terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O nascimento de Brisa

           (Esta história é um capítulo do "Crônicas e Pontos de Vista")


           Pô, cara, não dá pra botar um cobertor em cima dela, não? Ela se tremia toda na maca de metal, um lençol pequeno e finíssimo por baixo e outro por cima, saindo da sala de parto a caminho da enfermaria. O maqueiro pareceu envergonhado, não dá, indigente não tem direito a cobertor. Diante do meu olhar espantado ele fez cara de que não podia fazer nada. Eu entendi. Falei com ela, vou buscar um cobertor, e saí do hospital pra casa. Não dão cobertor pra indigente! Cambada!
            Na chegada já tinha dado problema, a gente não tinha a tal matrícula, disseram que não tinha vaga pra indigente. Depois de muita discussão eu disse que ia fazer o parto ali fora mesmo e chamar a Tribuna da Imprensa – o jornal de oposição –  pra registrar. Fui saindo com ela, cheia de dor, segurando a barriga, me olhando e falando baixinho, cê tá maluco? Baixinho também, perto do ouvido dela, eu disse vai por mim, e a vaga apareceu como por encanto.                         
            Foi o dia todo esperando, sem poder chegar perto, mandando bilhetinho pra dar força, ficamos logo amigos dos mais pobres, faxineiros, auxiliares, atendentes, enfermeiras (auxiliares de enfermagem). Eles faziam a ligação, levavam as coisas que eu trazia, maçã, iogurte, bilhetinhos. O de comer, ela não podia, ficou tudo esperando na geladeira até o dia seguinte.
            Passáramos a gravidez pelo nordeste, viemos descendo de Natal aos poucos, parando em várias cidades do litoral. Chegamos em Vitória no oitavo mês, alugamos um barraco de tábua, numa encosta cheia de barracos. Decidimos fazer o parto em casa, nenhum dos dois tinha a menor experiência, depois de uma noite inteira de contrações ela começou a apagar depois que acabava cada contração. Aí resolvemos ir pro hospital.
            Cheguei em casa, espalhei na vizinhança, nasceu, é uma menina, vim buscar um cobertor, que no hospital eles negaram. Juntei umas frutas, pão integral, cobertor, toalha, sabonete, roupa limpa, escova de dentes, revistas em quadrinhos, caderno e caneta, os vizinhos arrumaram mais coisas, mandaram pedaço de bolo, torta salgada, manga, roupinhas de recém-nascido que estavam guardadas. Ia colocando tudo numa mochila, me emprestaram uma mala preta, pequena. Como é que eu ia entrar no hospital?, me perguntaram, naquele horário estava fechado. Eu não tinha pensado nisso, mas só ia pensar quando estivesse lá.
            Eram por volta de onze e meia quando cheguei no hospital, a casa era longe do centro. Tudo fechado. Algumas janelas do andar de cima estavam abertas, poucas e de difícil acesso. Havia os postes, mas como subir com a mala? Devia ter vindo de mochila. Fui andando em volta, procurando por onde entrar. De repente, vi uma porta aberta, a luz acesa dentro, letreiro em cima, emergência. Nenhum movimento. Do outro lado da rua, subi metro e meio no poste, olhei, era um balcão em L, formando um quadrado com o canto da parede. Dentro, mesa e cadeira, com um cara sentado na cadeira inclinada, os pés em cima da mesa, lendo um gibi. Mais ninguém. É por ali, pensei.
            Cheguei sem fazer barulho, abaixando um pouco, eu não via o topo da cabeça dele e ele não me veria, se eu não fizesse barulho. Sandálias de borracha, passei em silêncio completo. Entrei num corredor, fui caminhando normalmente, esperando ser barrado a qualquer momento e pronto pra argumentar. Mas não apareceu ninguém. Subi a escadaria pra enfermaria da maternidade, pisando leve, e passei a andar entre os aposentos, cada um cheio de camas com pacientes, até que a encontrei, sentada e acordada. Ela tomou um susto quando me viu, mas nem respondi a pergunta, como é que cê entrou?, fui logo mostrando tudo o que trouxera, depois queria saber da criança, como fora o parto, a gente pensava que era menino, cadê, só vão trazer de manhã.
            Ouvimos passos e não deu tempo de nada, a enfermeira me viu, lá do corredor, e armou o circo, por mais que eu pedisse silêncio. Veio a polícia de plantão, o médico de olhos vermelho, tava dormindo, hein, dotô, o guarda riu disfarçado, vambora rapaz, pode deixar, eu saio por onde entrei, nada disso, vai sair pela porta da frente. Abriram aquela porta enorme, pesadona, e eu fui pra madrugada. Nem pensei em ir pra casa, que que eu vou fazer em casa? Vou andar por aí. De madrugada, na praça do centro, onde expunha meus artesanatos, sentei na escada do teatro Carlos Gomes, pensativo. Durante toda a gravidez nos disseram que era menino. Barriga pontuda. Videntes, místicos, todos afirmavam a macheza da criança. Não houve uma voz dizendo que era menina. Eu tinha tanta certeza que, quando a enfermeira que ajudou no parto veio me dizer, eu ri e respondi, não, é menino. Ela me olhou sem entender e eu, bem calmo, cê devia estar em outro parto, a minha mulher é aquela loura magrinha. Ela inclinou na minha direção, olhou dentro dos meus olhos, eu sei muito bem qual é a sua mulher, eu estava no parto dela, e é menina! E saiu. Fiquei sem reação.
            Sentado na escada do teatro, lembrei que não tínhamos nomes de mulher, só de homem. E agora? Pensava nisso, quando o vento aumentou e eu senti frio. Olhei o alto das árvores se inclinando, me encolhi um pouco, lembrei das praias do nordeste, é, acabou o verão, essa já é a brisa do outono. Mal acabara de pensar e como que acendeu em letras de luz na minha cabeça, Brisa do Outono. Esse é o nome!
            No dia seguinte, fui surpreendido com a recepção no hospital. Esse é o cara que invadiu de madrugada. Muitos me cumprimentavam, sorriam, os escalões mais baixos sorriam abertamente, alguns me deram tapinhas nas costas. Logo na entrada, entre os sorrisos dos servidores, uma voz de autoridade soou, acima do tom geral. Era um professor chefe, todo mundo murchou quando ele disse, então cê acha que tem o direito de invadir um hospital de madrugada, rapaz? Mais do que deixar uma mulher parida sem cobertor, tremendo de frio, tenho mesmo, respondi de pronto, no mesmo tom. E me espantei com o espanto geral, todos saíram pra cuidar do serviço, parecia uma debandada. O mestre fechou a cara, resmungou qualquer coisa sobre "esses caras" com os assistentes que estavam perto dele e saiu, depois de me olhar de cima da sua superioridade social. Os acadêmicos eram bem atenciosos, ao contrário dos professores, que me olhavam com desprezo explícito e franca condenação. Mas depois daquilo, não se arriscaram a falar comigo. Entre os subalternos, a simpatia voltou a ser a mesma, longe dos superiores.
            Subi e vi pela primeira vez a minha filha. Cor de rosa, sem cabelo, um bichinho, só acordava pra mamar. Disse o nome à mãe, ela achou ótimo. Peguei a criança no colo, olhando. Fiquei procurando a sensação de ser pai, não via diferença, a não ser aquela coisinha nova e completamente dependente. Foi com o tempo que o olhar da criança me impôs o sentimento de pai. Nem trocando as fraldas ou curando o umbigo eu tive tão clara a posição de pai.
            Naquele dia mesmo, à tarde, pudemos ir pra casa. 

(Pedidos pelo arteutil.em@gmail.com. Por aí se fala direto comigo, sem intermediários)

4 comentários:

  1. Eduardo, vi Gandhi em sua galeria. Um líder que teria olhares de admiração sobre você, que hoje entrou em minha vida como sugestão de tema do trabalho de psicologia, em minha mente como um gênio vitoriosamente miserável e em meu coração como outro coração, do tamanho do meu, com as mesmas necessidades. Se eu partir primeiro, digo ao seu pai com muito orgulho quem ele trouxe ao mundo e te preparo o terreno. Obrigada por sua força e coragem!

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  2. Não exagera, morena. Assim cê me encabula. Não faço nada que não seja necessidade interna, egoísmo puro, no sentido raulseixeano (http://www.youtube.com/watch?v=ztJvdIFJaOs&feature=fvst). Quanto a "vitórias", só são possíveis a quem está competindo e eu levo a vida como uma toada, vou levando sem produzir derrotas - que são as conseqüências das vitórias. Pela lei das probabilidades eu devo ir muito antes de você - 51 anos, bebedor, fumante, dormindo pouco e com um histórico de drogas impossível de mensurar na juventude... Quando chegar lá, quem foi meu pai será meu irmão. Força todo mundo tem, embora a maioria não saiba e precise de tragédias pra descobrir ou cair. Coragem é apenas agir com o coração. O que eu tive mesmo foi um medo enorme de ter uma vida sem sentido. Obrigado pelo comentário.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Como não amar Eduardo? Ele fala com tanta clareza que encabula a minha alma. Sinto uma conexão incrível, de outros tempos...e ainda me lembro como é ser como ele, livre dessa sociedade de apodrecida e fracassada... é lindo de ver a sua resistência, eu cedi as pressões...sinto falta do sentido, da verdade em cada respirar...te admiro!

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