domingo, 29 de março de 2020

Duas provocações de mangueio separadas por tempo e espaço



Salvador, 1984. Eu tinha 23 ou 24 anos, duas filhas, Brisa e Adhara, e morava na Aldeia de Arembepe. Estava mangueando em Itapuã, bares lotados, quiosques de praia abarrotados, sol forte, praias cheias. Eu ia de mesa em mesa, quer dar uma olhadinha?, alô, alguém quer ver?, licença, dá uma olhada aí... Na maior parte, ignoram, recusam, negam, alguns ainda contemporizam, muito bonito, mas fica pra outra hora, eu pensava a hora é agora, ou não é, e seguia, mesa em mesa, grupo a grupo, às vezes alguém parava pra olhar, eu esperava, de longe em longe uma venda. Eu entrava nos bares que não expulsavam, já conhecia da prática cotidiana, chegava nas mesas cheias, ia primeiro na pessoa mais velha, ou na que parecia estar no comando, pagando, quando percebia essa “hierarquia”, por uma questão de ética própria – ou defesa.  
Cheguei numa mesa que eram quatro mesas juntas, umas doze pessoas. Mostrei pra um dos caras, ele me dispensou com um gesto de impaciência, no meio do papo dele, sem nem me olhar. Eu fui mostrando pras outras pessoas, circundando a mesa, até que duas meninas me pararam. Uma encontrou seu nome escrito num brochinho de arame, perguntou quanto era, comprou. A outra reclamou, mas não tem o meu nome. Sem problema, eu respondi, posso fazer agora. Ela quis. O cara aquele, então, vendo que eu me preparava pra fazer um trampo, não gostou de me ver sorrindo com as meninas e começou a me atacar. Isso não é trabalho. Cês são um bando de vagabundo, tinha mais é que arrumar um emprego. Eu não dizia nada, só percebia a revolta dele por eu ter parado pra servir duas meninas bonitas que estavam na mesa dele. E continuou no mesmo tom, enquanto eu torcia o arame pra confeccionar o broche, calado. As pessoas na mesa foram silenciando, espantadas e constrangidas com o que ele tava falando. Eu respondi uma e outra vez, vagabundo? e mostrava a mão cheia de calos, ele não se dava por vencido, isso não quer dizer nada, e eu desisti de falar, continuei fazendo o trabalho calado, ele me esculachando. Não era novidade pra mim, eu só queria terminar, pegar meu dinheiro e seguir adiante, sabia ser inútil responder, que o confronto ali só me marcaria pro dono do bar não me deixar mais entrar pra vender. Sabia que frustrados covardes se aproveitavam da minha “inferioridade” social pra descarregar suas frustrações, consegui ficar calado até terminar. Quando finalmente entreguei o brochinho pra menina e recebi minha grana, percebi que não só aquele pessoal da mesa estava em silêncio, como outras mesas em volta haviam se calado, espantadas com tanta agressão e ofensa, na expectativa da minha reação. Enquanto enfiava o dinheiro no bolso, olhei pro sujeito bem nos olhos. Ele me encarava agressivo, como quem espera o confronto. Eu pensei não pode ficar assim, mas sem querer conflito. Com a grana no bolso, alicate e arame na bolsa, aproveitei que a mesa estava entre ele e eu e perguntei, calmo e em bom som, meu irmão, cê quer briga? A tensão no ar ficou densa, ele se levantou, olho arregalado, e gritou – por quê!? Eu respondi sem alterar a voz, porque eu saí de casa pra trabalhar, tenho duas crianças pequenas me esperando chegar com o sustento, não tenho tempo nem disposição pra ficar trocando sopapo com ninguém. O espanto era geral, ainda em silêncio. Eu continuei pra arrematar, mas pode ficar tranqüilo que tá cheio de gente que adora brigar, cê vai encontrar fácil alguém que se disponha, eu é que não posso, vai desculpando, preciso trabalhar, tá? Dá licença. E, ato contínuo, ofereci na mesa ao lado, quer dar uma olhadinha? As pessoas estavam ainda espantadas e balançavam a cabeça negativamente, sem dizer nada. Fui de mesa em mesa, oferecendo, em volta da mesa grande onde havia vendido, sem olhar pro cara mais nenhuma vez, pra ele não se sentir provocado, mas sem tirar do meu arco de visão periférica, pra não ser pego de surpresa por um ataque repentino. Que não veio. Na útima mesa do entorno daquela, um cara sozinho, que havia presenciado a cena toda, topou como um desafio ao dizer quero, eu quero ver o que você tem aí. Parei, ele olhou e parou nos brochinhos de placa, onde eu fazia as primeiras frases, pensamentos, propostas, desenhos, tudo gravado em relevo, na época com ácido nítrico, fez comentários, eu respondi, o papo ficou interessante, ele ofereceu cerveja, eu aceitei, sentei e fiquei um tempinho conversando enquanto ele escolheu uns quatro broches com pensamentos. Na hora de pagar pra eu ir embora, percebi que aquela mesa cheia havia esvaziado, a conta fora paga e eles tinham ido embora. Alívio. Segue a lida.

Belo Horizonte, 1990. Área da Savassi, noite, mangueio de fim de semana. Mesa cheia de novo, de novo a repulsa explícita de um convencional. Desta vez, ele se recusou a acreditar que era tudo feito à mão. Fui perguntado e conversava, explicando como usava o percloreto de ferro pra corroer, como isolava com tinta asfáltica as partes que ficariam em relevo, como fazia os fechos com o alicate e soldava atrás, o cara com um dos brochinhos na mão, balançava a cabeça, tu não faz isso à mão não. Eu dizia que ele podia não acreditar, era direito dele, mas eu sabia que fazia. Ele retrucava que eu comprava em São Paulo. Eu ria, sentia as pessoas acreditando em mim, apesar dele – quando a gente fala a verdade, parece que as pessoas honestas podem sentir -, até que ele apelou. Disse que tinha chegado de Sampa no dia anterior e que estivera na loja onde eu comprava. Pedi pra ele olhar bem as peças, pra não se confundir, ele confirmou a mentira, são esses mesmos, eu vi, igualzinho, numa loja lá da 25 de março. Eu parei, percebendo que ele tava mentindo descaradamente, tentando me desmoralizar ou me fazer assumir que comprava. Olhei bem pra ele, vi que não acreditava mesmo ser possível eu ter feito aquele trabalho à mão. As pessoas da mesa pararam de falar pra ver minha reação. Era uma clara afronta, um desafio. Mas, por outro lado, no fundo era um elogio. E respondi, cara... vou tomar como um elogio. Todo mundo se olhou, sem entender, eu expliquei. Tu ta achando meu trabalho tão bom que é impossível que eu tenha feito à mão, né isso? Os olhos do cara ficaram confusos, alguns sorriram, eu arrematei antes de ir embora, valeu, 'brigado. Também acho meu trabalho muito bom. Nem precisa acreditar.  E fui embora em paz. Tinha vendido dois broches naquela mesa.

13 comentários:

  1. As pessoas geralmente atacão as outras por medo inconsciente, digo porque já fui assim, até o dia em que comecei a me questionar o porque precisava atacar e ferir outra pessoa pra me sentir bem, e passei a perceber que a vida a minha volta era triste e via em “ alvos” a coragem e felicidade que eu não tinha é que achava que por direito quem deveria ter era eu.... com isso comecei a questionar outras coisas e passei a perceber que a maioria de nós são apenas marionetes que não vou deixar de ser uma tbm mas pelomenos consigo enxergar algumas das cordas agora

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  2. Quando se é, não precisa provar nada. Muito bom, Eduardo.

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  3. Muito bom meu irmão, me identifiquei com tuas ideias...não rompi totalmente com o sistema mais to melhorando dia a dia...tenho um canal no you tube e tento falar de coisa boa lá...quando puder da uma olhada. CLOVIS LEITE..que você continue sua caminhada e levando suas idéias pRa um maior número de pessoas possível, eu ja to convencido e tentando melhorar dia a dia, mas tem irmãos que estam só esperando uma idéia fora da caixa pra melhorar...paz profunda meu irmão...

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  4. Tu precisa escrever um novo livro com essas histórias. A leitura dos teus textos é sempre muito agradável. Abraços.

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  5. Quem é de verdade sabe quem é de mentira.

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  6. Obrigada pela partilha! O foco, a disciplina, a autogestão emocional necessários para "conseguir ficar calado até terminar", é, só por si, uma gigante aprendizagem para mim, grata! Muita luz! ;)

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  7. Muito bom os teus textos. Abraços! Florianópolis-SC

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  8. Eita...legal a história Marinho. Conte mais histórias suas, muito bom lelas como divertido.

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  9. Tem que publicar essas histórias algum dia.

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