quarta-feira, 14 de março de 2018

Do Bento a Barra Longa

Bento Rodrigues em foto de dezembro de 2015. Desta vez não tivemos acesso.
Bento Rodrigues sumiu. O plano da mineradora se cumpriu. Há anos a mega-empresa pressionava os moradores, queria comprar suas casas pra construir um novo dique de venenos da mineração, além das de Fundão, Santarém e a gigante Germano. Ninguém quis, ninguém aceitou. Todos faziam questão de continuar "no Bento", era um disparate pensar em vender seu espaço, seria como vender a alma, as raízes da vida, seria como vender alguém da família, um pedaço do próprio corpo. A mineradora não desistiu, "os acionistas exigem que se construa mais um depósito de rejeitos em Bento Rodrigues". A Vale do Rio Doce foi praticamente dada de presente pra mega-empresários estrangeiros, que primeiro tiraram o Rio Doce do nome, depois mataram os quase oitocentos quilômetros do vale, deixando um rastro de metais pesados cancerígenos, altamente tóxicos. Toda a vida do meio ambiente morreu e o que sobrou adoece aos poucos, deteriora, se acaba. Milhões de pessoas afetadas, atingidas, feridas de morte. As cifras não correspondem à realidade, os dezenove mortos de Mariana são um punhado dos que morreram anônimos, gente muito pobre que ocupava as beiras dos rios. Garimpeiros, lavradores, criadores de galinhas, cabritos ou porcos, que arrancavam a vida das margens, expostos a enchentes, acostumados com elas. Gente analfabeta, esquecida pela sociedade e pelo Estado, ocupando as beiras em casas de barro, sem energia elétrica. Nos períodos de chuva o nível do rio era observado com atenção, documentos e coisas mais importantes já preparados pra fuga, quando o nível subisse a ponto de ameaçar as casas. Gente disposta a reconstruir tudo, depois que as águas baixavam, que não tinham outra opção, sem terra, sem propriedades. Se aproveitavam das margens, onde é propriedade do Estado, pra fazerem suas moradias, já que a sociedade não cumpre sua lei máxima, determinando que todo brasileiro tem direito à moradia garantido pelo Estado - além de alimentação, instrução, informação, formação profissional, atendimento médico, tudo ignorado, tudo sabotado, revelando a estrutura social como uma organização criminosa contra as populações e a serviço dos poucos podres de ricos que o controlam, parasitas sociais, dos bastidores da farsa política, manipulando suas marionetes e contando com os meios de comunicação como porta-voz, formadores da opinião pública sem nenhuma consciência moral ou social e sem nenhum compromisso com a verdade. No dia da tragédia, não era época de chuva. Todos os moradores estavam em casa, dormindo, sem saberem de nada. A avalanche de lama, troncos, tratores, carros, caminhões, pedaços de paredes, máquinas de todo o tipo, pegou os ribeirinhos de surpresa, pela noite e madrugada.

Os crimes da samarco, e são muitos, podem ser encarados como da natureza de um sistema social empresarista, onde a vida vale menos que a propriedade, que os interesses empresariais, uma sociedade empresarizada, de mentalidade empresarista, infiltrada em todas as áreas, educação, medicina, cultura, transportes, mineração, enfim, todos os setores. Os que falam em "absurdo" têm uma visão superficializada. Não é absurdo, é da natureza do sistema social, que está longe de ter na vida o seu valor máximo. O ser humano está em segundo plano na sociedade que se diz humana, mas ainda não alcançou esse patamar. Não adianta punir a empresa e manter o sistema onde as empresas ditam as normas e violam as leis, se infiltram no poder público e determinam políticas "públicas".

Descemos margeando o rio Gualaxo do Norte, o que leva os rejeitos da mineração vale abaixo. Em 2015 essa estrada estava toda interditada, submersa na lama de rejeitos da mineração. Tivemos que andar distantes, fazendo voltas pra acessar as margens onde era possível. Agora fomos por ela e não perdemos o rio de vista. As marcas de dois anos permanecem nas margens, o nível da lama está marcado nos troncos, muito acima das nossas cabeças, em vários lugares. Pontes arrastadas pela maré dos rejeitos, cheia de troncos arrancados das encostas, foram reconstruídas num único padrão, de ferro e corrimões amarelos. Passamos por várias. Depois da ponte do Gama, seguimos alguns quilômetros errados, pra perguntar numas casas pelo caminho. Quando a dona ouviu pra onde íamos, sorriu e disse "Paracatu de Baixo, a bem dizer, não existe mais". Voltamos e seguimos o caminho certo, passamos pelo povoado destruído, agora o asfalto passa pela antiga rua central, mourões uniformes e brancos cercam a estrada, marcando a lama alta e tóxica, as ruínas vermelhas dão o tom da destruição entre os verdes que cresceram sobre os rejeitos. Apenas no final das casas, numa encruzilhada, encontramos algumas pessoas. Soubemos que restam nove famílias morando ali, nas duas ruas que não foram afetadas. A sensação é de morte de uma povoação.
Fomos adiante, numa estrada que, em 2015, estava intrafegável, seguindo o Gualaxo. Passamos a Fazenda Gualaxo, portentosa, provável estância turística, sem ninguém à vista, tudo fechado, apenas alguns animais presos. Próximas, as casas dos trabalhadores. Entramos em Pedras, passamos Campinas, descemos até a beira do rio numa entrada sem saída onde encontramos um posto de trabalhos, sempre um clima de mistério e máfia, até que relaxam com nossa inofensibilidade. Fora a Carolina Rubinato, nada parece ameaçador. Na verdade, a máquina fotográfica grande é temida pelos funcionários, há um histórico de ocultamentos que deixam os funcionários inseguros, qualquer coisa eles podem se dar mal na empresa, aí se cria um clima de repulsa a tudo o que significa divulgação, a não ser quando vêm com a autorização e a indicação da própria empresa. Aí fazem o que a gente vê na mídia privada.

A ponte caída na estrada real continua caída

As armações pro "conserto" e o marco da estrada real.

Passamos Gesteira, onde nem pudemos ir da outra vez, as pontes haviam caído. Um povoado dividido em dois, depois da enchente de 79, quando muitos foram morar no alto da colina. Gesteira de baixo e Gesteira de cima. A de baixo não existe mais. Ali eu percebi a mesma coisa que depois, em Barra Longa. As árvores tiveram o tronco pintado de branco até o nível marcado em lama vermelha. Bem a cara da mineradora, maquiagem, escondimento, mentira, distorção da realidade, pressões, induções. O aspecto acima da realidade, o cenário montado sobre os crimes.

Assim chegamos em Barra Longa, à noite. No posto de abastecimento, encontramos Sérgio Papagaio, bom amigo, que nos convidou à sua casa. Como em 2015.

Pequena usina de energia elétrica, destruída e contaminada, no Gualaxo, entre Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.
Isolamento e abandono no povoado de Paracatu.

Paracatu - a lama continua no mesmo lugar, o mato tem crescido em cima.
O mato cresceu sobre a lama, nas margens. Mato empesteado.
Mais uma pequena hidrelétrica destruída.
A escola mantém a marca da lama, há mais de dois anos. Ensinos fundamental e médio. Uma creche também foi destruída.
A altura da avalanche está marcada nos troncos de algumas árvores, às margens do Gualaxo do Norte.
Os afluentes, muitos, se atiram limpos no líquido contaminado que corre no Gualaxo.
Na casa de Papagaio encontramos o estandarte levado em manifestações da população. 

5 comentários:

  1. Parabéns Eduardo pelo trabalho e pela divulgação do mesmo. Espero que continue observando e absorvendo a nossa realidade e a compartilhando conosco. Forte abraço !

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  2. Parabéns ,pelo seu trabalho Eduardo Martins!

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  3. Parabéns pelo comprometimento com o nosso país. Reclamar de políticos infelizmente já se tornou uma coisa redundante e você exerce esse papel muito melhor do que 99% deles, sem a pretensão da alcunha e muito menos desejando os 'privilégios'. Em tempos onde é confundido histeria e senso comum com ponto de vista crítico, seu blog é uma verdadeira dádiva. Sempre estou acompanhando e resolvi escrever essa mensagem por gratidão. Também não suporto celular.

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  4. Muito bom documentário! Historicamente a estrutura social não teve evolução desde a Idade Media. É só compararmos a estrutura social de "hoje" com a estrutra social do periodo feudal, na idade média. Na verdade, retrocedemos enquanto sociedade se compararmos os números.A quantidade de pessoas (seres humanos como nós) que vivem (ou sobrevivem) em situação de miséria total, sendo a estas negadas, todos os seus direitos à vida. Nos países mais pobres esses números são enormementes maiores, porem não é um "privilégio" destes, pois a pobreza é um problema do Mundo todo. Essa tragédia só reforça a visão de que a estrutura é torta e sem previsão de melhores dias a não ser por uma mudança lenta e que precisa partir de dentro de nós, sendo que antes de querermos mudar as pessoas temos que mudar a nós mesmos.

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