quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Celestina, ostentação e retomada dos caminhos

Caricatura - Cláudio

 Celestina, a kombi, tá uma beleza. Alisada e pintada de novo. Antes da pandemia, ela tava toda lenhada, quando chovia muito era preciso parar, tirar tudo e enxugar a água que entrava pelos buracos, pelos encaixes das janelas, por todo lado. Eu gostava daquela aparência, o problema eram as conseqüências, a ferrugem se alastrando, buracos na lataria, a água que entrava a cada chuvarada.

Vários amassados, muitos arranhões e pontos de ferrugem nas janelas e dobradiças, era uma kombi velha, rodada, marcada pelo tempo, mas disposta e valente. Eu gostava do aspecto, simpático e cheio de cicatrizes, Celestina parecia uma senhora guerreira, de uma "velhice" ao mesmo tempo forte, suave e serena.

Lembro de uma vez em que calculei mal a chegada no Rio, gosto muito de viajar na estrada de madrugada, estrada vazia, de chegar amanhecendo o dia. Cheguei pela Linha Vermelha de manhã, quando o trânsito tá aglomerado pra ir da baixada pra centro e zona sul, das periferias mais distantes. Congestionamento, parando de cinco em cinco metros. Escuto um barulho, uma gritaria, uns baques à distância, parecendo longe. Olho pelo retrovisor, vejo um movimento intenso, um monte de moleques assaltando os carros, quebrando vidros com pedaços de vergalhões de ferro, com madeiras, sei lá, uma confusão acontecendo e vindo de trás pra frente, na minha direção. Arrastão. Não tenho o que fazer, não tem pra onde correr, o trânsito tá parado, na altura de Caxias. Estou sozinho na Celestina, a kombi, os vidros estão abertos e eu não faço nada, só espero. Eles vêm chegando, pegam o carro de trás, pegam o do lado, o do outro lado, o da frente. Eu só olhando, janelas abertas, percebo que nenhum deles olha pra mim ou pra kombi. Estão numa função de risco, podem tomar um tiro a qualquer momento, focam nos seus objetivos e não vêem mais nada. A única atenção fora disso é com a possibilidade de aparecer polícia. Nem viram a kombi, com seu aspecto de trabalhadora pobre. Instintivamente, não interessava a nenhum deles. Havia carros muito mais atraentes, bonitões, ostensivos, com aspecto de que tem grana.

A ostentação, tão comum em nossa "cultura social"- e em todas as classes -, me parece fragilidade de ego, insegurança em seu valor pessoal e uma estupidez social. Se pretende "ser respeitado" e se atrai a simpatia dos interesseiros, o olhar de cobiça, a inveja dos frustrados. O valor de cada um está em seu caráter, sua sensibilidade, seu senso de justiça, sua capacidade de compreensão, seu corpo abstrato, sua alma, sua espiritualidade. A transferência de valor pra fora, pra aparência e ostentação, costuma ser um sinal de precariedade interna, de superficialidade mental, de enquadramento nos valores induzidos pelo sistema social, pela própria sociedade. É o domínio da mentalidade "de mercado", induzida pelo modelo de ensino, pelo controle da cultura, das informações, das comunicações - a partir do aparato de administração pública infiltrada, pressionada e controlada pelas forças econômicas de um punhado que se esconde no tal "mercado".

Voltando à Celestina, mais uns dias ela vai me ser entregue. Parada na pandemia, passou quase um ano nessa dermatologia, tratando da "pele", dentro e fora. Depois, é revisar motor e componentes, preparar uma boa produção pra fazer a carga, lotar a viatura e partir pras estradas e pras exposições. Estávamos em cinco adultos e uma criança, em Brasília e partindo Goiás acima, quase na fronteira com Tocantins, quando a pandemia se impôs. A viagem já tinha mais de um mês, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Betim, Contagem, depois em Goiás, Rio Verde, Goiânia, Brasília, Alto Paraíso... aí eventos foram desmarcados, em Palmas, em seguida o Ceará fechou fronteiras. Paramos em Cavalcante, norte de Goiás, e ficamos. O motor da kombi tinha sido retificado antes da saída, estava "novo". A covid demorou seis meses pra chegar, foi quando decidimos ir embora, não havia mais por quê ficar. 

Em Belo Horizonte ainda paramos pra regular o motor na Fuscaria do Rafael, especializado em motores a ar, com carburador, das antigas. Chegando em casa e na impossibilidade de expor, fui morar na montanha, no mato. Andar de kombi ali ficava caro, sem mercadoria pra carregar e expor, ela não compensava. Passei pro uninho e deixei ela parada por um tempo, até encontrar o funileiro que ia tapar os buracos, cortar as chapas enferrujadas, soldar novas e o que fosse preciso e terminar fazendo a pintura nova com seu sócio pintor. Quase um ano depois, os olhos se enchem com a novidade da Celestina com um aspecto que ela nunca teve. Pelo menos desde que peguei, abandonada havia anos num depósito em São Gonçalo. O motor foi pro lixo e entrou um novo, original de kombi mesmo.

Não tracei rota pra primeira viagem, mas quero começar nessa região que abrange norte de São Paulo e sul de Minas, em direção oeste com vários "talvezes". Talvez triângulo mineiro, talvez Mato Grosso do Sul, talvez oeste do Paraná, talvez o sul de Goiás, até onde a mercadoria se aproximar da metade. Aí começa o retorno, expondo sempre, mas já na direção leste, a caminho de casa. 

Com o dinheiro ganho na viagem, compra-se matéria-prima farta e começa a produção novamente, gravuras, camisas, fanzines, livrinhos, ímãs... uns dois ou três meses e já dá pra encher Celestina, a cargueira. Aí se estabelece uma nova rota. 








5 comentários:

  1. Rachei os bico do poder da invisibilidade no arrastão kkkkkkk
    Obrigado por sempre lembrar do real valor humano.

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  2. Salve Edu, se vier p nikiti ja tem 1 ponto de apoio. sei q tu e local daki. abs

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  3. Eduardo mais uma vez colocando em palavras que mais importante do que "ter" existe o "ser"

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  4. Eduardo Marinho você é meu mentor intelectual um cara que abriu a minha visão para o mundo moderno gostaria de um dia poder conhecer você pessoalmente meu amigo através de um vídeo seu a minha forma de agir de pensar foi mudado obrigado

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  5. Vc meu mentor intelectual ao ver Visio seu mudei minha forma ver avida sai da minha zona de conforto

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