com o próprio sentimento em estar vivo nessa bagaça.


26 comentários:

  1. Grande Eduardo, agradeço meu querido pela força de alma que passa a todos nós que vivemos nesta vida um tanto angustiante mas clareia com sua fala. Deixo meus votos de gratidão, por não desistir da humanidade e continuar vivo em meio aos mortos, e o melhor, passar isso a todos nós, que precisamos de diálogos mais sinceros sobre tudo o que está acontecendo. Já o vi pessoalmente, em Santa Cecília (SC) onde trocou uma ideia com a galera dos colégios. Sua vida mudou a minha, não sou tão medíocre, meu olhar mudou, minhas escolhas são outras...Podem ser mais angustiantes, mas são as mais sinceras e deixam leve a alma. Agradeço então meu querido...fez uma alma feliz. Tenho muito respeito por você. Oss

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    1. Faço das suas, minhas palavras tbém... Salve Eduardo...Karateca ? Oss!

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    2. idem. eduardo, quando for sua hora, será. até lá, aproveite, tem muita coisa boa e gente boa. às vezes dificil de achar (ou garimpar, como vc diz. haha). e às vezes, mesmo sem querer, vc fala o que muitos precisam ouvir na hora exata que precisam ouvir. as palavras (e a fala) têm poder, e o poder que vc tem ajuda muitas pessoas. se depender de mim e de muitos, acho q vão te empurrar até uns 120-150 anos, no mínimo. haha. um grande abraço.

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  3. Falando de Sergipe. Suas palavras são inspiradoras, Eduardo. Sempre fazendo despertar aqueles que as ouvem, gratidão!

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  4. Eduardo, tenho muita gratidão por vc. Seus textos me ajudaram à despertar desse sistema. Ainda vou te conhecer pessoalmente para te dar um abraço de agradecimento. Você é luz!

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  5. parabéns pelo estilo de vida escolhido mestre !!!!

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  6. Essa energia está ligando as pessoas. Você leu meu diário desde 1992... rsrs
    não fui tão forte quanto vc foi, mas sigo tentando atender a minha alma. Sinta-se abraçado

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  7. Estou querendo ver seu trampo tbm. Apaixonada por sua mente. Quiçá um dia eu encontre o sentido da vida como vc . Gratidão.

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  8. Caro Eduardo, tenho assistido a suas palestras, tenho lido os seus textos, e todo o contexto que você expõe e materializa em palavras tem me estimulado a elaborar reflexões críticas e a desenvolver uma visão mais realista e menos superficial de nossa sociedade. Isto é tão importante! Você é, induvidosamente, um gênio, um gênio, entre outras qualidades, por ser genuíno e por se constituir uma fonte preciosíssima de sabedoria. Obrigado!

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  9. Não menospreze o dever que a consciência te impõe, não deixe pra depois, valorize a vida!

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  10. Pra mim esse cara e um cranio um exemplo de umildade

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  11. Obrigado por compartilhar suas idéias. Um grande abraço.

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  12. MUITO BOM, PARABÉNS POR ESSE SEU RACIOCÍNIO TÃO DIRETO QUE VEM NUTRINDO A TODOS QUE SE IDENTIFICA. INCLUSIVA A MIM. CONFESSO QUE O MEDO AINDA ME APRISIONA NESSE MUNDO PORÉM, JÁ ESTOU ENXERGANDO POSSIBILIDADES DE MUDANÇA. FORTE ABRAÇO, POSITIVIDADE E MUITA LUZ PRA TODOS NÓS.

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  13. Putz! Também passei dos 50. E agora?

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  14. Você não poderia ir-se sem que a experiência de vida abrisse seu coração de tal forma que você viesse a nós contagiar. Que bom que você ainda está aqui. Sua história me serviu de espelho para ver meus próprios medos. Sua coragem aos 19 não tenho aos quase 44. Você me apresentou a inutilidade de tantas lutas passadas; me mostrou alguns valores equivocados... Só não sei o que fazer diante do que ando descobrindo

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  15. Eduardo se tem que escrever um livro brother.. muito enriquecedor conhecer suas opiniões.. se permite o direito de expressão MUITO FODA suas ideias e seu modo de pensa.. escreve um livro

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  16. Meu nome é Tiago Vasconcelos e venho acompanhando há algum tempo os vídeos do Eduardo Marinho, acho louvável a história de ter largado tudo para viver e conhecer de fato como é possível viver com nada. A busca por entendimento da linguagem da favela, com certeza foi uma jornada bem dolorosa, porém acredito que incrível.

    Todo esse esclarecimento sobre a matrix, sobre como tudo é negado aos pobres, concordo com quase tudo isso, e como também nasci e cresci na comunidade sei bem do que está falando.

    Agora em resumo, sem esticar muito pra minha pergunta.

    "Na minha ignorância por não lhe conhecer, vou perguntar"

    A idéia de se manifestar aos poucos, aparecer num vídeo de quando em quando, parece sempre ser de surpresa, e acredito nisso, acompanhei o vídeo de quando esteve no TED também e tudo mais, tudo isso é somente pra causar uma provocação?

    Eduardo em sua consciência, você acredita estar ajudando alguém?

    Você faz esse manifesto com algum propósito?

    Na sua visão, caso seu propósito seja de ajudar as pessoas, como você pode ajudar a mudar isso?

    Talvez não as palavras possam soar arrogantes, porém são na humildade.


    Aguardo ansioso pela resposta.

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  17. A sensibilidade nas atitudes desse homem, que conheci hoje, é massa! Eita "cabra da peste" porreta (como se diz em terras alencarinas)! Só confirma o que eu penso desde sempre: pronto só defunto, mesmo! Um abraço fraterno em você, meu caro.

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  18. Gosto muito de assistir os vídeos que foram gravados com você. Suas ideias são esclarecedoras. Ler o que você fala abre as portas da minha percepção.
    Gratidão por você compartilhar sua sabedoria conosco.

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