sábado, 4 de agosto de 2018

Embriões da nova sociedade

Fukushima despeja radioatividade no oceano Pacífico há oito anos. O rio Doce despeja metais pesados no oceano Atlântico há quase três. A população dos mais de oitocentos quilômetros do vale do rio Doce está exposta aos metais pesados e tem câncer, muitos. As mineradoras destróem vales e mananciais, distribuem resíduos químicos mortais em todo lugar em que se instalam, poderes públicos calados (ou mentindo) e cúmplices, pelo colossal poder econômico e pelas estratégias de infiltração e domínio das mega-mineradoras. O agronegócio, grandes espaços de território onde se cultivam transgênicos de todo tipo, seca pra irrigação ou empesteia com fertilizantes e venenos agrícolas nascentes, rios, lagoas, lençóis subterrâneos. Envenena a terra, os bichos, comunidades pobres, aldeias indígenas, populações ribeirinhas. A natureza é morta, cotidianamente, e com ela a vida. Os aquíferos foram vendidos a empresas internacionais que sugam o máximo da água pra exportação, na ânsia de lucro. As águas secam nas periferias de muitas grandes cidades e também de cidades médias e pequenas, as doenças se espalham, todo mundo toma remédio, o atendimento médico falta às multidões, o alimento industrial adoece.

Na África, na América Latina, onde a miséria obriga a migração de milhões, e nos países em guerra por conta do petróleo, onde é a violência e a destruição o que empurra outros milhões, se forja a mistura, a miscigenação da raça humana do futuro. A ameaça das bombas atômicas paira sobre o hemisfério norte, onde estão concentradas as bombas e os poderes mundiais, as ameaças e as maiores guerras em curso. Na África, as guerras são mais explícitas entre as mega-empresas ocidentais e os povos locais, os interesses não se disfarçam em nada. Em nossa latinoamérica, a hipocrisia domina os poderes públicos, debaixo do mercado financeiro, dos grandes bancos mundiais e das mega-transnacionais do petróleo, da mineração e outros interesses empresariais. A miséria e a pobreza, a ignorância e a desinformação são impostas às multidões. O egoísmo e o consumismo são implantados nas classes médias, como cabresto pra administração da sociedade em troca de direitos e até alguns privilégios. A conivência e a cumplicidade com os crimes sociais são exigidas, a perversidade com as vítimas desses crimes é premiada.

Nas áreas de exclusão e extrema exploração, em meio ao abandono, surgem focos ainda embrionários de uma nova sociedade, uma nova mentalidade, novas formas de se relacionar, novos valores pra se viver. Isolados, em meio à escuridão de consciência, são visíveis a olhos atentos. Dispersos, sem nenhuma articulação, sem saberem uns dos outros, estão nascendo autonomias psicológicas, comportamentais, artísticas, "loucas" em seus locais periféricos, mas sem perseguição, sem agressividade, apenas uma respeitosa e gozadora estranheza. Uma das leis comuns às periferias é que se pode ser qualquer coisa, seja o que for, desde que não incomode nem prejudique ninguém. Não quero dizer que nestas tantas áreas não exista discriminação e preconceito - isso é característica da sociedade como um todo, uma indução social permanente pelo aparato midiático e seu massacre ideológico-publicitário e, por isso mesmo, existe em qualquer meio. Mas a lei do respeito é uma lei implícita que vigora nas relações periféricas, quem anda por aí sabe do que tô falando. Essas exceções mentais não são hostilizadas, ao contrário, são olhadas, na maior parte das vezes, com curiosidade. E é bom que seja assim. É uma autonomia que passa pela dispensa de consideração social. A percepção de que tudo o que a sociedade tem a oferecer aos periféricos é precariedade, maus serviços, exploração, desprezo, agressividade, repressão e ausência faz com que se perca a consideração pela administração pública, pelos valores sociais, pela sociedade organizada, porque organizada de cima sobre o esmagamento dos de baixo. Isso faz com que a consideração social perca o valor. E se ganhe autonomia psicológica, auto-estima como resistência, capacidade de superação. Em várias comunidades em muitos lugares diferentes estão surgindo sinais de autonomia, seja em hortas comunitárias, cooperativas artísticas, plantas medicinais, rádios comunitárias, jornalismo independente - busca e distribuição de informações além mídia -, enfim, pequenos, às vezes pequeníssimos grupos, aparentemente isolados, começam o esboço da sociedade que surgirá dos escombros desta que caminha pro seu próprio colapso. Exatamente onde devia ser, nas periferias, nos espaços abandonados pela sociedade, de onde se retira a "mão de obra barata" que põe tudo pra funcionar.

Afinal, pra construir uma nova sociedade mais humana, ninguém melhor do que os que carregam o mundo nas costas, que lutam com dificuldades todo o tempo, roubados nos seus direitos, que aprendem a solidariedade como ferramenta de sobrevivência. Na longa agonia de morte desta sociedade desumana, surgem os embriões do que nascerá na solidariedade da reconstrução. Um processo, digamos assim, "geracional" - de geração em geração, cada uma na parte que lhe cabe e focalizada na formação das futuras, exemplificando em primeiro lugar. É o que estou vendo nos embriões de consciência nas periferias. Ainda embriões - sendo gestados em barrigas periféricas. Criando novas formas de se relacionar, entre si e com o mundo, afetivamente, de igual pra igual, com respeito, profundidade e disposição ao entendimento, construindo e priorizando a harmonia coletiva, pouco a pouco eliminando as condições de existência do egoísmo, da competitividade, dos condicionamentos profundamente enraizados no inconsciente das populações por tantas gerações. Exceções ainda, invisíveis ao sistema social como invisibilizadas são as periferias e favelas - e é bom que seja assim pra que se desenvolvam - mas são essas exceções os embriões da nova sociedade, que têm a função e o poder de contaminar e se alastrar pra brotar dos escombros da velha estrutura social que, depois dos muitos e inconformados espasmos, estará inapelavelmente morta.







Todas as fotos de Maria Clara, em São Mateus, zona leste de São Paulo, 2017.

13 comentários:

  1. Que texto hein, caraca, viajei demais nele, pensei lá na frente

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  2. Eduardo eu só quero dizer obrigado, por me fazer ver que eu não estive enganado toda minha vida, ou melhor por me fazer ver que vive em negação toda minha vida, por eu não tive força soficiente para ser aquilo que é o correto, viver exclusivamente para os outros, porque eu sou, porque nós somos

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  3. ótima reflexão e percepção da realidade, uma quebra do filtro que a mídia despeja sobre nossos olhos.

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  4. Eduardo, você está pelo Rio de Janeiro, sou de Portugal e adorava conhecer você! Forte abraço

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    1. No Rio pelo meio de setembro, a partir de quando volto a expor em Santa Teresa, centro da cidade.

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  5. Conhecer a historia, o trabalho e as reflexoes do Eduardo me ajudou a montar um quebra-cabecas da sociedade em que vivemos. Pude ver o quanto somos enganados o tempo todo, o quanto devotamos nossa vida para alimentar os privilegios de um punhado. Eu fiz esse caminho de ir da classe baixa pra media e hoje sinto falta daquele clima de solidariedade que tinha em casa, lembrando as inumeras vezes que meus pais alimentavam e davam dormida a pessoas que andavam na rodovia onde moravamos bem na beira. De fato, nao adianta querer ver essa realidade mudada, mas que usemos o nosso direito de sermos diferentes dela, sermos do jeito que a gente pensa que tornaria o mundo mais fraterno e solidario. Excelente Eduardo! Parabens por teu trabalho! Estarei sempre acompanhando aqui no blog e tentando disseminar estas reflexoes. Abracos!

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  6. Eduardo, tem previsão de passar por Belo Horizonte? Assisto os seus vídeos, gostaria de ver suas artes pessoalmente e conhecê-lo.
    Abs
    Fred

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  7. sensacionalmente elucidativo. Parabéns pelo texto fantástico

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