domingo, 29 de novembro de 2015

O apocalipse de Bento Rodrigues

Avisados que na estrada principal havia barreiras policiais, que uma ponte havia sido derrubada, que não se chegava mais em Bento Rodrigues, fomos por uma estradinha de terra, secundária. Muito antes de chegar já se via o tamanho da onda venenosa, na marca quase horizontal no alto dos montes. Dali pra baixo era só lama, as árvores foram arrancadas, ficaram as do alto, as primeiras manchadas do vermelho-lama em seus troncos, marcando o nível da maré. Seguimos vários quilômetros pelos vales secundários, a onda havia subido, atingido inúmeras nascentes rios acima, o sentimento da gravidade nos silenciava.

Devastação. Explosão atômica. Imagens de Marte. Destruição. Morte no ar. Difícil descrever a combinação de sentimentos. Dona Edir voltava quando a gente ia. Veio com a família ver o povoado devastado, mas só de ver o vale destruído, desistiu. A família seguiu pela estradinha, ela voltou chorando. Um helicóptero dos bombeiros patrulhava o ar, passou por cima de nós com uma luz forte embaixo, fez uma volta grande e pousou do outro lado, na parte alta do povoado, onde havia algumas construções não atingidas. As cores da lama química ocupavam a paisagem dos vales todos, a perder de vista, sumindo na direção do vale do rio Doce. Avistamos Bento Rodrigues do outro lado do vale enlameado, ruínas cobertas de marrom. Lá embaixo corria um fluxo líquido avermelhado. Parecia impossível chegar na área das casas. Algumas pessoas na estrada de terra olhavam em silêncio pasmo, triste, doloroso. Passamos a cerca, descemos o vale.

O chão afundava em muitos pontos, era preciso cuidado ao pisar. Descemos até a beira da corrente vermelha, a sensação de veneno no ar. Rafael armou o tripé e começou a tomar imagens. Luísa, Kenny e eu ficamos circulando por ali, olhando, subindo, descendo, procurando sem saber o quê. Eu tirava fotos com minha maquininha. Ambiente pesado, clima opressivo. Uma catástrofe, uma calamidade pública não declarada oficialmente. Sinal do poder das mineradoras sobre o poder público. “Oficialmente”... palavra cada vez mais desmoralizada, sinônimo de mentira. Declarações públicas, mentiras deslavadas.

De repente vi do outro lado do vale, vindo da direção das ruínas, uma figura minúscula pela distância. Era um sujeito com uma foice nas costas, pernas vermelhas daquela “lama”, descendo em direção à correnteza líquida. “Ele vai atravessar”, pensei, e comecei a andar na mesma direção, pra ver onde. Ele continuou descendo até sumir numa parte profunda atrás de uma curva e não pude ver o local exato, mas ele subiu na minha direção e pudemos conversar. Era Danilo, nascera e crescera ali, tinha 40 anos, agora estava morando em Santa Rita. Mas tinha parentes na área e acabara de resgatar alguns documentos sujos. Nosso grupo se reuniu em torno dele. O irmão dele apareceu, Altiéris. Ele não foi perturbado pela segurança da mineradora? “Eu conheço cada caminho, cada trilha disso aqui, eles não têm como me impedir, pode fechar tudo que eu entro”.

Ele tinha passado por um tronco ali embaixo, descemos também, ele resolveu voltar e seu irmão foi conosco. Atravessamos, subimos a encosta e alcançamos o que restou da estrada que chegava a Bento Rodrigues. Era uma única curva, demos de cara com a paisagem da devastação do povoado desolado, coberto de lama. Impacto. Alguns cachorros latiram, estavam defendendo suas “casas”, sem entender a ausência das famílias, esperando uma volta impossível. As famílias certamente davam seus animais por mortos.

Sentimento denso andar entre os escombros do povoado, com todas as marcas de vida, de cotidiano e até da fuga apressada. Havia panelas nos fogões, cimentadas pelo material seco, pastas de dentes e xampus colados no teto, carros sobre e dentro de casas, geladeiras fedendo a comida podre, viradas, nos altos das casas, uma revirada geral em tudo.

Ao passar por uma moita, ouvi barulho. Galinhas. Ironia de vida e morte, encontramos uma galinha chocando seus ovos dentro de um cesto. Perto, um saco de milho, abri peguei uns punhados, joguei perto da galinha, ele não se mexia, estava choca. Ficou tensa com nossa presença, saímos logo de perto. Danilo, desolado, deu um depoimento emocionado, falou da vida na comunidade, “ali tinha uma pracinha, as crianças brincavam ali todo dia”, “ali ficava a casa da minha irmã, não ficou uma telha, nada, não dá pra saber que tinha uma casa ali... melhor ela nem vir aqui pra ver isso...”

Alguns lugares tinham um cheiro insuportável de putrefação, de repente percebi ao longe uma caminhonete parada na encosta da montanha, nos observando. Avisei os outros. Os irmãos já tinham ido embora, nós estávamos um bom tempo colhendo o que queríamos, demos por encerrado e tomamos o caminho de volta. Rafael e Kenny iam na frente, ouvimos o barulho do motor. “Os seguranças tão vindo aí”. Atrasei o passo, o material que tava com o Rafa era importante pra nós. Os caras chegaram por trás, caminhonete da Samarco, “que que cê tá arrumando aí?” Parei, “nada, tava só olhando...” Rafa percebeu o jogo, apressou o passo, disse a Kenny “nem olha pra trás, vambora”. Eles já tavam na área devastada, desceram numa fenda e sumiram de vista. Os caras tiveram que se contentar comigo. Um deles exibia um trinta e oito de tambor na mão... nooooffa, que imprefionante... veio falando a papagaiada genérica, área proibida, tava tendo saque, que que tem nessa mochila, mostrei, ele viu que não tinha nada alheio, falou em perigo de vida, eu podia morrer e dar trabalho pra eles, eu tava muito velho pra me arriscar daquele jeito... eu não respondi mais nada, só tá certo, tá certo, ele gastou tudo o que tinha pra dizer e se calou. Rafa e Kenny apareceram lá longe, do outro lado do vale, a câmera e o tripé a salvo. Os caras viraram de costas pra mim, olhando impotentes. Segui andando, não olhei mais, eles não tentaram me impedir. Já tinham feito sua figura, pareceram um pouco desconcertados com a minha calma e não tinham mais nada pra fazer.

Segui meu caminho, desci o vale, atravessei os troncos sobre a química empesteada, reencontrei Kennyo e Rafael. Luísa tinha voltado pra Kombi, não havia atravessado, baqueada em seus sentimentos com a paisagem desolada, bastava ver de longe, sentir o ar pesado de química e sofrimento, o astral de apocalipse. "Senti em mim a dor das pessoas", ela disse depois.

Deixamos a kombi longe e seguimos a pé. A curva da estrada foi coberta com os detritos em lama.

Chegando em Bento Rodrigues. As estradas estavam bloqueadas.

Nascendo tóxico. Uma camada dura por cima, parecia mica.

Descendo pro vale do rio Doce... aqui paramos a kombi e seguimos a pé.

O contraste entre vida e morte. Lá no fundo, o nível alcançado pela maré dos rejeitos da mineração.

Visto do outro lado do vale, era uma cidade fantasma, vítima de uma explosão atômica.

A cor da lama, a lama na galocha, a galocha tava furada...

Não dá pra sentir o cheiro, o clima, o peso do ar.

A nossa ponte. Danilo e Kenny, antes de atravessar.
Segue o caminho pro vale do rio Doce...

A aridez da alma dos que dispõem dos poderes sobre a sociedade... deve ser pior que isso.

A força da lama levantou muita coisa, como se fosse isopor, cortiça.
O surreal se torna real quando se vê de perto.

Heróica resistência inútil. O lugar será inabitável.

Hoje não é preciso lavar as panelas.
A delicadeza em meio à brutalidade.

Simbolismo puro.

A força da corrente levantou os fogões, os fogões levantaram o telhado.

A galinha chocava. Dá pra ver um ovo embaixo dela.

Os cães defendem suas casas, esperando uma volta que não virá...
O sentimento é de apocalipse.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Preciso de grana pra ir lá. O vale do rio Doce foi assassinado. É preciso contar essa história por outros ângulos.


A maior bacia hidrográfica do sudeste brasileiro, o Vale do Rio Doce, morreu. Desgraçadamente assassinada, em toda a sua vida, fauna e flora, com a lama química da ganância, do egoísmo, da desumanidade.

No princípio de outubro, partimos de Niterói, fizemos um pico em Sampa, daí a Belorizonte onde Rafael Lage entrou na kombi e fomos à Chapada Diamantina, ao Vale do Capão, também a Lençóis e a Cachoeira de São Félix, expondo, vendendo, conversando, causando pensamentos e reflexões. Foram mais de quatro mil quilômetros ao todo, incluindo uns 700 de estradas de terra. Celestina, a kombi, velha e valente senhora, teve uns poucos problemas mas cumpriu sua função. 




Na última etapa, saindo de Beagá pela BR-040, soubemos do estouro da barragem, ainda sem conhecer as dimensões do desastre, e seguimos pro Rio. O Rafa, mais bem informado, partiu pra lá. Eu soube pelas postagens, me informei e percebi a gravidade da tragédia anunciada, há décadas, pelos movimentos sociais da área. A mídia, como sempre, não divulgava nada que prejudicasse as mineradoras. O chamado "poder público" estava acorrentado por financiamentos de campanha, bancadas legislativas, interferências administrativas inclusive em organismos de fiscalização.

Eu teria ido pra lá, mas a viatura tá depauperada, precisando de uma revisão geral com ajustes e regulagens, a grana da viagem só cobriu a viagem e acabou, o documento do detran tá atrasado e eu tomei uma multa por isso - que espero arrumar a grana pra pagar no próximo fim de semana, a multa, a vistoria, o documento e o mecânico. Não acredito que dê. Por isso resolvi fazer essa postagem. É um apelo. 

Conversei com o Rafa, que tá na área e só pode ir até Governador Valadares e terá que voltar a Belorizonte. Ele já tá fazendo material lá, vídeos, fotos e entrevistas. Aqui a parte definitiva do papo.

"Esse troço merecia mesmo que a gente acompanhasse desde a nascente, passando pelas represas, acompanhando a lama e a destruição até o litoral do Espírito Santo. O caminho deve ser riquíssimo em histórias que não se contam por aí... No final das contas, estaríamos fazendo um trampo de desvelamento da realidade, através desse acontecimento nefasto. Desmascarar essa farsa duzinferno, mostrar o poder real sobre toda a sociedade, a razão estrutural de todas as mazelas sociais. Todas, cumpade." 

"É o momento. Esse é um grande momento. O rio Doce morreu, cara, a quinta bacia hidrográfica do Brasil.  Você tinha que vir aqui." Ele não é de falar muito. Mas fala tudo com pouco.

"Tivesse grana e já tinha ido, cumpade", eu completei.

Quem quiser e puder comprar meus desenhos, pra arrumar essa grana, já tá valendo. Preciso vender muitos, muitos desenhos. Quem comprar dois, leva um fanzine, quem comprar três, leva dois fanzines e um livrinho à escolha. Cinco desenhos levam de brinde os cinco livrinhos e os dois zines. Dez desenhos dão direito a mais um desenho de graça, mais os cinco livrinhos. Quem for encomendar, me lembra dos brindes. O contato é pelo arteutil.em@gmail.com, e a parada é feita por depósito bancário e remessa por correio.

Gente, tá chegando a época em que todo mundo dá presente. Um desenho pra por na parede é um presente de bom gosto, basta levar numa vidraçaria e, sem moldura, por o vidro na frente, a placa de madeira atrás e um pendurador, fica barato e bonito. A moldura encarece e não é necessária.

Não vou poder expor pro natal, época de boas vendas, quando pago as contas inevitáveis de fim de ano. Mas esse evento diminuiu a importância dos meus problemas. O povo Krenak vive nesse vale e tem como centro da sua vida o rio Doce. Milhares e milhares de ribeirinhos, povoados que viviam da pesca e das atividades ligadas ao rio, cidades como Governador Valadares e São Mateus, entre tantas, tantas outras. Agora o centro da vida se tornou a morte. Falta água de beber, falta condição de sobreviver, falta vida. Tá tudo morto e morrendo por lá. E lá é aqui.

O Rafael é cineasta, pretendemos gravar e produzir um documentário, ainda que rápido, contando as histórias que a mídia não vai contar, ouvindo os sem voz, os que vivem no vale, mostrando o que o controle da sociedade pelos interesses econômicos, pela ambição desmedida dos mega-empresários da mineração (como de qualquer outra área), o desprezo pelas populações e pelas legislações, promiscuídos com os poderes públicos sequestrados, bancadas legislativas e prefeituras compradas, dominadas, intimidadas, o que isso tudo é capaz de fazer. Mostrando a conseqüência não só da promiscuidade e cumplicidade público-privada, mas da cegueira generalizada, da criminalidade dos organismos de comunicação, da traição cotidiana do punhado "de cima" pelas multidões que os sustentam em seu chafurdar no luxo e na ostentação parasitária e aboletada nos poderes públicos.

Seguem mais algumas fotos da guerreira Celestina, que vai encarar mais essa.

Sinalizando o acidente. Não houve feridos.


Carga de sementes de algodão. Estrela cadente flagrada na quina da carroceria virada.
Ninguém é obrigado a dormir dentro. 




terça-feira, 20 de outubro de 2015

Paciência curta

Belorizonte. Eu subia a Pernambuco na direção da Savassi. A cabeça pesava. Vinha do dentista, duas extrações e a colocação de um pino pra implante – foi preciso furar o osso com uma broca – com um monte de anestesia . E o efeito pouco a pouco passava, a sensibilidade voltando com dor, a cabeça tonteando. “Evita falar”, disse o Edson, “evita andar”. Falar, tudo bem, eu não ia expor, mesmo. Mas era impossível não andar.  “Se fosse um funcionário de alguma empresa, eu te dava um atestado”. E ainda disse ao Pepe, “cuida dele”. Pepe estava indo expor, incomodou a idéia de dar trabalho, atrasar o lado dele e, na primeira esquina, desviei meu rumo.

As anestesias parece que saíam da boca e iam pra cabeça. Eu estava zonzando, cuspindo sangue a cada dez metros. “Preciso de gelo, de um açaí”. A rua se inclinava mais e eu diminuí o passo. Cambaleava. Não queria parar, a coisa tava num crescendo e parar podia se tornar um problema. Diminuí mais o passo e segui subindo. Virei a esquina e a rua era plana, no final do quarteirão achei uma pequena casa de sucos, entrei, sentei, pedi ao único funcionário o maior açaí que ele tivesse. Não havia outro freguês, só eu e o rapaz.  No momento em que ele me entregou a tigela cheia, entram o dono e um representante de fornecedor ou coisa parecida, com uma pastinha. Conversavam alto e o assunto era Dilma, petê, corrupção, panelaço, impítiman, essas teleguiações, essas superficialidades da alienação política classe média, mentes lavadas e enxaguadas pela mídia. Meti a colher cheia na boca, coloquei em cima da dor, fechei os olhos - fica quieto, pensei, não fala nada. Enfiava colheradas repetidas na boca, os caras não paravam de falar merda. Doidão das anestesias, cheio de dor, enchendo a boca de açaí e ouvindo disparate em cima de disparate, repetidos lugares comuns da televisão e dos jornais comerciais. É automática a ligação entre todo o sofrimento, abandono, miséria, ignorância, entre esses crimes sociais e aquela estupidez burra, imbecil, alienada, raivosa, obsessiva e totalmente teleguiada.

Eu não tava no meu normal. De repente levantei o braço entre os dois, “cês ficaí falando de Dilma, de Aécio, de petê, de corrupção, do caralho, até parece que essas figuras mandam alguma coisa. Quem manda nessa porra é banqueiro, é mega empresário, não tem governo, tem gerência, quem manda mesmo não passa por eleição nem aparece na televisão!” Os caras me olharam espantados, o dono da loja ainda tentou reagir, “mas a corrupção da Petrobrás...” e eu não deixei ele continuar, “a corrupção começou agora, né, petê que inventou, antes não existia...” os olhos bem nos olhos dele, que desviou o olhar dizendo “é... o ser humano é corrupto...” Mas a dor me fazia implacável, tanto a da boca quanto a da realidade que aquela mentalidade era fabricada pra não ver. “Se tu só conhece corrupto, azar seu, conheço um montão de gente honesta, que não tá nessa política aí, que nem é política de verdade, porque os donos não querem, não interessa a eles, se um entrar fica isolado lá dentro, não passa um projeto que seja! Tu tá é vendo muita televisão, fica falando aí na superfície, pensa que esses cara manda alguma coisa, isso é televisão que faz, papo de otário. Que mané Dilma é o caralho! Eu não voto desde 89, que não tô aí presse deboche, vai todo mundo de carneirinho votar pensando que pode mudar alguma coisa. Depois vai falar merda, teleguiado, longe da realidade como quer a televisão. Boiada! Cambada de mané! Enquanto tem criança, velho, gente abandonada por conta da ambição desses filadaputa que faz a gente de otário!” Eu olhava com raiva, falava alto e gesticulando, apontando o dedo na cara do sujeito. Uma parte de mim tentava me conter, mas o controle tava entorpecido. Os caras silenciaram, eu pude me concentrar na tigela e meter a cara no açaí, puto da minha vida. Então eu tô aqui com dor, zonzo, cuspindo sangue, vêm esses babacas encher minha orelha de merda, ora vai sifuder. Até eu sair não se falou mais nada na loja de sucos.

Slam Resistência, em Sampa e no mundo, é resistência à tirania do sistema social vigente... ainda.

FILOSOFIA DE RUA                                                                                                        

SABOTAGEM SEM MASSAGEM NA MENSAGEM
Fotografia: Sérgio Silva                                                                                                                                                                                                                                                                                          Nem o vento cortante da noite fria de segunda-feira (05/10) na Praça Roosevelt em São Paulo, foi capaz de esfriar nossos corações e mentes.Slam Resistência recebe Eduardo Marinho (RJ).            
Eduardo Marinho, foto: Sérgio Silva
A edição do mês de Outubro do Slam Resistência, realizado sempre na primeira segunda-feira de cada mês, recebeu, além do belo público e dos diversos poetas da casa, um convidado especial que dispensa a cerimônia de apresentação e, por si só, faz das suas palavras o elo de ligação entre a consciência do “observar e absorver”.
Eduardo Marinho foi o nosso artista convidado com a proposta de dialogar com o público presente sobre filosofia de rua, aquela em que a vivência torna-se uma experiência para além dos muros das instituições de educação tradicionais dentro do sistema capitalista.
Educação foi um dos temas abordados pelo artista que, além da critica ao modelo de educação existente, também falou sobre a sua experiência como membro militar do exército e da dificuldade que sua família encontrou em aceitar sua saída da universidade em troca das ruas do Rio de Janeiro.
Eduardo não faz a linha “profeta” ou “missionário”, apenas apresenta sua história de vida com os motivos que o levaram a optar pela rua e a experiência que esta vivência lhe devolve dia após dia.
O depoimento do filósofo das ruas pode ser conferido na página do Slam Resistência no FB.
https://www.facebook.com/slamresistencia/videos/918068558275864/?fref=nf
Conheça aqui o trabalho do Eduardo Marinho , “arteiro e escrivinhador” das ruas do Rio de Janeiro. A seguir, o registro do que rolou entre uma leitura e outra, e outra, e outra…

Eduardo Marinho apresentando o seu trabalho em artes plásticas
Um dos trabalhos de Eduardo Marinho


O fim é apenas o começo

sábado, 10 de outubro de 2015

Relatório da ONU já vem tarde.




Caio Castor foi preso em São Paulo. Ele filmava a manifestação dos estudantes do ensino médio que protestavam contra o fechamento das escolas. Paro pra pensar. Estudantes protestam contra um governo que está fechando escolas. O governo envia a polícia pra espancar, prender os mais ativos, tornar o ar irrespirável pra dispersar a multidão de jovens e adolescentes. Eles devem assistir à destruição das suas poucas possibilidades na vida sem reclamar. Devem se conformar a entulhar salas de aula de outras escolas ou deixar a escola pra lá e ir pra vida que a sociedade apresenta aos desqualificados, em todas as suas variantes. Um Estado criminoso, uma sociedade criminosa, um poder econômico criminoso controlando a estrutura social.

A coisa é tão descarada que se pesquisar na segurança pública se vê aumento na construção de presídios, com a privatização do sistema carcerário comendo solta. Ao mesmo tempo em que se fecham escolas.

Dá pra ligar as pontas. Preso vai dar lucro. O papo mentiroso, como sempre, é que melhorarão as condições, haverá programas de recuperação e toda uma série de fachadas cenográficas, médicos, psicólogos, tudo pro bem estar dos encarcerados. A  classe média apoiará em peso, teleguiada como sempre, como sempre centrada no seu próprio umbigo, cega pelos interesses imediatos às conseqüências de que será vítima. Os mais pobres estarão divididos entre os sabotados em instrução e senso crítico que se deixam levar pela mentalidade dos patrões e os que, intuitivamente, perceberão a armadilha, a nova forma de escravidão sendo armada, numa sociedade dirigida pela mentalidade empresarial – lucro máximo e custo mínimo. A seqüência é previsível, policiais propinados prendendo no atacado pelas periferias, julgamentos sumários e implacáveis, aqui e ali haverá se descobrirá um juiz subornado por empresários do sistema carcerário. A proposta é essa aí, enfeitada, travestida de outra coisa pela publicidade, em sua atividade criminosa de mentir ao público. Lembro a campanha insana pela diminuição da maioridade penal. Jovens pobres lotarão os presídios, trabalho alugado em troca de  diminuição de sentença. A estratégia aparece, clara.  A estrutura social é transparente em seus efeitos.

Em todos os setores, os mesmos interesses determinam, dominam, influenciam, direcionam, controlam, a partir do poder dito político, governantes e legisladores financiados, servidores de um punhado de podres de ricos que comandam através das elites locais subalternizadas e traidoras dos povos. O modelo da educação (ignorantizador no público, enquadrador no privado), comunicações sob controle mega-empresarial, setores estratégicos privatizados, forças de segurança claramente atiradas contra as populações pobres, vítimas de crimes de Estado, o genocídio de jovens e adolescentes nas periferias, tudo é parte da estrutura social montada pra funcionar assim mesmo, em todos os detalhes. Um punhado de seres desumanos impõe a ignorância e a desinformação, a alienação, a inconsciência, o consumismo, a superficialização do pensamento e do sentimento. E o controle do Estado e das políticas públicas.

Muitos dirão que é viagem minha, alucinação, catastrofismo, teoria da conspiração. Mas o que faço é ler a realidade à minha volta, consciente de que as informações mais facilmente disponíveis são falsas, distorcedoras, mentirosas, regidas por interesses financeiros, banqueiros e empresariais. Estamos em plena ditadura dos podres de ricos, criada com a proclamação da república. A estrutura permanece a mesma da monarquia, com a diferença de não ser preciso sangue azul, pedigree, pra estar no topo da pirâmide, entre os grandes parasitas. E estamos presos, por correntes fabricadas com mentiras, a uma vida sem sentido.

Taí o tal relatório. Sintomático, mostra a realidade que a mídia esconde.

http://nacoesunidas.org/comite-da-onu-sobre-os-diretos-das-criancas-critica-violencia-policial-e-discriminacao-estrutural-no-brasil/

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Na Bahia...

Mais de dois mil quilômetros pra chegar no Capão, a maior parte na noite.
Saímos em direção São Paulo, fomos hospedados na Casa Amarela, ocupação coletivista na Consolação, expusemos na Avenida Paulista de dia, na segunda, fiz uma fala no evento do Slam Resistência, na Praça Roosevelt à noite e partimos na madrugada. Chegamos em Belorizonte de manhã, ficamos três horas na casa do Rafael, que se incorporou ao grupo pra vir ao Vale do Capão, onde tá morando.
Partimos às seis da tarde, passamos a noite na estrada, alta manhã cruzamos a fronteira de Minas com Bahia, passamos Vitória da Conquista entrando nas estradas em direção à Chapada. Trezentos km depois tivemos que andar 20 km a mais pra arrumar combustível. Na segunda madrugada encaramos 90 km de estradas de terra e chegamos duas da manhã no Capão.
Amanhecendo, no norte de Minas.
Vamos ao festival de Lençóis e passaremos umas semanas por aqui. Devemos expor em cidades próximas, ou a chamados mais distantes que se disponham a custear o combustível de Celestina, a kombi, pra conversar, falar como andam me chamando - pra passar meus pontos de vista sobre as obviedades mentirosas que impregnam a vida de todo mundo, infernizando, angustiando, frustrando, adoecendo. Levamos material pra expor, desenhos, livrinhos, brincos, anéis, trabalhos meus, do Pepe e do Douglas Outro Preto.
Na fronteira Minas - Bahia, a placa de sinalização é menos expressiva que a da churrascaria, uma das infinitas demonstrações da situação de sujeição do estado ao poder empresarial, a partir dos bancos e mega-empresas, se estendendo pelas associações patronais. Sempre os exploradores das populações, usando suas marionetes "políticas" pra enganar o povo. Celestina serviu pra biombar parte da placa. Rafael deitado, Douglas Outro Preto, Pepe e eu.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Vídeo recebido hoje, bom no serviço acendedor - "Abrindo Mentes #01 - Funcionamento do sistema"

Recebi essa arrumação em vídeo de Emmanuel Boeno. É de 2013, não lembro se assisti. Mas vale ver de novo, espalhar de novo, causar reflexões e sentimentos no campo do desenvolvimento humano.

Muito me honra abrir um vídeo que se encerra com o magistral discurso de Chaplin, que ecoa na alma da humanidade, senão clara pelo menos em potencial, no embrião pronto a brotar, ao contrário do que nos faz crer todo um sistema social criado pra nos convencer de mentiras. Ver a realidade como ela é, com seus reflexos em nós mesmos, impregnados de valores falsos, visões distorcidas, sentimentos e comportamentos condicionados em maior ou menor grau, é a base da verdadeira mudança.

Mudança de valores, de comportamentos, mudança de objetivos, de desejos, essas são as mudanças que mudam a vida e mudarão o mundo.

Preciso marcar minha discordância com o título. Não tenho a pretensão de "abrir mentes" e não me considero conhecedor do "funcionamento do sistema" além dos seus resultados óbvios. É o que me empenho em dizer através do meu trabalho, pontos de vista que vou formando, passíveis de erros mas prudentes pra evitá-los. Ninguém abre a mente de ninguém. Cada um abre a sua, por vontade própria, nos momentos próprios, quando as condições favorecem. Posso no máximo oferecer minhas visões e opiniões, minhas opções e meus motivos, no sentido de servirem à reflexão.

No mais o vídeo me tocou o sentimento. Agradeço ao Emmanuel. É uma ótima peça no trabalho de acendimento de consciências.



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Pulverizar as comunicações

A democracia esconde a tirania. O luxo esconde a dependência. A ostentação esconde a fraqueza. A arrogância esconde a insegurança, a agressividade esconde o medo. A riqueza esconde a pobreza, a sociedade esconde a miséria que produz. Mas ela escorre pelas sarjetas, ocupa as sombras e rosna.

Os esconderijos estão aparecendo. A grande blindagem das informações apresenta vazamentos. Em todas as partes, movimentos de formigas com pés de cabra trabalham na ampliação dos furos. São poucos ainda, diante da estrutura, mas são focos que contaminam, acordam e abrem caminhos.

As comunicações são uma área estratégica da sociedade. É preciso pulverizar, abrir o espaço, Milhares, milhões de comunicadores precisam se comunicar nas periferias, em todo lado, em rádios, jornais, tevês comunitárias, públicas, de escolas, associações, sindicatos, centros culturais, cooperativas, de qualquer tipo. Nada de disputar hegemonia. É preciso destruir qualquer hegemonia.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Estrutura violenta, violência geral


A estrutura da sociedade é construída de forma extremamente violenta com a base, com a maioria da população. A base é o alicerce e é preciso manter o alicerce imóvel pra construção se manter. Desde a sabotagem do ensino público (não é possível crer em desinteresse ou incompetência quando os melhores e mais bem intencionados são perseguidos e expulsos e os melhores planos educacionais são feitos em pedacinhos, difamados e destruídos), passando pelo desprezo do sistema de saúde, pelo massacre midiático-publicitário permanente, pela desinformação dos meios de comunicação, pelo abandono das vias públicas, pela tortura nos transportes públicos, pela exploração desenfreada nos trabalhos ditos formais e chegando na brutalidade policial cotidiana, no  genocídio cotidiano, no clima de guerra, de insegurança total nas periferias, com sobras evidentes nos bairros mais atendidos e mesmo nos privilegiados. É preciso perceber e reconhecer esta situação pra chegar às raízes da violência generalizada, em explosões pontuais e momentâneas, forças de segurança prontas pra abafar rebeliões, ou seja, explosões de revolta nas coletividades contra os sacrifícios impostos pelo Estado, sem nenhuma contrapartida, ao contrário, sob ameaça.

Quase toda a criminalidade tem origem na criminalidade estrutural. A sociedade, o Estado, as instituições descumprem descarada e rotineiramente a Constituição Federal, a Carta Magna, o símbolo máximo de uma sociedade dita civilizada. Crianças nascem já predestinadas à miséria ou ao crime, aos milhares, aos milhões, e os ideólogos sociais propõem endurecer medidas penais. Em vez de fechar a fonte, respeitando os direitos fundamentais da população, constroem-se presídios. É parte do mesmo plano. Produzir a criminalidade e lucrar com ela das mais variadas formas. Os meios de comunicação alardeiam a necessidade da redução da idade penal sem levar em conta um sistema carcerário hediondo, abarrotado, verdadeiros infernos. Fala-se em privatizar o sistema. Presídios são privatizados, viram empresas, cada preso é uma grana. O sistema de suborno aumenta a quantidade de presos, desde o agente que prende até o juiz que condena. A miséria, a ignorância, a instigação ao consumo, o valor social invertido garantem a produção de matéria prima pro lucro de poucos – excluídos, sabotados, violentados sociais.

O Estado, seqüestrado pelos mega-poderes banqueiro-empresariais, comete crimes graves contra sua população, com o incentivo da mídia.

“A pobreza mata muito mais pessoas do que todas as guerras da história, mais pessoas que todos os assassinos da história, mais que todos os suicídios na história. A violência estrutural não apenas mata mais pessoas do que toda a violência comportamental junta, como também é a principal causa da violência comportamental.” James Gilligan


É preciso parar de procurar culpados e construir caminhos. Há focos brotando em todo lado, pelas periferias numerosas, resgate de auto-estima,  desenvolvimento cultural independente, base de novas independências. Brotando, contaminando, sensibilizando, conscientizando, se ligando, formando redes de informação e de trocas. E da lama brotam os lírios, da merda se faz adubo pro que é novo crescer, iluminar e libertar.

Traição como lição


Precisei ser traído várias vezes pra perceber o que já percebia mas não me dava conta, a freqüência pessoal. Como uma onda de rádio, as pessoas emitem uma freqüência pessoal, única, intransferível. A traição dói mais quando o afeto está envolvido na confiança. E a confiança precisa da intuição, do discernimento, da percepção dessa freqüência. Trabalho interno.

A cada traição, cada engano, sentia mais tristeza que revolta. E a tristeza trazia reflexão. Afinal, antes da traição, é preciso confiar. Esse é o meu erro, onde posso trabalhar. O erro do outro foi uma conseqüência e dele eu não posso cuidar - a vida cuida. A revolta me leva ao confronto, à vingança e à perda da oportunidade de aprender. Eu me perguntava como é que poderia ter percebido que a figura não era confiável, antes. Puxava na memória desde o início da relação, conversas, observações, comentários, atitudes, procurava sinais e eles apareciam, sinais de caráter, sinais da personalidade, da visão de mundo, como avisos que me foram dados e eu não percebi. Então eram lições e assim eu as tomava. Traidores foram professores. E as lições, úteis na seqüência da vida. Vida segue, novas situações se apresentam, de repente cê percebe, "epa, olha um sinal". Sabedoria leva sentimento.

Sem saber, eu trabalhava a capacidade de percepção da freqüência pessoal. A intuição e o sentir foram se impondo e a razão desceu do pedestal em que a estrutura social a colocou, muito intencionalmente. A razão social justifica a barbárie e responsabiliza as vítimas. O sentimento capta a freqüência pessoal, a vibração da alma, que parte do corpo abstrato, do temperamento, da visão de mundo, do caráter, dos desejos, objetivos, afetos e desafetos, de tanta coisa que nem percebemos. 

O que sinto não se opõe  ao que penso e vice-versa, procuro compor, harmonizar sentimento, intuição, razão, equilibrar o abstrato – alma ou espírito – pra facilitar as relações, as decisões e atitudes. Não pretendo a harmonia plena, até porque não a conheço, mas sua busca, persistente e permanente, num caminho de superações infinito, até porque não conheço o fim.

Sem depressão ou revolta, em cada queda há lições e em cada dor, ensinamentos; em cada perda há um ganho possível e em cada crise, oportunidades. Escolhas fazem o proveito ou o desperdício.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Eduardo Galeano... pequena compilação.

Minha homenagem tardia à despedida do meu xará Galeano. Gracias por haber vivido. Que siga su bueno camiño en outras dimensões.

sábado, 16 de maio de 2015

Viagem ao sul... rolando.

Nas estradas do sul estava frio e lindo.


Saímos meio dia do Rio, fomos pela Dutra e Régis Bittencourt, dormimos às três da manhã em Curitiba, num posto de abastecimento. Foi difícil achar gás combustível. Às oito saímos de Curitiba, fomos até a madrugada, já na gasolina, quebrando na estrada de Ijuí, no RS, estradinha estreita de mais estreito acostamento. Dormimos dentro, sacudindo a cada passagem de carreta a um palmo da kombi. Manhã seguinte, mais uma aula de mecânica e seguimos viagem. Não era nada demais, apenas velas queimadas e falta de combustível. Mas gastamos o dia, partimos tarde e encaramos noite alta, pra chegar a Santiago por uma estradinha ainda mais deserta e toda esburacada. Não havia um posto nos cem quilômetros e o tanque ia abaixo da reserva quando entramos na cidade. Eu já contava com uma parada a mais na estrada, Pepe e eu respiramos quando vimos o posto, esperávamos a qualquer momento o motor parar, havia uns quinze quilômetros no escuro da estrada.
Depois da proveitosa estadia em Santiago, onde pudemos descansar por inteiro num hotel, partimos pra Santa Maria, onde dormimos uma noite na casa nove, depois de um sarau bueno e de uns vinhos ótimos, e seguimos pra Porto Alegre. Há histórias nesse caminho que tornariam esse texto uma enormidade. Numa das madrugadas, em Porto Alegre, fomos guiados por um carro de polícia por várias ruas, perdidos, até a rua que procurávamos. Não pedi nada, apenas informações a um segurança numa casa noturna que ficou satisfeito comigo por uma atitude casual e parou um carro patrulha, mandando que nos levassem ao lugar que ele tentava me explicar, com tantos detalhes que se perdia a explicação. Ele era sargento, fazendo um bico de segurança. Foi engraçado seguir, a distância segura, um carro em patrulhamento, por várias ruas, até a Cristóvão Colombo, onde estávamos. Mais engraçado ainda era o meu estado esse tempo todo.
Domingo vamos ao Sarau no Sarandi, segunda arrumamos a kombi, terça seguimos pra Santa Maria.
Aula de mecânica ao amanhecer do dia. A noite foi fria, acordei cedo e parti pra dentro.



O defeito não era na frente. Troquei a bomba de gasolina - antes nem sabia que no motor tem uma bomba de gasolina. Troquei também a bobina de ignição. A aula foi completada com a interferência de um mecânico de verdade. O problema começou por falta de combustível. Certo constrangimento. Mas tivemos que trocar as velas, que estavam queimadas. Pelo menos não era só falta de combustível.

Primeira parada, Santiago. Esse é o bosque da URI.

Na falta de som decente - só dá pra ouvir o rádio em baixa velocidade - assovio.

Todas as fotos são do Pepe (Julio Jaen Higino, el buda peruano)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Inferno Social

foto pescada de Hugo Pontes, no feicebuque, com o comentário "um pouco sobre o tal sistema que pretende 'ressocializar' os jovens". 

 Todas as promessas do nosso sistema social, no que diz respeito às suas funções básicas constitucionais, são falsas.

O sistema prisional é produtor de monstros - destruídos em sua sensibilidade humana -, que irão infernizar a sociedade e bater de frente com monstros - destruídos em sua sensibilidade humana - produzidos pelas forças de segurança do Estado.

Constróem-se mais cadeias pra "conter a criminalidade", mas não se procura a fonte, a origem de tanta criminalidade. Na miséria, na pobreza, na exploração extrema do trabalho com salários insuficientes, não se fala, não se pensa, não se percebe, "vai pra Cuba", dizem os idiotas prisioneiros dos seus condomínios e das suas bolhas, apavorados com o mundo "lá fora".

As causas são fáceis demais de se ver, como seria fácil demais resolver. Se os artigos constitucionais fossem prioridade, apenas isso resolveria. Há condições, tecnologia, transportes, conhecimentos, produção, grana - relativamente pouca - pra acabar com miséria, ignorância, alienação, desatendimento, abandono, pra acabar com essas vergonhas na sociedade.

A principal falta que o povo tem é de respeito. Se o Estado respeitar o povo, a sociedade se harmoniza, supera essas situações primárias que nos prendem ao passado e não nos deixam seguir adiante. Mas seqüestrado como está pelos poderes econômicos, o Estado viola sua lei hipocritamente chamada "máxima", sua constituição, rouba direitos da população pra gerar privilégios pra uma minoriazinha insignificante no contexto social. Encastelados no topo do poder, controlando dali todo o funcionamento da estrutura, com a cumplicidade das marionetes políticas, de altos cargos na "república", de administradores, legisladores, juristas, régiamente pagos, ou propinados, esses vampiros da humanidade espremem o sangue dos povos.

A guerra das empresas contra os povos será ganha pelas empresas enquanto as populações não tomarem consciência de que são enganadas, ignorantizadas, alienadas e condicionadas a comportamentos e valores que constróem e mantêm a estrutura social. Não é à toa que o ensino é inexistente pras camadas mais pobres e enquadrador e violento pras outras camadas. Não é à toa que as comunicações são dominadas por empresas privadas. Não é à toa que se vê o mundo como uma arena competitiva onde é cada um por si e é preciso vencer a qualquer custo. É mentira em cima de mentira pra manter o mundo como é. Muitos sentem culpa por não se adequarem a um mundo inadequável, pensam que têm alguma coisa errada, ou a menos. Faz parte das induções.

Agora investe-se em cadeias. Leitura evidente, sem comentários. A idéia genial é privatizar o sistema prisional, que beleza, haverá incentivos às prisões, planos de metas, prêmios por quantidade de presos, juízes implacáveis ganharão cruzeiros marítimos com suas famílias a cada fim de ano. Cada preso vale uma grana e, de quebra, pode-se alugar o trabalho escravo. O inferno social resultante não afetará os que decidem, em suas fortalezas guardadas por empresas de segurança, seus carros blindados, jatos e ilhas.


Dá uma olhada de novo na foto. Essas são as salas de aula do inferno social. 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

DÍVIDA PÚBLICA - assunto proibido ao público, que é quem paga.



Uma das estratégias de dominação usadas pelos bancos e mega-empresas corporativas que dominam o império estadunidense foi a imposição de dívidas impagáveis. Isso dá poderes sobre os governos, submete os povos à economia ditada de fora, transforma a política num teatro de marionetes sob controle dos mega-parasitas mundiais, mantém a miséria, a ignorância e a criminalidade que infernizam a vida das populações. Não é um modelo aplicado apenas ao Brasil, mas a todos os países em que esses poderes se impuseram - na América Latina, todos os países foram submetidos. Poucos, como o Equador, conseguiram forças internas pra investigar essa dívida criminosa. Ali, onde Maria Lucia Fattorelli foi convidada a participar da auditoria da dívida, se descobriu que mais de 90% da dívida era ilegal. Essa parte foi simplesmente anulada. E nada foi divulgado pelas comunicações dominadas por interesses empresariais, pela mídia privada. Um silêncio retumbante esconde o assunto.



Todos os anos o orçamento nacional é dilapidado em quase metade, coisa de trilhão de reais, no pagamento de JUROS e AMORTIZAÇÕES, sem diminuir a dívida, pra que no ano seguinte se faça a mesma sangria. O resultado vemos na "qualidade" dos serviços públicos, cujas primeiras vítimas são a educação e a saúde, estrategicamente favorecendo a ignorância, a alienação, os planos de saúde e a medicina lucrativa. O livro "Confissões de um assassino econômico", de John Perkins, revela a estratégia de dominação através do endividamento dos países. O autor trabalhou nessa estratégia e, com problemas de consciência diante da deterioração social que viu com o passar dos anos, como conseqüência, escreveu suas confissões.



Nesse filme aparece uma porrada desses esquerdistas mal falados pela mídia - quando são falados, porque de preferência são ignorados e omitidos. São carimbados como malditos, deliberadamente antipatizados. Muitos deles ajudam inconscientemente, com arrogância doutrinária, apegados às suas cartilhas revolucionárias, teorias européias de revolução que não levam em conta nosso valor, nossa formação e nossas referências. Mas as informações que eles trazem são valiosas para o esclarecimento a respeito da nossa estrutura social, na tomada necessária de consciência da realidade pra que se possa perceber a dominação, não só sobre a sociedade como um todo, mas no pensamento de cada um, nos valores, na visão de mundo, nos objetivos de vida, nos desejos, no comportamento geral.



Informações mais que necessárias, fundamentais na formação de opinião e, por isso mesmo, escondidas pelo sistema de comunicações brasileiro, basicamente privado e visceralmente ligado aos interesses banqueiro-empresariais que sugam o sangue do povo de todas as formas.



Divulgue-se.





terça-feira, 31 de março de 2015

Juninho

Conheci Juninho numa ocupação em que morei, Jacarepaguá, rua Tirol. Ele era chefe da turma que chegou no prédio depois da ocupação geral pelos que se tornaram moradores. Tava na maior consideração comigo, que tinha ajudado a mina dele numa situação, sem querer nada em troca - comportamento incomum. Na época ele tava guardado, a mina tava na rua, vi a confusão, ela pequena com um gargalo na mão, encarando no grito várias outras, maiores que ela. Dei o papo, "sai daí, irmãzinha, é muita gente contra". Ela resistia, "que nada, vou praonde, aqui eu moro e vou ficar, tenho pra onde ir não". Olhou pra mim, desconfiada, "quero nada contigo não, mina, tenho minha família pra cuidar, tô só te dando o canal, é um prédio cheio de apartamento desocupado, tu taí no maior veneno... vai pra lá que é melhor patu". No fim ela acabou vindo, ainda que prevenida, até ficar num apartamento sozinha. Depois, ficou amiga da "minha mulher" e, quando o Juninho fugiu da cadeia e apareceu lá, passou a fita. Ele ficou quase um filho. Tinha 21 anos, mal esboçava uns pelos em cima da boca.

Condenado a mais de quatrocentos anos de prisão, por crimes acumulados, ele me contou sua história. Os pais desceram do nordeste tocados pela fome, num pau de arara, a mãe com ele na barriga, chegaram sem saber o que fazer. O pai carregou caixote na feira, fez de um tudo, como ajudante de pedreiro aprendeu a ser pedreiro e exercia a profissão quando ele tinha sete anos. Então uma incursão policial, como é comum em favelas, irrompeu casa adentro bem na hora do jantar, pai, mãe e filho sentados na mesa, como era do seu costume. Eles sabiam que acontecia da polícia invadir as casas, mas nunca tinha acontecido com eles. Na reação, o pai levantou gritando "na minha casa não!" Foram suas últimas  palavras, os tiros o derrubaram em cima da mesa. A mãe aos gritos, o menino estatelado na cadeira, vendo a cena, enquanto os policiais vasculharam a casa e, como vieram, foram embora, deixando só o rastro de arraso, frustração e ódio.

Dois anos depois, a mãe de Juninho, que passara a lavar roupa pra sustentar sozinha o filho, descobriu a tuberculose e morreu uma semana depois. A tosse freqüente já durava muito tempo, ela resistia à medicina, tinha medo. Com razão, a medicina pública não se recomenda, dá medo mesmo. E o medo deu em morte, como é comum. O menino, de nove anos, ficou sozinho no mundo. Na favela. Os pais eram queridos, gente boa, e muita gente se dispôs a alimentar o menino, a abrigar, ajudar sua criação. Solto na vida, numa sociedade que estimula o consumo, a ostentação como valor pessoal e social, o caminho natural foi a cooptação pelo tráfico. Soltava uma pipa, com certas manobras servindo de comunicação, e tava garantido com a lei do lugar, ganhava moral e alguma grana, que aumentou quando passou a fogueteiro, já com onze anos. Aos treze, deu seus primeiros tiros. Revelou-se rápido e certeiro, Matou uma, duas, tres vezes, ganhou moral e posto, chegou na gerência da boca, foi dono de favela. Preso uma, duas vezes. Na terceira, grade geral, segurança máxima. Demorou pra fugir. E tava ali. Cheio de afeto, cuidado, "se precisar de qualquer coisa tô aí, ó, qualquer coisa mesmo". Era o chefe de uma turma de uns dez, que ocupavam os andares de cima do prédio, o quinto e o sexto. Todos saíam à noite pra trabalhar, cada um no seu ramo, mansões, transeunte na zona sul, carros, motos caras, Juninho trabalhava na miúda, assaltava pessoas. Fiquei horrorizado quando ele me falou, candidamente, que era mais seguro atirar primeiro e revistar a vítima depois, pra evitar reações. Passei um dia inteiro pensando intensamente, angustiado, até que ele chegou, como sempre, depois das quatro da manhã pra fumar maconha e ir dormir. Então, no meio da conversa, enfiei um "tu já pensou se um desses caras que tu derruba pra roubar não tem um filho de sete anos esperando por ele em casa?" Observei tenso a reação dele, empalidecendo, o olhar fixado na parede em frente. Em cima da mesa, eu sabia que tava o revólver, ele sempre deixava ali. Esperei o olhar dele exprimir algum ódio, pronto pra me atracar com ele se ele fosse na direção da arma. Mas o olhar só mostrou confusão, ele se levantou de chofre, sem me dar tempo de nada, pegou o 38, meteu na cintura dizendo "não tinha pensado nisso" e saiu sem falar mais nada.

Demorou uns quatro dias pra ver Juninho de novo. Ele chegou na madrugada, "jesus, quero falar com você". Eu tinha cabelo comprido e barba e os bandidos me chamavam assim. "Desde aquele dia que tu falou aquele negócio eu não atirei. Não consegui e não consigo mais. Eu encosto a figura, digo 'não reage não que eu te mato' e funcionou até hoje. Agora mesmo eu enquadrei o cara, dei a ordem, o cara reagiu, eu atirei nele, ele caiu. Na hora que fui ver se ele tava vivo, virou na esquina um carro de polícia e eu tive que fugir. Agora eu tô nessa agonia, não sei se matei o cara ou não!" Senti uma onda forte de sentimento, abracei o cara e chorei. Ele não entendeu e chorou também, justificando "ele não tinha nada que reagir, porra, tá vendo que eu tô com o ferro na mão apontado pra ele?", mas não era esse o motivo, o que eu vi naquele momento foi um passo dado. Ontem mesmo o cara matava sem o menor problema de consciência. Com a minha participação, foi dado um grande passo pra ele e, por conseqüência, pra humanidade. "Não, cara, não, é bom que tu agora não queira matar, não queira machucar. Tô contigo nessa, tu tá no caminho", eu dizia ainda chorando, mas já rindo, sorrindo pro Juninho, sabotado, torturado, perseguido, judiado desde a infância, se sensibilizando, descobrindo a humanidade que a sociedade escondeu dele. Um pequeno passo, pequeníssimo, mas um entre tantos passos necessários a qualquer um que vive, a qualquer caminhada.

Isso foi durante o plano Cruzado, 1985, mais ou menos. Juninho certamente está morto, como Aninha, a mina dele. Uma vida curta, planejadamente curta, socialmente planejada.

Quando saímos de lá, rumo a Petrópolis, Juninho ainda reinava com Aninha no prédio e na área. Ele não conseguia entender porquê eu ia embora sendo que ali tinha "toda proteção". Mas eu sentia que tinha que tirar minhas filhas dali e fomos sem ter pra onde, deixamos as coisas num depósito na rodoviária - depois pagamos com coisas - e variamos entre rua e hotelzinho, dependendo da grana que se arrumava. Primeiro, comer, depois hotel, se der. Uma ou duas semanas depois vi nos jornais a desocupação do prédio, debaixo de muito tiro, gás lacrimogênio, pancadas e prisões. Houve resistência. A ponto trinta que eu vi passar na escada do prédio furou uma quantidade de camburões, até ser desalojada, morto o bandido por atiradores de elite em  prédios vizinhos, bem mais altos. Não soube quem era, nem o que aconteceu com ninguém. É uma história velha e dá pra imaginar um monte de conclusões possíveis. A gente não estranha nada. E minha vida já tava bastante tomada em Petrópolis, onde afinal alugamos um porão no Itamarati e vivemos um ano, até subir pra Montes Claros, durante a gravidez do Ravi.

Quinze dias depois de chegar em Montes Claros, pelos jornais, acompanhei a pior enchente de Petrópolis, verão de 87 pra 88, milhares de mortos, casas destruídas, famílias desabrigadas. Nossas coisas foram nessa, nem voltamos pra buscar. O meu prejuízo foi um caixote cheio de cadernos escritos, com histórias vividas por anos de estrada, com datas, nomes, locais, acontecimentos ali, acabados de acontecer. O maior prejuízo que já tomei - há de existirem razões e eu até imagino algumas. Muita gente perdeu muito mais ali, nem tenho do que reclamar.



http://petpol.org/2015/03/25/nem-pra-menor-nem-pra-maior-prisao-e-a-forma-mais-cara-de-tornar-pessoas-piores/

segunda-feira, 23 de março de 2015

Primeira viagem maior - Celestina engole estrada

Foram mais de duas semanas, desde que saímos pela zero quarenta (BR 040) pra Belorizonte. Na verdade deveríamos ter ido por Magé, pra pegar o documento definitivo de Celestina, a kombi, mas o costume me levou a entrar direto na ponte Rio Niterói. Quando me liguei, já tinha entrado nela, comentei com o Pepe e paramos num espaço grande à direita, esperando vir algum veículo da CCR, a concessionária, que nos autorizasse a utilizar o retorno funcional que estava ali, na cara, com uma placa ameaçando de multa quem fizesse o retorno por conta própria. Depois de um tempão esperando - certamente estávamos vistos ali, a ponte é qualhada de câmeras -, resolvemos seguir sem o documento, mesmo. Atravessamos e pegamos a linha vermelha, única via expressa do Rio de Janeiro que não tem pedágio - construída no governo Brizola, que deixava claro que via pública era função do Estado, não de empresas - e chegamos à estrada na subida pra Petrópolis. Dois cilindros de gás pra chegar em Beagá. Chegamos no vermelho e tivemos que cruzar a cidade pra encontrar abastecimento. Depois fomos dormir na Praça do Papa, com o visual da cidade lá do alto. Expusemos no Maletta na outra noite, mas não foi bom. Dormimos uma segunda noite na mesma praça, desta vez os barraqueiros já cumprimentaram a gente. Os outros dois dias fomos abrigados na casa do Edson, Celestina teve garagem - de outra forma teríamos que dormir dentro, porque ela não tem tranca - e nós, tratamento dentário qualificado. O dotô Edson Saleme Júnior é desses que gosta do que faz e, portanto, faz bem feito.

Seguimos viagem pelo norte de Minas, desde as nove na estrada, de tarde passamos por Corinto e chegamos em Montes Claros, onde ficamos duas horas procurando alguém, sem encontrar, pra nos hospedar. Sem isso, não fazia sentido ficar e fomos embora, já escuro, em direção a Janaúba, Mato Verde, Monte Azul e fronteira com a Bahia. Nesse percurso, já madrugada na estrada deserta, em plena curva à esquerda aparece um enorme zebu atravessando a estrada. Pepe dormia no último banco, chamei no freio até bem perto do bicho, soltei pra guinada à direita e à esquerda em seguida, pra não perder o controle. O zebu levantou a cabeça na hora certa e passamos raspando nela, aprumando a Celestina na estrada. Pensei que Pepe podia ter caído do banco ou batido em algum lugar, mas o silêncio no salão do carro continuou. Soltei ainda um "caralho, foi quase", mas não houve resposta. Depois ele me disse que acordou com o solavanco, levantou o corpo, olhou, mas não viu nada e voltou a dormir quase de imediato. Aquilo deu energia pra seguir até depois da fronteira, onde precisei de duas ou três horas de sono. Então seguimos e às quatro e meia parávamos num raro posto, pra abastecer e tomar café. O dia começava a se anunciar, num lindo clarear que paramos pra registrar.

Vi o Pepe fotografando a Celestina, por minha vez fotografei a cena.
 E o céu mereceu mais de uma foto, pegando fogo por cima do teto e refletindo nele. O esforço da noite valia a pena, no espetáculo do amanhecer no sertão suave do sul da Bahia. Dali seguimos, Guanambi, Caetité, moinhos e mais moinhos de vento, captação de energia eólica, dezenas, centenas de cataventos modernosos, linhas arrojadas, três pás apenas, longilíneas, quase sensuais.

Vimos centenas, e também caminhões enormes, transportando as pás ou pedaços da haste, enormes também, com batedores e ocupando a maior parte da estrada, de forma que tínhamos que ir pro acostamento ao cruzar com eles.

Assim fomos até Brumado e voltamos, pra descobrir numa oficina, em Belzonte, que estávamos sem freios. Era o ar infiltrado servindo pra freiar, quando se fez uma sangria, afinal não era pro ar estar ali, acabou o freio. Lembrei do zebu com um sentimento estranho.

Mas na primeira grande viagem se saiu muito bem Celestina, a kombi. Promete ser a engolidora de estradas, como se propõe, por esse Brasil afora - ou adentro, o que dá no mesmo. A meu ver - e gosto é gosto - ela tem uma bela forma. Embora o que importe, mesmo, é o conteúdo que ela carrega, na permanente intenção de causar reflexão, pensamentos, questionar valores e existir dentro do processo de caminhada humana, planetária, nesse momento em que existimos.

Na volta, desci a Dutra pra São José dos Campos e tive que passar por Itatiaia e Resende, onde está a entrada pra Visconde de Mauá. Não resisti a visitar os descendentes. E tive a grata surpresa de encontrar meus três netos lá, Alice, Olívia e Noé - que Adhara registrou como Noah. Foi um dia de descanso, quase se pode dizer assim. Coisa rara.                            

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.