sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Arte de "portas abertas", em Santa Teresa


Era sábado, saí de casa pelas dez e meia, onze horas, como de costume, pra expor meus desenhos. Fui de ônibus - às vezes vou de bicicleta, mais rápido e mais barato, só exige mais esforço. Mas eu sabia do evento, o bairro estaria diferente, provavelmente proibido aos que expõem nas calçadas e paredes, cheio de guardas municipais pra impedir os expositores de rua, como acontece todas as vezes. Os comerciantes e os artistas mais abastados promovem o evento e dão um jeito de proibir a exposição na rua, pelo menos no circuito mais freqüentado, nos eixos principais do bairro. Quando o micro começou a subir a Almirante Alexandrino, espinha dorsal do bairro, que começa quase nos Arcos da Lapa e vai até quase o Corcovado, fui olhando as arrumações.

Cartazes, estandartes coloridos, Santa Teresa parecia uma festa, com faixas, cores, desenhos, em cada loja ou ateliê, nos restaurantes. Por baixo da aparência, eu percebia a ausência dos expositores de rua. Havia uma tirania por trás da simpatia ostentada nos banners, cartazes, faixas e outros visuais. Um apelo hipócrita apresentando o bairro como o supra sumo dos artistas do Rio de Janeiro. Havia turistas e visitantes aos montes, carrões, pessoas com roupas caras, visivelmente as classes mais ricas da sociedade. Fui chegando ao Largo do Guimarães, desci do ônibus, olhei a calçada, ninguém expondo. O largo estava cheio de guardas municipais, há um escritório deles ali. A parede onde exponho, vazia, eu poderia ir direto nela, já tirando os desenhos da pasta e colocando rápido. Até eles se darem conta e chegarem junto eu teria já uns seis a dez desenhos colados e o impasse estaria criado. Mas, eu pensava, seria entrar num clima tenso, desagradável, estar pronto pra qualquer conseqüência, ou seja, uma apreensão ou coisa pior. Além do mais, pensava na rapaziada excluída que deveria estar, como sempre, escondida no alto da Felício dos Santos, uma rua secundária onde passa muito pouca gente e que a organização do evento “libera” pros expositores usuais das ruas de Santa Teresa e os que vêm pro evento. Resolvi abordar os dois guardas do lado da banca de jornais.

Na base do “com licença, boa tarde”, perguntei se eles tinham instrução de não permitir a exposição por ali e eles, reconhecidos pela consideração, explicaram que não podiam permitir a colocação de nenhuma mercadoria nas calçadas. Eu expliquei que expunha desenhos ali naquela parede – e mostrei a parede -, todo final de semana, mas sem nada na calçada. Eles ficaram meio confusos, “nosso trabalho é garantir a passagem nas calçadas”, e recomendaram falar com “aquele pessoal de jaqueta escura, escrito ‘Chave Mestra’, da organização do evento”. Eu já os tinha visto, representavam a empresa contratada para a realização. Não me agradou a idéia de falar com eles, conhecedor da ideologia e dos mecanismos dessas empresas, sempre em função do lucro, da consideração por quem tem mais grana, num desprezo franco e profundo pelos não privilegiados, os lutadores mais pobres. Mas fui. Havia um grupo deles no ponto de bonde, do outro lado da rua. Pela disposição, postura corporal e expressões, dava pra ver a hierarquia entre eles.

Fui na direção de uma mulher de uns trinta e cinco anos, intermediária entre o grupo e o chefe, ela imediatamente me indicou uma moça mais nova, claramente subalterna. Logo na primeira frase – eu exponho naquela parede ali todo sábado e domingo – ela demonstrou ignorância e chamou o chefe. Eu já o tinha visto antes, morador do bairro, era um chefete de grupelho, nada importante na empresa, apenas uma cooptação pra liderança de grupo. Ele interrompeu minha fala, dizendo que não poderia expor ali, porque ia juntar gente e poderia causar algum acidente com os carros. Era um menosprezo pela minha inteligência, ou ele era burro, mesmo. Respondi “ah, sim, grupos como aquele ali em frente ao bar do Mineiro” e apontei o monte de gente bebendo e conversando na rua, em frente ao bar lotado, “ou aquele outro’, apontei pro lado oposto, em plena Almirante Alexandrino,”esperando pra comer no Sobrenatural, né? Tá na cara que o motivo não é esse, né, meu irmão?”

Ele hesitou diante do óbvio, mas argumentou que no largo era diferente, mais perigoso, num ridículo absurdo que confirmava minha hipótese sobre sua inteligência. A rua estava toda lotada, de pedestres e carros, o que ele dizia não fazia o menor sentido. Parei de falar e olhei bem pra ele, enquanto ele falava. Só o confronto, mesmo. Mas lembrei da rapaziada que devia estar na Felício, os excluídos, e me deu vontade de estar entre eles. Interrompi o cara, já impaciente, “onde é que tá a feira alternativa, é na Felício, mesmo?”. Ele mostrou alívio, “tá lá em cima”, e juntou os dedos da mão, “tá bombando”, numa mentira tão descarada que parei de olhar pra ele e fui logo, pra não responder.

A rapaziada estava tão escondida que não dava nem pra ver, da Pascoal Carlos Magno, um dos eixos do bairro, onde passa o grosso dos visitantes. No ano anterior, pelo menos dava pra ver, aí algumas pessoas mais curiosas vinham ver e atraíam as outras, virava uma feira, mesmo, com gente fazendo som, dançando, mercadorias bonitas, criativas, bancas de bom gosto, pinga, música. Por isso eles resolveram proibir o maior pedaço da Felício, pra que a feira não ficasse visível. É a mentalidade mesquinha da ânsia de lucro, excluindo sempre os mais pobres, com pretextos pra esconder sua própria desumanidade. Engraçado é que quem determina é a empresa, mas quem faz cumprir é o poder público. É de dar nojo, mesmo.

Tive que expor num muro desigual, mais difícil, nem tinha espaço pra expor tudo. Mas o clima estava bom, encontrei conhecidos que só expunham no “portas abertas”, gente de outras cidades e outros bairros, além de vários expositores de sempre. Foi agradável, divertido, mas as vendas foram poucas. Ficamos até escurecer. Fui pra casa aborrecido com a injustiça, todos deveriam ter respeitado o direito de expor decentemente.

No dia seguinte, domingo, já desci do ônibus direto pra parede, no largo do Guimarães. Abri a pasta, fui tirando os desenhos que já estavam com a fita crepe, pra por nas partes de cimento – há as portas de metal, também, mas aí tem que cortar a fita adesiva, primeiro, demora mais e eu precisava de rapidez. No sexto desenho já tinha um guarda me abordando, daquela maneira sempre “criativa”, “boa tarde, o senhor tem autorização para expor essa mercadoria?” Era o guarda com quem eu havia falado no dia anterior, eu estava disposto a um confronto “gandhiano” com as instituições privada e pública. Expliquei que expunha naquela parede sempre, que não ocuparia a calçada, mas exporia. Disse também que não queria faltar com o respeito, nem seria agressivo com a guarda, sabia que eles cumpriam ordens, entendia perfeitamente que eles não tinham responsabilidade sobre elas e que seriam punidos se não as cumprissem. Mas que eu me sentia no direito de expor ali, que uma empresa não tinha o direito de me impedir e que, se houvesse a ordem de apreender os desenhos, eu não reagiria contra eles, nem os insultaria. Que cumprissem com sua consciência, pois eu cumpriria o que me dizia a minha.

Ele ficou sem saber o que dizer ou fazer, pediu pra esperar enquanto ele consultava a chefia. Eu esperei ele se afastar e continuei pondo os desenhos. O pessoal da “chave mestra” já estava se movimentando. Uma menina paulista, com o jaleco da empresa, chegou pra falar, ouviu meus argumentos, sorriu compreensiva e, depois de olhar em torno e não ver ninguém da empresa perto, disse “cê tá certo” e foi pro outro lado da rua, no ponto de bonde. Vieram outros com o tal jaleco, tentando me demover, ameaçando a apreensão. Quando ouviam que poderiam apreender, se quisessem, “vai ser interessante apreender desenhos a nanquim, num evento que se entitula ‘arte de portas abertas’”, ficavam furiosos e iam buscar novas instruções. Os guardas se postaram ao lado e eu falava calmamente com eles, enquanto ia colocando mais desenhos, com o cuidado de não expor os aquarelados, que dão muito mais trabalho. A apreensão era uma possibilidade real, eu preservava os coloridos, arriscando só os em preto e branco.

Os guardas haviam sido trazido de áreas distantes – meu medo era que fossem os do centro da cidade, acostumados às operações violentas de apreensão em grande escala, em conflitos ferozes com os camelôs, com gases, pancadaria, não raro tiros e pedradas. Mas eram de Guaratiba, do Recreio e outras áreas de balneários, onde o serviço era mais pacífico e de acordo com as funções reais da Guarda Municipal, de proteção ao patrimônio público – e não de caça aos ambulantes. Com minha ação pacífica eles simpatizaram comigo, acostumados a insultos e desconsiderações, e me deram toda razão. O pessoal da “chave mestra”, sobretudo os graduados, me olhava feio. O mesmo cara mentiroso do dia anterior veio me cobrar, “mas ontem você foi pra lá”, e eu, “mas não vendi, e eu não posso ficar sem vender. Não tenho, como você, um salário pra cair na minha conta uma vez por mês”. Ele insistiu, “uma vez por ano, o que custa não expor aqui?” Eu ri, “pra mim, custa não vender. E o que custa eu expor aqui, pra sua empresa?” Ele saiu inconformado, avisando que iriam apreender. Eu disse que preferia estar do meu lado e perder os desenhos, que estar do lado da empresa e fazer o papel de repressão sobre quem luta com dificuldades. Mas ninguém veio apreender. Em duas horas, senti segurança e expus os aquarelados. Vendi mais que o normal.

No fim de semana seguinte (o evento era em dois finais de semana), eu esperava alguma ação no sentido de impedir minha exposição. Desci um ponto antes, vim andando no meio das pessoas, o bairro novamente lotado. Achava que estariam à espreita pra me abordar antes de colocar o primeiro desenho. De longe, observei o largo. Não parecia haver nenhum esquema pra minha chegada, ninguém junto à parede, quantidade normal de uniformizados. Ao me aproximar, vi que havia uma faixa larga, esticada no exato lugar onde eu exponho. Era uma faixa informativa, com informações sobre o evento, com tamanho suficiente para ocupar todo o espaço. “Covardes”, pensei.


No chão, água, mochila e a pasta de desenhos. Se a intenção fosse informar, a altura da faixa seria bem maior.

Parei na frente da faixa. Olhei em volta. Do outro lado do largo, um uniformizado da “chave mestra” me olhava, de braços cruzados. Era o que tinha ficado mais furioso comigo, no domingo anterior. Algo se movia em meu estômago. O Largo do Guimarães estava cheio de gente. Levantei a voz e o braço, “senhores!”, várias pessoas me olharam. “Quero denunciar aqui a hipocrisia de um evento que se chama arte de portas abertas, que na verdade fecha as portas pros artistas que expõem nas ruas do bairro, todo final de semana!” O cara descruzou os braços, atônito. Ficou meio desnorteado, eu continuei. “Eu exponho há mais de dez anos em Santa Teresa, pelo menos há seis nessa parede aqui” e batia a mão sobre a faixa, “e hoje estou impedido de expor porque não faço parte dessa CURRIOLA que mancomuna a empresa responsável pelo evento com a guarda municipal, que devia servir ao município, e não aos interesses mesquinhos dos que impedem trabalhadores da arte de expor o seu trabalho!” O cara, depois da palavra curriola, gritada em sua direção, entrou pela porta da administração do bairro, a sub-prefeitura, onde devia estar sediado o comando da “chave mestra”. Em seguida, surgiu na porta com mais três pessoas, duas de uniforme e uma loura baixinha e gordinha que parecia a chefe geral.

Eu levantava a pasta com os desenhos, “dentro desta pasta tem meus desenhos, feitos a nanquim e aquarela, arte pura, e estou impedido de expor pelo conluio dessa chave mestra com a prefeitura, impondo regras ridículas, injustas, que só servem aos seus interesses ignorantes e desumanos, só visam o seu lucro e o dos abonados do bairro!” A loura começou a falar no celular, ostensivamente, achei que pra me intimidar. “Ela não me conhece”, eu pensei, rindo por dentro da minha indignação, “agora eu tô incomodando”. Passou o Jean, com seus tambores, me cumprimentou, eu me dirigi ao monte de pessoas que estava no largo “esse aí é o Jean, que expõe aqui no largo e hoje está impedido de expor também! Várias pessoas que expõem aqui estão impedidas porque são pessoas sem disponibilidade de grana, não fazem parte do grupinho dos privilegiados e são desprezados pelo poder econômico que está promovendo esse evento hipócrita! São artistas de alta qualidade, que têm beleza e sensibilidade pra oferecer e estão excluídos do evento por serem artistas de rua!” Jean, parou, colocou os tambores no chão, em solidariedade. Várias pessoas paravam pra ouvir, muitos apoiavam, ouvi comentários sobre o absurdo, “portas abertas pra quem?”, eu berrava. “Portas abertas pra quem vem gastar dinheiro, mas fechada pros artistas tradicionais no bairro!”

A loura entrava no escritório, pra aparecer logo depois de novo, olhando pra mim e falando no celular. Gesticulava, eu não sabia se era teatro pra me intimidar ou se ela estava armando alguma. Mas não estava nem aí. “Vou ficar aqui denunciando a falcatrua de um evento que se diz de portas abertas, numa afronta à inteligência, e proíbe a exposição dos mais pobres!” Várias pessoas paravam, ouvindo, e me apoiavam. Algumas foram pedir explicações no escritório, eu via a loura nervosa, falando e gesticulando com as pessoas que, visivelmente, estavam achando um absurdo aquilo. Funcionários entravam e saíam do escritório, celulares nas orelhas, me olhavam com ódio impotente. Um deles me fez um sinal ameaçador, mas eu já estava tomado pelo espírito guerreiro, “tô no meu direito de falar, rapaz, o que foi? Vai mandar me prender? Eu teria vergonha de estar no seu lugar, de perseguir trabalhador a serviço de um patrão safado e desumano! Tem algum ser humano aí?”, eu provocava, lá do outro lado da rua e do ponto. “Se tiver tem que estar morto de vergonha! Mas é esperar muito, o normal é cada um se importar consigo e os outros que se fodam! Ainda mais se os outros são pobres! Cadê a humanidade de vocês, deixaram em casa pra fazer esse papel ridículo?” E continuava, falando aos passantes, “estou denunciando aqui a hipocrisia...” O Jean já tinha ido pro lugar que ele arrumou pra expor, pagando 100 reais. Mal conseguiu dinheiro pra pagar, foi ruim pra ele.

Outros da rapaziada, ao passar, me viam ali, discursando, paravam, surpresos. Via seus olhos brilharem, “é isso aí, Edu, resistência!” E se deliciavam quando eu apontava o escritório da “chave mestra”, na administração da prefeitura, “a base desse evento mentiroso, repressor, fazendo cara de bonzinho, como a mídia, enquanto exerce seu vampirismo escondido”. Já haviam se passado umas duas horas, eu parava por uns minutos, conversando com algumas pessoas, depois voltava à carga. Alguém me deu um pedaço de gengibre, acho que Rogério, o poeta, “é bom pra garganta”, ele disse.

Iberê me convidou pra expor no muro ao lado da casa dele, a uns trezentos metros de distância dali, na Almirante Alexandrino. Ele estava expondo em seu carro, habitualmente parado em frente ao prédio onde mora, seus mapas estrelares, fases lunares e outras mercadorias. Iberê é um cara “espacial”. Os guardas foram pra cima dele, também, mas ele persistiu e ficou, com argumentos fortes. Morava ali, o carro ficava estacionado junto à calçada, ele se recusou a tirar e ninguém pôde fazer nada. Eu lembrei que precisava expor. Ali estava bom, mas eu não estava vendendo. A proibição de expor era em toda a rua, mas quando fui pra lá, ninguém me impediu. Achei que eles estavam dando graças por eu ter saído do largo do Guimarães e preferiram não me perturbar mais. Expus sábado e domingo e vendi muito bem.

Na semana seguinte, viajei ao Paraná, a convite do centro acadêmico de geografia, para o evento “A geografia dos excluídos e os excluídos da geografia”. O assunto era “cultura e arte subversivas” e eu era um dos palestrantes. Passei a semana toda e não expus em Santa. Quando cheguei, soube que no meu lugar haviam posto banheiros químicos, numa clara retaliação. Achei uma graça amarga. Então os serviçais do sistema estavam me retaliando, usando os recursos hipócritas do aparato público. "Covardes", eu ri.

Não precisei me mover. Durante o fim de semana que não fui, os próprios moradores trataram de reclamar da estupidez de colocar os banheiros na calçada, obrigando os pedestres a passar pela rua. Então não havia um lugar discreto, onde colocavam banheiros químicos nos eventos do largo? Por que colocaram no meio do caminho, se o lugar usado normalmente era muito mais indicado? Foram tantas as reclamações que não puderam repetir a dose. Quando cheguei, na outra semana, não havia banheiros. Expus sem problemas. E ironizei, “não pude dar a eles esse gostinho, estava viajando”.

                                                                                                                                    Eduardo Marinho



terça-feira, 19 de outubro de 2010

A estupidez do orgulho



Há quem baseie um sentimento de superioridade na sua posição social, no seu degrau acadêmico ou nas riquezas de que dispõe. Ingenuidade ou ignorância, em humanidade. Essas pessoas, diante de qualquer falha própria que se revele, ficam constrangidas, envergonhadas, sentem humilhação. É a fragilidade que o orgulho causa. Posso sentir superioridade em quem tem mais luz, maior compreensão ou melhores sentimentos que eu, mas nunca por aspectos externos. E não é uma superioridade arrogante, ao contrário.

Reconhecer erros é um privilégio que nos permite trabalhar nas correções, nas superações. Aos orgulhosos só é possível reconhecer erros nos outros. Os próprios, escondem, negam, e isso os faz seguir cometendo os mesmos erros. Enquanto o orgulho amesquinha o espírito, a humildade a engrandece; o orgulho é estúpido, a humildade é perspicaz; o orgulho se ofende, a humildade aprende; o orgulho acusa, a humildade compreende.

Apontar uma falha minha não me espanta, não me ofende, não me revolta. Sei ter um montão delas e procuro corrigir as que posso, as que sou capaz e as que vou me capacitando aos poucos. Mas não se espere que eu me sinta humilhado por errar. Haverá alguém que não erra? Trabalhar os próprios erros nos capacita pra trabalhar na coletividade. Aliás, acho que o trabalho interno é um pré-requisito pra um trabalho externo eficiente, que renda frutos.

Mas um papel feio é o de apontar falhas alheias, com sentimentos destrutivos, raiva, desprezo, como quem tem o direito de punir, buscando ferir, humilhar, diminuir o outro. É o papel da ignorância, de quem não reconhece sua própria humanidade e se comporta como se não tivesse suas tendências pra cuidar, seus próprios erros a corrigir. Um comportamento comum, o dos acusadores.

"Nascer" - óleo sobre tela, 68x78cm - 2001
O porquê de virmos ao mundo parece uma evidência - aprender. 
Uma pessoa assim comete vários equívocos e leva a pior. Não consegue enxergar o que precisa pra se melhorar, não pode trabalhar nas próprias falhas e segue tropeçando nas mesmas pedras, sofrendo conseqüências sem perceber sua responsabilidade, atribuindo a “culpa” a qualquer um ou qualquer coisa. Acaba enxergando a realidade como lhe convém (e não como ela é) e sofre constantes decepções. Sem entender nada e, freqüentemente, tumultuando tudo à sua volta.



EduardoMarinho                                                                                                           19/10/10

segunda-feira, 18 de outubro de 2010


Adhara aos nove anos, numa viagem a Visconde de Mauá,
com Victor Mendez, el peruano - óleo sobre tela.


Indecisão – ir ou não ir

                                                                                                                                          Eduardo Marinho
Tenho uma filha que mora nos Estados Unidos. Isso mesmo, no império. Pouco tenho a ver com isso, jamais poderia ter-lhe pago tal viagem, quase todas as que fizemos foi de carona, dormindo em postos ou em caminhões, raramente em algum hotelzinho fuleiro, de beira de estrada. Ela foi quem ralou pra conseguir pagar. E ainda assim, precisou de grana emprestada de amigos, que pagou de lá, depois. Foi através de um programa, tudo legalzinho. Era pra voltar em dois ou três anos, ou de lá ir pra Europa ver o que rola. Mas foi ficando, arrumou namorado, mudou de trabalho, veio ao Brasil em visita, mas não viu condições de viver por aqui (em um nível decente de vida), voltou pra lá e ficou. Há algum tempo casou. Não gostava da cidade em que vivia, toda a comida artificial, pessoas sem interesse, enfim, detestava o lugar. Mas aqui a situação seria pior, não tinha muita opção. Há pouco tempo, mudou pro Colorado, um lugar lindo, de montanha, as pessoas são diferentes, há produtos naturais, até artesanato se vê em algumas ruas e praças. Parece outro país. Como aqui no Brasil, mesmo, as variações de lá são incríveis.
Ela tem insistido comigo pra ir visitá-la, e eu sempre refugando. Desde alguns anos. Tenho muito o que fazer aqui, não me interessa uma viagem de “férias”, não tô a fim de ficar à toa ou passeando, muito menos na aba de filho (claro, ela se propôs a pagar tudo). Uma cidade satélite de Washington, onde tudo se faz de carro, se come o que ela me descreveu várias vezes, com uma gente como a que me descrevia, o que eu ia fazer ali, meu Deus? “Visitar sua filha”, ela me respondia, e eu, “mais fácil cê vir aqui, assim vê todo mundo”. Mas ela não desiste.

Agora mudou pro Colorado. Montanha. Outro clima. Outra gente. Fiquei pensando... o iptu tá atrasado, a grana é sempre pouca, se desse pra trazer uma grana de lá, podia resolver o problema da casa e, quem sabe, até comprar um fusca pra transportar os trabalhos. Se tem gente vendendo artesanato, pode dar certo. Preparo umas pinturas, sei lá, umas naturezas mortas a óleo, umas viagens em acrílica, de repente posso voltar com grana pra desafogar a vida.

Não disse nada a minha filha, não quero criar expectativas só porque abri a possibilidade. Além do mais, tem várias pendências.

O título de eleitor tá atrasadão, acho que nem existe mais. A quitação com o serviço militar, também, só me apresentei como reservista no segundo ano, tem que ir lá, regularizar. Parece que depois dos 46 anos não tem mais vínculo, eles fazem uma carteira de “desobrigado”. Gostei do nome. Depois de ficar regular, tem que ver se no consulado deles, que parece tão exigente, vão me liberar um visto de entrada. Vejamos, não tenho emprego fixo, não vou levar dinheiro (bom, isso ela pode me mandar de alguma forma, pra eu mostrar no consulado ou no aeroporto, sei lá), não falo inglês, minha renda é ridícula pra eles, não tenho formação universitária, sou um artista de rua. Será que vão acreditar que não desejo de forma alguma permanecer por lá? Do jeito que são assediados por imigrantes ilegais? Acho que não me liberam. Ela acha que sim. Ou diz que acha, pra me levar a tentar, talvez.

Não sei se vou, mas tenho que começar a pintar pra ir juntando. No caso de não ir, é sempre bom ter pronta uma quantidade de pinturas. Uma exposição e é uma salvada na situação. Caso vá pro Colorado, penso que a salvada pode ser bem maior. Um mês, no más, deve ser o suficiente. Mais que isso sei que vai me dar uma agonia danada pra voltar. Mas não sei se vou. De repente, posso mandar as pinturas pra ela ver se vende. E ela me manda a grana, tira uma comissãozinha e pronto. Ela não vai gostar da idéia, eu acho. Mas até juntar umas pinturas, lá se vão alguns meses. O dia a dia leva tempo. Pra quê decidir agora? Deixa o destino se apresentar. Se houvesse um ímpeto, uma vontade muito grande, é que eu precisaria ir, mesmo. Mas não há isso. É, mais, uma possibilidade de tirar o pé da lama.

sábado, 16 de outubro de 2010

Ver como é, não como nos é mostrado

É preciso dar o nome devido às coisas. A forma de falar acaba criando condições mentais propícias a análises tendenciosas. Erramos o caminho do pensamento e ficamos a dar voltas, sem achar saída.

Quando olhamos o panorama da sociedade, vemos que a “elite dirigente” formal, apresentada como o “poder”, não é o que parece ser. Observando seu comportamento, sem nos deixar enganar pela mídia, percebemos que o poder real, atual e atuante, está bem acima dessa elite, no escuro das empresas de comunicações e do aparelho do Estado. A verdadeira elite dirigente não é eleita pelo voto, ao contrário, elege seus subordinados e, através deles, indica outros subordinados para os cargos chave, dentro da administração estatal. Considera seu o que é de todos, monopoliza a atenção e os privilégios que o Estado pode lhes oferecer. Dispõem das verbas públicas com a naturalidade de quem usa o que é seu, por direito de nascimento ou conquista financeira.

A “elite dirigente” não passa, na verdade, de uma elite de gerentes. Vê-los abanando o rabinho para mega-empresários, representantes de gigantes transnacionais e de banqueiros é uma bofetada na cara do cidadão.

Andamos pelas ruas recebendo multidões de recados mentirosos, explícitos e subliminares, dizendo que nos amam, fazem tudo pelo nosso bem estar, que essa é a maior razão de sua existência, tudo "especialmente para você", com sorrisos, gestos, cores, imagens e sons sedutores, acenando com possibilidades de destaque e consideração social, prêmios por se deixar convencer e desejar o que oferecem. Tudo com o único objetivo de nos fazer consumir o que não precisamos. Para vincular a felicidade ao consumo.

Se entramos num "chópim" a coisa se torna ridícula, absurda, caricata, uma ofensa à inteligência. Mas de tal maneira bem elaborada, de tal amplitude e profundidade é o trabalho de condicionamento cotidiano neste sentido, que se pode ver nos olhos das pessoas o brilho da avidez, da necessidade de comprar, de ter, de consumir. Tornam-se fanáticas pelo consumo. Produzem angústias profundas, amargam tristes frustrações, obtêm efêmeras alegrias, superficiais demais para sanar a insatisfação do espírito humano.

“A massa sustenta a marca. A marca sustenta a mídia. E a mídia controla a massa.”
                                                                                                                                                                      George Orwell

A marca controla o Estado, eu poderia dizer. Mas fica despersonalizado. Os donos das mega-empresas, os grupos de empresários mais ricos, de donos de terras, de indústrias, são esses os que mandam, controlam, criam valores, distorcem a realidade, interferem no ensino, nas decisões do Estado em qualquer das suas instâncias. Atacam populações, comunidades, etnias, tudo o que esteja no caminho dos lucros absurdos a que se acostumaram.

Se a minha visão é simplista, é porque a realidade é simples assim. Claro que virão acadêmicos laureados, especialistas, analistas, com uma linguagem rebuscada, provando que a coisa é muito mais complexa, não é bem assim, e mais isso e aquilo. Mas eles não me enganam. A sociedade é essa barbárie, na vida da maioria (alguns privilegiados nem acreditam nisso), por uma questão de egoísmo, orgulho, soberba de uma minoria que não alcançou, ainda, o patamar humano. E também por um minucioso trabalho de ignorantização, nas escolas, e de idiotização, pela mídia e pelas redes da internet, que é acolhido, assimilado e exercido pela grande maioria, que inclui os mais sacaneados da coletividade desarmada de instrução, informação e senso crítico - desarmada de cidadania.

Todos temos nossas responsabilidades, ninguém está isento. Mesmo os mais engajados, os mais ferrenhos lutadores por mudanças reais na estrutura social. A diferença destes é que exercem sua responsabilidade humana, cada um à sua maneira, como o professor que dá tudo de si no ensino e na formação de seus alunos, mesmo sabendo que a estrutura de ensino não permite um grau aceitável de assimilação. Como o médico que atende com amor, mesmo nas mais precárias condições.

Eu, de minha parte, ponho tudo o que posso no meu trabalho. Consumo só o que me é realmente necessário. Nem entro em chópincenter, que aquilo é um insulto à minha humanidade. E duvido de tudo que a mídia diz – falou mal, deve ser bom, falou bem, deve ser mau.

http://antizero.rg3.net/
Eduardo Marinho, 16/10/10                                                                                         

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Transporte Público

O motorista, nervoso, pega minhas moedas, dá uma olhada e joga na caixinha. Aperta o botão e eu passo na roleta. Ele tá acumulando passageiros sem troco. Resmunga contra a falta de troco. Entra mais um com uma nota de 20 e ele reclama, “não tem menor aí, não?” Não tinha. Mais um passageiro sem troco, ele resolve parar na esquina, desce com uma nota de 50 e outra de 20, entra numa padaria. “Vambora, tô atrasado!” grita alguém no fundo. O motorista, um negro de belos traços e corpo grande, saiu da padaria na direção da banca de jornais. Mais passageiros inquietos, reclamando.

Penso na falta do cobrador. Esse cara tá dirigindo um ônibus, um coletivo de vidas, não podia estar preocupado com o troco. Tinha que estar calminho, no lugar dele, prestando atenção no trânsito e na entrada e saída de passageiros, mais nada. A empresa economiza um posto de trabalho, sobrecarrega o motorista e põe um trabalhador na rua. E ainda piora a qualidade do serviço, demora mais, às vezes o cara fica parado um tempão no ponto, enquanto a fila se forma na calçada e ele vai cobrando.

Lá vem o cara, correndo. Entra, escuta os resmungos. “Brincadeira, hein, motorista!” “Tô com pressa, porra!” O motorista fecha a cara, “cês reclama é de tudo! Se não tem troco, reclama, vou trocar, reclama...” “Tu tem é que trocar antes de começar a viagem”, retruca um. “Não adianta!”, se exalta o piloto, “eu troco e só entra passageiro com dinheiro inteiro, aí não dá!” “Que nada, tu não tá é trabalhando direito!” “Senta aqui pra tu ver como é que é, rapá!” Resolvo intervir.

“Ô piloto, me diz uma coisa.” O silêncio foi instantâneo. “Há quanto tempo tu tá sentado nessa cadeira aí, fora as paradas?” “Tô desde as seis da manhã, não saí nem pra almoçar”- era mais de uma hora da tarde. "Ainda vou ter que dobrar, o outro motorista não veio, deram um gancho nele, não avisaram o despachante e eu não vou poder sair". "É mesmo? Vai ter que ficar até que horas?" "Até as nove, só na linha, depois tem que ir na garagem." Por dez segundos, o silêncio me pareceu cheio de reflexões, observei as fisionomias à minha volta, discretamente. Depois, investi de novo.“Tu não tem saudade de um cobrador, não?” O cara riu, balançou a mão pra cima, “porra...” Eu continuei,“sabia que tem um manicômio, na baixada, só de motoristas de ônibus?” Eu havia lido um artigo a respeito, tempos atrás, e fiquei muito impressionado com aquilo, passando a prestar atenção nos sinais que os motoristas apresentam no cotidiano do trânsito. Ele baixou a voz, “já ouvi falar, mas é verdade mesmo?” Senti que havia uma atenção forte no ambiente, ao menos vários estavam ouvindo, interessados.“É, rapaz, a onda da nervosia vem pra cima, né não? Todo dia. Se o cara se deixa levar, acaba adoecendo.” Ele não respondeu. Olhei pro último cara que tinha falado, a agressividade havia sumido da sua expressão. Em volta dele, vários me olhavam. “Devia ser proibido o motorista cobrar passagem. O cara tá dirigindo um ônibus, a vida da gente na mão dele, tinha que estar prestando atenção só no trânsito, tinha que ter um cobrador aqui, olha o estado que o cara fica, já não basta o nervosismo desse trânsito doido... Ele tinha que estar tranqüilo, pra segurança de todo mundo aqui dentro” Alguém completou, "e lá de fora também!" Risadas. Virei pro piloto, de novo, “a empresa põe algum troco, ao menos pra começar o dia?” Ele riu, “nada, tenho que ficar correndo de um lado pra outro, no (ponto) final, às vezes não dá tempo nem de ir no banheiro”. “Sacanagem, contigo e com os passageiros”, concluo," por causa de decisões de pessoas que nem põem o pé num ônibus, só tão querendo economizar grana pra ganhar mais dinheiro".

Já apareciam expressões de “é isso mesmo”. "Os caras que decidem essas barbaridades não andam de ônibus. Decidem e nem botam a cara aqui, a gente fica se estranhando, se aborrecendo por causa da ganância desses empresários, enquanto nem eles nem a família deles passa pelo que eles fazem a gente passar, tão por aí, andando de carro blindado, de carrão, quando não é de helicóptero. Eles não vivem esse mundo nosso, não, eles vivem outro mundo. Só que pra bancar esse mundo ricão eles vêm aqui, explorar a gente, no nosso mundo. Donos de empresas de ônibus deviam ser obrigados por lei a só andar de ônibus, pra saber como é, isso tinha que ser lei. Aí eu queria ver se ia ser essa merda”. Sorrisos de concordância, o motorista lançou um olhar pelo retrovisor, cheio de simpatia. Alguém ainda acrescentou "aí eles iam fazer uns ônibus só pra eles", mais risadas, o ambiente descontraiu e dispersou em várias conversas pelo carro.

Quando desci do ônibus, no centro, me despedi, “valeu, piloto”, e ele, “falou, irmão, vai com Deus”. Saí com a sensação de bom contato. Nesse caso, a paz foi feita quando se trouxe as razões da discórdia, resolvidas em escritórios com ar condicionado, longe da realidade das ruas e da maioria que sofre as conseqüências, com a intenção primordial do lucro. E como é destrutiva essa intenção, aos corpos e às almas. Ao concreto e ao abstrato. Ao astral e ao sentimento.

Nota - Gancho é a suspensão do motorista por um ou mais dias de trabalho. Uma forma de opressão, de ameaça, de coação. Mas apresentada como uma forma de controle do comportamento, da imagem da empresa, de otimização do serviço. Não se leva em conta a natureza humana com relação ao abuso de poder, a necessidade de afirmação comum, ao uso indevido e injusto de poderes (supervisões e gerências), porque, no caso da empresa, isso contém reivindicações e serve ao lucro.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A opção é uma necessidade

Tensão, angústia, ansiedade, raiva, medo, os valores impostos
nos infernizam. Muitos se transformam em "cabeças de fósforo".
É preciso reconhecer muita engenhosidade no ser humano para conseguir construir essa parafernália psico-influenciadora, com tamanha capacidade, alcance e profundidade, para mascarar minuciosamente a realidade, criando uma realidade fictícia, na qual as pessoas se adaptam e acomodam, para manter tudo como está. Um aparato complexo de condutores de opinião, distorcedores de fatos e realidades, construtores de aparências mentirosas, mas “convincentes”, está instalado e em pleno funcionamento.  São criadores de visões de mundo, de valores e de desejos individuais e coletivos. Depois que descobriram o caminho do inconsciente, os "donos do mundo" puderam amarrar a situação pelo maior número de lados possível, armados com a posse do desenvolvimento tecnológico que deveria servir a todos. E invadiram as instituições, seqüestrando os Estados e os coagindo a serviço dos seus interesses, em prejuízo das populações como um todo, apenas beneficiando algumas camadas, sempre minorias, para que garantam o funcionamento do sistema de exploração e sabotagem da maioria, de exploração e consumo dos recursos do território, violando direitos humanos e leis ambientais para concentrar mais poder e riquezas. Não é preciso investigar minuciosamente o interior da estrutura social para perceber a quem o Estado serve. Basta observar como são tratadas as parcelas mais empobrecidas e as intermediárias, na base da sociedade. Não é preciso ser nenhum gênio acadêmico. É óbvio demais.

Só que não é possível amarrar todos os lados. Há sempre pontos soltos, brechas, rachaduras. É aí que a gente entra. Cada atividade no sentido de quebrar as correntes de mentiras que nos prendem é útil e necessária, seja qual for sua dimensão. Cada trabalhador que use o que tiver na mão, britadeira, picareta, ponteira e marreta, martelo, lima, ácido, ferrugem, maçarico, mesmo as unhas e os dentes. E também o carinho, o amor, a paciência, a tolerância e a persistência. O ódio e a violência, o insulto e a intriga são as armas do opressor. Podemos produzir armas mais criativas e bonitas, criadoras de vínculos e raízes muito mais fortes e profundas. Sem esquecer que estamos todos envolvidos por camadas de correntes construídas por séculos a fio, das mais grosseiras às mais sutis. Procurando e trabalhando em nós mesmos, profunda e sinceramente, aumentamos o alcance e a eficiência do nosso trabalho dentro da coletividade, além do nosso próprio desenvolvimento humano, pessoal. A partir do indivíduo se forma o grupo. Trabalhar nossa própria individualidade é o primeiro passo para trabalhar o coletivo.

Não é um sacrifício ou um esforço enorme fazer o que faço, produzir arte reflexiva. É uma forma de sentir valor na existência. Sem isso, minha vida perde sentido. É uma necessidade, não um "heroísmo". Eu estava perto dos dezenove quando resolvi dedicar a minha vida a produzir ou provocar reflexões, questionamentos, proposições, sempre no sentido da mudança. Isso porque a minha vida não fazia sentido, a angústia era insuportável e eu já começava a vislumbrar algumas razões – e são muitas. Não conseguiria assimilar os valores sociais apresentados como “ideais”.

Preciso trabalhar no sentido de uma sociedade que não admita situações de indignidade, não admita fome, miséria, ignorância, carência de qualquer tipo. Uma sociedade que priorize as situações de fragilidade, priorize os serviços públicos, educação ao nível do melhor ensino, com profissionais vocacionados, assim como no atendimento médico - preventivo e não curativo. Um Estado livre dos vampiros, morcegos, percevejos, pulgas, carrapatos e outros sanguessugas que o enfraquecem, tornando-o incapaz de defender sua população, incapaz de cumprir suas funções constitucionais e garantir os direitos fundamentais de todos.  Uma sociedade em que o valor da vida não seja mais determinado pela propriedade privada. Em que a vida valha mais que a propriedade.

Seria ingenuidade esperar viver numa sociedade assim. Não trabalho para ver o resultado. Trabalho na direção do resultado que eu desejo, não para mim, mas para todo mundo. Conheci muita, mas muita gente trabalhando diretamente no aprimoramento do ser humano e da sociedade. Há pessoas em todos os meios, dos puteiros às intituições religiosas, das escolas primárias aos institutos de pesquisas avançadas, das favelas aos bairros ricos, dos “chópim-center” (por incrível que pareça) aos partidos políticos, das cadeias aos condomínios, dos casebres às mansões. São exceções à regra em todos os lugares e tempos, pedras preciosas no cascalho humano, que distribuem brilho em seu meio, na coletividade à sua volta, seja na profissão que for ou em qualquer atividade. A diferença do ser humano pro garimpo é que, no caso do ser humano, a preciosidade é contagiosa. Consciência chama consciência. Luz elimina trevas. Os acendedores estão por aí, anônimos e atuantes, em toda parte.

Isso me dá a convicção, como se não bastassem as evidências da história do planeta, de que o processo está em curso, um processo evolutivo contínuo e inabalável, com ritmo próprio, individual e coletivo. Nessa visão, moldei minha vida e meu trabalho pelo mundo. É uma necessidade minha, pessoal e intransferível.



Eduardo Marinho, 29 de setembro de 2010.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Observar e absorver - ciclo evolutivo







Quem não gosta de explicação, não leia.


Este ciclo está no sentido anti-horário, a partir da parede velha, descascada e pichada com o lema da primeira facção criminosa anunciada, a Falange Vermelha, nascida no presídio da Ilha Grande, do casamento do crime comum com a política de esquerda, então mais perseguida que o próprio crime. A mão bem vestida espreme um cara sem roupa. É a opressão da grande empresa, do poder econômico, sobre a grande maioria, impondo desde a miséria a uma vida angustiante e sem sentido, passando pela pobreza e todos os níveis de classe média. Na janela, dentro daquela realidade, o observador. Abaixo, correm um homem maior e um menor, o primeiro com um fuzil e o menor com uma pistola - ou revólver; correm por cima de uma corrente que, ao seguir dos olhos, se mostra um trem se movimentando em sentido oposto - ou seja, eles correm sem sair do lugar. Abaixo, o ambiente de sertão simboliza a dureza, a aridez da vida comum. O carcará é o predador, o cacto e o bode são a resistência e as flores são a sensibilidade - peculiar sensibilidade, forte o suficiente pra florescer no semi-árido, na forma de flores miúdas, adaptadas às dificuldades locais e, em contrapartida, resistentes o suficiente para durarem muito mais tempo que quaisquer outras flores de lugares mais amenos, maiores, mais exuberantes, porém frágeis, de vida mais curta.

A máquina de escrever antiga remete ao início das comunicações, ao lado da descoberta da força do pensamento e, em seguida, ao uso do pensamento para a auto-elevação pela meditação, pela reflexão. Estamos na parte de baixo do desenho. A coexistência do ser humano com as formas das outras existências, dos elementos, água, terra e ar, e dos seres da terra, do ar e do mar. Afirma-se o papel das artes na evolução do espírito humano. Um pincel atravessado como um portal e um pintor em ação. Subindo pela direita, a sensibilidade, a frutificação, os instrumentos da arte imaterial, a música, a dança, o teatro - as duas máscaras em contraposição, no alto. De cada ponto da arte surgem linhas que, na seqüência, tornam-se uma pauta musical que se transforma em água que, passando sobre o E de cima, caindo entre o S e o O, lava e alimenta os mananciais, terminando por chegar às grandes porções de água do planeta. No centro, acima, a representação do ser humano mais purificado - final de ciclo, nesta orbe planetária - que, ainda longe de uma inconcebível perfeição, trabalha de outra forma a existência humana. Sem precisar passar diretamente pelas experiências físicas, acompanha-as, inspirando, incentivando, energizando, participando, exultando com os êxitos e sofrendo com os fracassos. Todos têm trabalho a fazer.

Entre as letras, detalhes que, muitas vezes, passam despercebidos; um olho que observa, uma porta fechada, uma boca que grita, uma pessoa na chuva, outra subindo a escada, uma floresta...


Pençá

Fanzine bimestral - Pençá

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Por mim, pelo mundo, pelo ser humano






          Quando fui exilado da família, como traidor, passei a considerar minha família a humanidade inteira. E, vivendo entre os mais pobres, mais discriminados, mais maltratados da sociedade, durante muitos anos, passei a questionar essa estrutura social que deixa tantos dos meus parentes em situações tão injustas, de ignorância, miséria e pobreza, de exclusão, discriminação e preconceitos, desrespeito, humilhação e violência.
          Como se permite tanta fragilidade sem proteção? Como se maltrata os períodos mais frágeis da vida, a infância e a velhice? Como ficar indiferente diante de tanto horror e barbárie? Como podemos, nós todos, como grupo humano, aceitar conviver com esses absurdos, sem questionar as causas?
          Não posso respeitar uma sociedade que não respeita a minha humanidade, que produz seu próprio câncer e usufrui dele, com avidez vampiresca. Não posso assimilar, nem compartilhar dos seus valores, que se desmoronam à primeira análise.
          O produtivismo europeu deliberou e implantou o consumismo, através de técnicas de publicidade e propaganda. O consumo e a posse foram transformados em valores sociais máximos. A miséria é encarada como uma lástima, inevitável e inexplicável – pois é uma necessidade desse sistema perverso. A propriedade é símbolo de valor pessoal. Honestidade, solidariedade, lealdade, compaixão, afetividade são qualidades para serem hasteadas em bandeiras, formando um cenário de aparências, sem relação real com as práticas cotidianas. Deus é prisioneiro das igrejas.
          O império estadunidense é o discípulo que superou o mestre – claro que se aproveitou de um momento de fraqueza, quando o mestre estava estropiado de tanta porrada que tomou na 2ª guerra mundial. E, ainda assim, precisa da sua aliança contra os povos do mundo, em busca das riquezas dos seus territórios. São os impérios do norte.
          Com suas mega-empresas transnacionais, industriais e financeiras, e seu poderio econômico e militar irresistível, interferem nos poderes locais. Infiltram-se em todas as áreas estratégicas dos países, através de elites locais cooptadas e regiamente recompensadas. Sabotam todos os investimentos nas populações, chamando-os de “custo" social. Tomam as comunicações através da mídia privada, criminalizam todos os movimentos em defesa dos interesses dos povos e constroem valores de consumo, valores culturais, desejos e objetivos de vida com o massacre midiático. Seus representantes, defensores e servidores, as elites locais nutrem um ostensivo desprezo por seus compatriotas e uma subalternidade igualmente ostensiva pelos senhores estrangeiros.
          Colocar-se contra a corrente é despertar contra si a estranheza e a discriminação. É ser qualificado de louco ou nocivo, ser banido e evitado. É sofrer o assédio das tentativas de recondução, é ser suspeito de psicopatia ou influência demoníaca. Colocar-se a favor é trair os mais fragilizados, é abrir mão da própria dignidade, ganhar em matéria e perder em espírito, em sentimento e moral, é escolher uma vida suja, vazia e sem sentido, fantasiada de ostentação, desperdício e falsa superioridade. Como os cães em grupo, sabe-se pra que lado se arreganha os dentes e pra qual se abana o rabo e se dobra a coluna.
          As opções estão postas. Eu me recuso a participar de grupos favorecidos com essa estrutura, tenho vergonha de ostentação, não gosto de lugares com seguranças e tenho nojo das salas VIP. Não estou aqui pra curtir a vida, mas sim pra ser curtido por ela.
          E que ninguém pense que condeno os usufrutuários dos benefícios em que se transformaram os direitos tomados da maioria. Os sentimentos de superioridade, a arrogância grosseira e o usufruto excessivo cobram seu preço ali na frente, no corpo afetivo-emocional, na insatisfação permanente, nos incômodos de consciência reprimidos, em angústias sem explicação aparente. Estes beneficiários existem porque a estrutura assim o permite. Mas quem sustenta os poderosos são os subalternos, os explorados. A submissão permite a opressão. Se os explorados não colaborassem com os exploradores, a exploração desapareceria.
          Por isso a mídia se esforça tanto pra desagregar os movimentos, distorcer a realidade, gritar contra qualquer mudança que favoreça o povo. Pra que não se tome consciência da realidade, pra que se mantenha o poder econômico no comando do mundo e das sociedades, pra que se mantenha a barbárie contra a maioria.
          Como impedir mudanças, porém, se tudo muda, até os minerais? Os avanços ocorrem em movimentos ondulatórios e sem controle, embora haja interferências sutis e violentas, diretas ou indiretas, para a contenção. Temos exemplos disso, na América Latina. Enquanto a mídia vocifera, histérica, os processos caminham com suas próprias pernas. Não desanimemos, todos os que trabalhamos por essas mudanças tão necessárias na formação da mentalidade, da sociedade e da própria humanidade.
          Não sei quando a sociedade se tornará mais humana e solidária. Não sei quando se tornará inadmissível um ser humano em condição de miséria, se daqui a dez, duzentos, quinhentos ou mil anos. Sei que trabalho nesta direção, desenvolvendo valores que considero humanos a partir de dentro de mim mesmo e, só daí, para o mundo – pois creio que, se você não vive profunda e sinceramente aquilo que você acha que todos deveriam (embora sem cobrar de ninguém), seu ser perde a força da sinceridade e o trabalho perde alcance - não em número, mas em profundidade.
          Não trabalho para ver os resultados. Trabalho pra dar valor à minha vida. Por mim, pelo mundo e pela minha família humana.

                                                                                                   Eduardo Marinho, 2 de setembro de 2010

Que democracia?




                         O estado democrático é uma falácia, um engodo, uma farsa, uma fraude. É a ditadura do poder econômico, o domínio das estruturas sociais pelo mercado financeiro e pelas grandes empresas. A administração pública, a começar pelos três poderes, executivo, legislativo e judiciário, está dominada pela influência de uma minoria ínfima da população, desviando as prioridades do estado para os seus interesses econômicos, negligenciando as funções principais de servir à coletividade como um todo.
                         Mantém-se o povo ignorante, desinformado, desmoralizado e amedrontado. Ignorante, negando-lhe uma educação que mereça esse nome. Desinformado pelo controle da mídia e das comunicações, distorcendo informações, omitindo, deturpando, de acordo com os interesses econômicos de poucos. Desmoralizado, pela criminalização e perseguição de qualquer movimento que agregue, esclareça, conscientize e defenda a maioria, pela divisão e isolamento das pessoas com a ideologia da competição e do consumo compulsivo, através de uma publicidade massacrante, repetitiva, insidiosa, desonesta. Amedrontado, entre o empobrecimento, a exclusão social e o aparato da “segurança pública”.
                         Periodicamente, alimenta-se a farsa, simulando-se eleições “democráticas”, obrigando à votação em massa, após campanhas publicitárias milionárias, mentirosas, onde o único compromisso que se pensa em honrar é com os financiadores dessas campanhas, esquecendo-se os eleitores. São estatísticas.
                         O povo, sabotado em instrução, em informação, em consciência, em dignidade, não consegue discernir para escolher, não percebe o jogo de interesses ao qual é submetido. Muitos entram no jogo, negociam vantagens, migalhas... e sustentam o controle do jogo. Outros, não querem “nem saber de política”, querem é consumir, desfrutar, possuir, ostentar, ainda que seja sua própria miséria, sua própria pobreza mal disfarçada, sua média classe, sua mediocridade. São os prisioneiros da publicidade, dependem de estímulos externos para sentirem alguma razão no existir. São a grande maioria das pessoas.
                         Há outros e muitos tipos, mas poucos interessados no que fazem nossos empregados – os políticos, executivos e funcionários públicos em cargos de chefia - e como controlá-los e mantê-los a serviço da coletividade como um todo, priorizando as situações de fragilidade e não os interesses dos mais ricos entre os mais ricos.
                         Que não me venham falar em democracia. A ditadura se impõe, insidiosa ou descarada, sobre a ignorância onde é mantida a maioria. O resto é jogo de cena.
                                                                                                                                        Eduardo Marinho

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Que vencedor, que nada




         Diante de uma sociedade que me obriga a coexistir com situações de extrema fragilidade e sofrimento, em que se aceita como "naturais" ou "inevitáveis" realidades como a fome, a miséria e a ignorância, se aponta como valores principais a propriedade, o consumo, a ostentação e se impõe a competição como forma de relacionamento entre as pessoas, só posso colocar minha vida em contraposição às correntes dominantes. Tanto em valores, quanto em comportamento e em objetivos de vida.
         É preciso revelar dentro de nós os valores induzidos pelos meios de comunicação de massa, pelo massacre publicitário, pela propaganda ideológica, psicológica, inconsciente, sub-liminar ou não. Pela pressão social daqueles que aderem aos valores artificiais e, na falta de convicção, precisam impor aos demais, compor grupos e discriminar os que não lhes apóiam valores que, por si, não se sustentam. Temos em nós estes condicionamentos, em maior ou menor grau. São valores-causas do desequilíbrio social - a cultura da competição, em que todos são adversários potenciais, e a do consumo, em que o objetivo principal da vida é consumir, possuir, desfrutar, alcançar o máximo da fartura material, entre a ostentação e o desperdício. São enormes e estratégicas mentiras.
         Não há competição onde há desigualdade de condições. Há covardia.
         A massa dos "derrotados" aumenta, os "vencedores" se empilham em pirâmides de poder e privilégios ascendentes. No topo, o pequeno grupo. Os donos das mega-empresas transnacionais, dos grandes bancos e corporações financeiras, interferindo e controlando as políticas públicas e a mídia para os favorecer e encher, mais ainda, de poder e privilégios, em prejuízo dos direitos básicos da população e das obrigações principais do Estado.
         Este é o sentido das minhas ações, do meu trabalho, da minha vida. Não tenho a ingenuidade de esperar ver o mundo conforme eu gostaria. Também não me é possível aderir a esses valores planejados e implantados como "a realidade", que fazem de irmãos, adversários e do objetivo da vida, o consumo excessivo, a posse, o conforto físico. Perdemos o contato direto com as necessidades abstratas, as principais do ser, o sentimento de integração, a sensação de utilidade ao coletivo, o eqüilíbrio emocional, as relações afetivas, a solidariedade, o senso de justiça, o desenvolvimento da consciência.
         Existe em mim a necessidade incontrolável de plantar idéias, valores, questões, sentimentos. Denunciar as mentiras em que tantos acreditam, os valores falsos, as necessidades artificiais, a mediocridade da vida e a mesquinharia dos objetivos oferecidos. Apregoar os valores do espírito, solidariedade, integração, consciência. Denunciar o egoísmo da mentalidade competitiva, a crueldade - ou indiferença - das minorias dominantes.
         Não espero colher os frutos das árvores que planto. E isso não diminui minha necessidade de seguir plantando, de trabalhar em direção contrária às correntes, aos valores vigentes, nocivos à grande maioria, embora - e por isso mesmo - a submetendo.
         A discriminação, a perseguição dos organismos repressivos da administração pública, o desprezo dos convencionais são, por outro lado, elogios a quem não se submete. Eu teria vergonha de aderir aos valores dessa sociedade perversa. De ostentar riqueza como falso símbolo de vitória. Não estou aqui pra competir. Privilégios me constrangem, desperdícios me dão repulsa e entristecem. Superioridade social é uma encenação ridícula, subalternidade humana é uma ilusão triste.
         Não compartilho dos valores vigentes. Não tenho como andar com as correntes. Sigo somente minha própria consciência. Minha "pobreza" é minha riqueza, minha "derrota" é minha vitória. Teria vergonha, neste mundo, de ser um "vencedor".
                                                                                                                                                    Eduardo



Eduardo

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Manifesto do Teatro Periférico



O texto pode ser aplicado, na minha opinião, a todas as artes, sem exceção, e sobretudo aos artistas.

Ele é uma criação coletiva. Três dos autores são de São Paulo, participaram do festival periférico, acho que em 2007. Eu o li num jornal e o achei muito bom. Tomei a liberdade de interferir, de minha parte, acrescentando aqui e ali, adequando acolá, pondo um pouco o meu jeito - já que iria executar um desenho com o texto. Agora me sinto um pouco autor, também, ainda que não conheça os caras que fizeram o texto que li.

Alguém que os conhece passou em Santa e comentou as modificações, positivamente. Gostou dos acréscimos e tirou uma foto pra levar pros caras. Levou o contato, mas nada. Bom, todos temos muito o que fazer. Se não tivessem gostado, na certa fariam contato, pra protestar.

A eles, minha saudação.

                                                                                                Ademir de Almeida, Claudio Laureatti, Euller Alves e Eduardo Marinho



segunda-feira, 2 de agosto de 2010




Largo do Guimarães, à noite. É onde costumo expor meus desenhos e textos, nos fins de semana, em geral, à tarde. Às vezes fico até a noite. O lugar é a parede que está por trás do bonde, embaixo da casa, com portas fechadas - elas não abrem, tem briga na justiça faz tempo. Chegando ao largo, não tem como não ver.

sexta-feira, 30 de julho de 2010







Objetivos e pontos finais importam menos. Aprender é mais urgente que armazenar informações. Os meios são os fins. A viagem é o destino.
Quando se percebe a vida como um processo, as velhas distinções entre vitória e derrota, sucesso e fracasso, desaparecem. 

Marilyn Ferguson


segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ninguém nasce bandido



Tempos atrás, para chegar em casa, eu passava pelo meio do "movimento", no morro do Fogueteiro, subindo da rua Itapiru em direção a Santa Teresa. Todos me conheciam, morei por ali um ano. Uma vez, eu vinha subindo devagar, de noite, carregado de compras, mais o material de trabalho, quando de um beco sai um moleque pequeno e escuro, com uma bolsa atravessada e uma pistola cromada na mão. No escuro, o cromado aumentava o tamanho da arma e a desproporção com o garoto. Não o conheci e, por instinto, atentei em seus movimentos. Ele caminhou com desenvoltura em direção à turma do "plantão", falou com uns caras da boca, entregou ou pegou alguma coisa que tirou ou colocou na bolsa - não reparei - e saiu andando na direção de uma escada. Dois garotos pequenos jogavam bola perto de um poste mais acima e, nesse momento, deixaram a bola escapar pro lado de cá. Junto com a bola veio o grito - "pega aê!" A bola rolava na direção do menino com a arma e ele virou, levantou a bola com habilidade, matou no peito, fez uma embaixada com os dois joelhos, com os dois pés e devolveu pros meninos no exato local onde eles estavam.

Foi durante esse ato que percebi, meio espantado, ser um menino da idade do meu filho, talvez um pouco mais ou menos. E aí eu pude me dar conta da humanidade dele e da situação em que se encontrava. Tanto que morreu algum tempo depois, como outros que conheci, em tantos lugares.

No desenho eu pretendi inverter o processo de percepção, e escondi a pistola sobre um fundo escuro de uma cerca, para mostrar primeiro a humanidade do menino. Depois, o risco e as opções que lhe são postas, na vida, além de abstrações inatingíveis para a esmagadora maioria, roubada no ensino, na cidadania, na dignidade, nas oportunidades de desenvolvimento real, nos serviços "públicos" e em consciência.

Um outro menino, que chega da escola, de mochila, carregando compras com a mãe, que vem logo atrás, passa tranqüilo pelo fuzil encostado na mesa de sinuca, enquanto os caras do movimento se arrumam com suas mercadorias, funcionários do tráfico nas posições mais expostas e arriscadas, sujeitos a extermínios constantes, mas facilmente substituíveis em meio à miséria circundante. Nesses locais de exclusão, o Estado só se apresenta com a polícia e é quando o terror se implanta na forma mais aguda, pondo em risco a vida de todos na área, matando com triste freqüência envolvidos ou não com o tráfico.
 
Na birosca rola uma cerveja, uma cana, uma idéia, enquanto as mulheres penduram as roupas lavadas nos varais. Há algo de antigo na favela, de quando as casas ainda tinham quintais e espaço.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Resumo da minha vida (até há pouco tempo)



Meu pai era militar e minha mãe, funcionária pública, do IAPC, depois INPS, depois INAMPS, depois... Ele sertanejo (de Nova Cruz, fronteira entre Paraíba e Rio Grande do Norte), ela mineira (descendente de alemães e portugueses).

Nasci no Espírito Santo, saí de lá com um mês de idade, pro Rio de Janeiro. Mas minha primeira lembrança da infância é de Corumbá, no Mato Grosso. Soltei o freio de mão da kombi do meu pai (ele me deixou sozinho, por um instante) e ela desceu de ré a ladeira onde morávamos, indo bater num poste no meio de uma avenida lá embaixo, assustando um burro que puxava uma carroça de abóboras, que empinou e virou com a carroça, espalhando as abóboras e provocando uma confusão danada, com gritos e correrias. Abri um enorme berreiro, com o dedo na buzina (naquele tempo a buzina funcionava, com o motor desligado), até meu pai descer correndo a ladeira e me pegar no colo. Lembro que ele riu da minha cara apavorada e também de alívio. Hoje eu digo, pra descrença geral, que bati o carro do meu pai quando eu tinha três anos. Morávamos lá, em 64, enquanto davam o golpe "militar". Mudamos pro Rio em 66, onde estudei, com minhas irmãs, num colégio de freiras.

Em 68 fomos pra Feira de Santana, onde eu aprendi a comer com farinha (até hoje), moramos afastados da cidade, em área rural, na vila militar dos oficiais. Meu pai era o comandante do 35º Batalhão de Infantaria. Dali voltamos ao Rio, de 71 a 73, e eu fui para o Colégio Militar. Morávamos na Tijuca, ao lado do Clube Municipal. Eu já fazia vários esportes.

Em 74 fomos pra Brasília. Ali, com 15 anos, fiz concurso e entrei pro Banco do Brasil. Pedi demissão dez meses depois, pra espanto geral. Na época, quem entrava pro Banco dava graças a deus e não saía mais, até se aposentar. E foi justamente esta idéia que me apavorou, viver ali a vida toda me parecia um horror. Foi a primeira vez que me chamaram de louco. A próxima experiência foi o exército. Entrei (via concurso) pra escola preparatória de cadetes do exército, pra alívio da família, que imaginou que eu estava com a vida resolvida. Ali eu tomei ojeriza da hierarquia forçada, artificial e sem sentido. E do papel do exército dentro do conjunto da sociedade, depois que me peguei com um fuzil na mão, apontando pra uma manifestação de estudantes desarmados, em frente ao quartel. Havíamos chegado de um exercício de campo brabo, com campo de concentração e tortura, caminháramos 90 km pra chegar de volta no quartel, 2/3 da tropa caiu pelo caminho, o estado interno era deplorável, eu ia dormir quando tocou o alarme, me deram de volta o fuzil e as balas, eu deitei na barricada com a arma destravada e louco pra atirar. Eu era da equipe de tiro, acertava um alvo a 600 metros, a manifestação era, no máximo a 200 m, coloquei o cara do megafone na alça de mira e pedi ordem de fogo, "tenho o líder na mira, tenente". Ele não deu a ordem e eu fiquei puto. Depois, chegou a polícia de choque e dispersou a manifestação, gás lacrimogêneo, cacetetes, gritos, correria. E pudemos ir dormir. Quando acordei, lembrei e fiquei estarrecido comigo mesmo. Saí do exército, pra comoção geral na família.

Meu pai e minha mãe se aposentaram, meu pai foi trabalhar na Eletrobrás do Espírito Santo, e eu conheci o estado onde nasci. Ali, fui corretor de imóveis, mergulhador (captura e criação de lagostas), surfista, maconhófilo, capoeirista e estudante de direito. Na faculdade, conheci os filósofos (ótimos) e seus seguidores (péssimos). Ao ler Marx, disse "é isso!" Mas não durou muito tempo, os marxistas me deram no saco, era muita certeza pra minha cabeça duvidosa. Além do mais, novamente uma hierarquia ridícula se fazia presente. Eu vinha de um ano e meio de exército, tinha cortado um dobrado, vinha um bando de filhinhos de mamãe que tinham tudo na mão e nunca tinham ficado por conta própria querendo exercer superioridade, talvez por saber muito mais textos decorados e se suporem portadores da verdade. Eu desconhecia. Fiz algumas ações de sabotagem, cortei uns fios, pichei uns muros, contestei o sistema daquela maneira lá. Me desentendi com o movimento estudantil, na época controlado pelo PC do B (stalinista). Abracei o anarquismo, depois achei fraco, também, as pessoas eram superficiais. Pregavam, mas não viviam aquilo. Aí eu me desliguei da escola "não quero ser dotô", botei umas coisas na mochila (poucas) e fui experimentar o que é não ter nada, fui procurar um sentido pra vida. E a família me baniu, e não era uma metáfora. "Pode esquecer que teve família um dia", "você não faz mais parte da família", "não nos procure para nada, em nenhuma circunstância". Isso depois de passar por um psicólogo, um psiquiatra e um padre, de última, pra me exorcizar (se eu não tava desequilibrado, nem louco, só podia estar endemoniado). Foi um rompimento geral, não só pai e mãe, mas a família inteira. Eu tava com 19 anos. E aí começou a história...





...continuando...





Passei alguns anos só viajando, de cidade em cidade, às vezes só na estrada, dormindo nos acostamentos, sob as marquises dos postos de gasolina, em construções, casas abandonadas, ruínas. Quando tinha fome, pedia o que comer em casas, restaurantes, postos, onde tivesse, trocava em serviço ou pedia simplesmente, pra seguir viagem. Andava sem dinheiro nenhum, tranqüilamente. Logo nos primeiros tempos, perdi os documentos (que ainda me davam alguma proteção contra as investidas da polícia). Em seguida fui preso pela primeira vez. Acusação: vadiagem. Na verdade, tirei uma onda com uns PMs em Salvador, e eles não gostaram. Como a geral não revelou nada, vadiagem foi o pretexto. Sagrada prisão. Tive que lavar um camburão e fiquei conhecendo o motorista (ou melhor, ele ficou me conhecendo), com quem eu insisti pra abrir a caçapa. Queria lavar lá dentro, depois de lavar toda a viatura. Ele não abriu, mas achou a maior graça de eu fazer tanta questão de lavar lá dentro.

Meses depois ele me salvou numa geral de cana certa, eu carregava umas gramas pra uns gringos meus vizinhos esporádicos na ilha de Itaparica (estava morando em Mar Grande). 50 gramas de preto, de "massa" ou "chá", na Bahia da época.

Na Bahia, também, eu descobri que primeiro cê ouve o zumbido, depois o tiro, numa carreira desabalada ladeira abaixo, em outro "avião". Dessa vez os PMs tavam a pé, e os tiros foram um estímulo tão grande que eles me perderam de vista em seguida, pois eu saí voando. Eu já tinha uma filha, Brisa do Outono, que nascera numa passagem em Vitória. Depois dessa, parei de fazer avião.

Na Bahia tive outra filha, Adhara, quando morava na Aldeia de Arembepe, numa casa toda de palha, minha primeira casa própria, onde vivi dois anos, ao norte de Salvador.

Depois, morei na Boca do Rio, ainda em Salvador, durante uns seis meses ainda, de onde saí por falta de pagamento das contas, mas só depois de ficar sem água nem luz.

Pegamos a estrada e viemos descendo, pouco a pouco, até chegar no Rio, em 85/6. Morei em Saquarema, num sítio de um alemão da Lufthansa que só tinha latinoamericanos de língua espanhola. Depois passei um tempo nas ruas do Rio, morei numa ocupação em Jacarepaguá, depois em Petrópolis, onde perdi o pouco que tinha na enchente de 87 pra 88, e fui pruma comunidade alternativa em Montes Claros, MG, já durante a gravidez de Ravi.

Partimos quatro meses depois e passamos por muitas cidades, até chegar em Sete Lagoas. Ali, ficamos hospedados no Hotel Vitória, por um mês, a convite, sem pagar. Dali fomos a uma cidadezinha satélite de Sete Lagoas, Prudente de Morais, onde moramos por 4 anos (não havia morado tanto tempo num lugar só, ainda). Aí me separei e fiquei com três crianças, sem a mãe, por escolha delas. Fui pra Visconde de Mauá e me escondi no mato, saindo pra vender minhas coisas e bancar as pequenas despesas que tinha. As crianças foram crescendo, eu casei de novo (com uma cearence que hoje é juíza e mudou o nome do filho que nós tivemos, de Manu Moreno pra Emanuel) e mudei pro Rio, desta vez pra um apartamento em Copacabana, um conjugado. Ela me dispensou e voltou pras suas "regalias" de família rica, cansada da minha pobreza material, queria babá, creche, empregada, e me deixou no fundo do poço, de onde eu tirei aquela frase que vendo até hoje, “quem chega ao fundo do poço, precisa lembrar que o fundo é o melhor lugar do poço, pra se tomar impulso”. Morei em Santa Teresa um ano e depois, me estabeleci em Santa Rosa, onde moro até hoje. Aí, já fazendo desenhos a nanquim, pintura a óleo, cenários pra teatro, sempre focado em esclarecer, sensibilizar, questionar, conscientizar.

E estamos aí.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Raul Seixas

                                                                                                                                                                                                    


"Não que me sinta sozinho, quando caminho por entre toda essa gente, de cabeça baixa.
Lastimo e é só.
As ruas se desfazem, quando o caminho pra frente é percorrido.
Não há mais retorno.
Uns há que ficam, e são tantos...
Quero a mão dos que prosseguem.
Quero a certeza dos loucos que brilham,
pois se o louco persistir na sua loucura,
acabará sábio."

"Na casa da ignorância, não há espelho no qual se possa ver a alma."

"Ninguém tem o direito de me julgar, a não ser eu mesmo."



Bob Marley

Albert Einstein




"Não existe nenhum caminho lógico para a descoberta das leis elementares do universo.
O único caminho é o da intuição."

quarta-feira, 3 de março de 2010









"É possível acabar com a exploração dos pobres, não matando alguns milionários, mas esclarecendo os pobres para que deixem de colaborar com os exploradores"

"Sejamos a mudança que queremos no mundo"

"Saber e não fazer, ainda não é saber"

"Não há caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho"

Mohandas K. Gandhi, o Mahatma

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Carta a Isnard

Carta escrita a um novo amigo, de 73 anos, lúcido lutador por um mundo melhor. Aí tem um pouco da minha história.


Meu grande irmão (chamo de grande irmão ao mais velho que me inspira respeito, como de irmãozinho ao mais novo que percebo na busca).


A visão que tenho do mundo se deve a uma série de privilégios que o "acaso" me proporcionou. Nasci numa casa abastada, estudei em escolas particulares até o científico - ou segundo grau, ou ensino médio -, entrando, depois, numa universidade pública - caminho convencional burguês de qualificação profissional para a manutenção do patamar social.

Na minha casa era praticamente proibido questionar a situação social, não por adesão consciente aos valores capitalistas, mas pelo exercício dos condicionamentos planejados e implantados pelos reais poderes da sociedade. Desde a infância, diante das perguntas difíceis de responder, tive que ouvir coisas como "ninguém pensa nisso", "essas perguntas não se fazem", "sempre foi assim e sempre será", "não pense nisso, trate de se preparar para garantir o seu futuro", "ninguém pode mudar o mundo", etc, etc, às vezes com impaciência, "de onde esse menino está tirando essas idéias?", "com quem você anda conversando?".

Entrei para o Banco do Brasil, via concurso, em Brasília, com 15 anos, e em 10 meses pedi demissão - a primeira vez que me chamaram de louco -, angustiado pela falta de sentido daquela atividade, além da repulsa pelos valores com os quais estava convivendo, as razões da existência dos colegas, tidos como universais, e pela incompatibilidade pessoal com a ausência de sentido na vida, para mim, embora visse que fazia todo o sentido, para os outros.

Ainda na adolescência, entrei, também via concurso, na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (encurtando a história, para não ficar maçante), para alívio da família, que já estava me estranhando. Viram nisso a solução para minha vida, sem perceber que eu estava apenas experimentando, tentando me enquadrar, por causa deles mesmos. Quando saí, no segundo ano, a comoção familiar foi enorme. E, de novo, fui chamado de louco. Não teve uma voz que me apoiasse a decisão.

Com a fibra adquirida nos exercícios militares, viajei de carona, dormi nos matos, nos acostamentos, convivi com pessoas pobres. Depois, fui morar com minha família de novo, terminei o ensino médio e entrei numa faculdade pública. O meu meio social me constrangia. A soberba diante dos serviçais me envergonhava. Eu era tido, em alguns momentos, como um cara "muito estranho". Tentava me aproximar dos porteiros, dos garçons, dos faxineiros, com simpatia e respeito e era muito bem recebido, mas nunca como igual. Eu era apenas um "rico" legal. Tratavam-me bem, mas sem a igualdade com que se tratavam entre si. Reservavam-me as melhores porções, avisavam-me quando estava pra rolar alguma "uca", preveniam-me, ajudavam-me, protegiam-me. Mas não era o que eu queria.

Eu queria igualdade.

Quando peguei a estrada, absolutamente sem dinheiro, pedindo o que comer, dormindo sob marquises, em casas abandonadas, construções, ruínas, puteiros, periferias, tinha como objetivo achar algum sentido na vida, entender essa sociedade, alguma razão pra existência que não fosse me garantir materialmente, possuir, desfrutar, consumir. Perguntava, conversava, aprendia, ouvia histórias, me espantava, me emocionava, me comovia, me revoltava, me admirava, me encantava. Nessa época, vivia entre os mais pobres dos mais pobres, a marginália, os "malucos de estrada". Viajei de cidade em cidade, rodei grande parte do Brasil.

Demorou anos pra ser tratado como igual pelos mais pobres, custou muito esforço e alguns dentes.

No dia em que fui tratado com desprezo por um membro da minha antiga classe - não o conhecia -, eu ri. "Finalmente, perdi o cheiro, o aspecto, o astral da minha origem", foi o que pensei, orgulhoso.

Continuei me sentindo privilegiado, pois tinha informação. Mas já não parecia. Aprendi a viver como mendigo, como pária, como louco, como hippie. Aprendi os códigos dos excluídos. Aí pelo segundo ou terceiro ano de estrada, perdi os documentos, carteira do BB, do exército, de motorista, da universidade, tinha até uma em inglês - aquilo me dava alguma proteção contra a perseguição do estabelecimento social. A polícia passou a ser uma ameaça.

Percebi, aos poucos, como funciona o sistema, aprendizado que não termina, pelo menos no espaço de uma vida. Mas o básico é óbvio. O sistema se baseia em alguns pilares. A ignorância imposta à maioria. O excesso, o desperdício, a ostentação dos que podem consumir. A hierarquia social baseada no consumo e nas posses. O sentimento de inferioridade plantado no coração das maiorias, o de superioridade, no coração dos abastados.

"Como as pessoas podem acreditar em tantos absurdos?", questionava. "Como não enxergam o óbvio?"

Faço uma diferença entre propaganda e publicidade. Publicidade apresenta produtos e estimula o consumo; propaganda forma valores, crenças, objetivos de vida. Publicidade trata do concreto, propaganda, do abstrato. Claro que é uma arbitrariedade minha, mas eu me sinto no direito, não sou acadêmico, nem gostaria de ser. Quero ter os pés no chão e falar a língua da maioria, e não me restringir a essa linguagem hermética da academia, pra pessoas "estudadas", intelectuais. Na minha opinião, é isso o que afasta da população esses revolucionários de auditório, de entidades, tendências e agremiações, que alimentam, secretamente, um tremendo desprezo pela população, "tão ignorante", aderindo à velhíssima prática de culpabilizar as vítimas. Querem conduzir as massas - já horrorizei mais de um, dizendo que minha entidade é Oxóssi, minha tendência é heterossexual (sem preconceito) e que, se eles querem conduzir as massas, deviam ir entregar pizzas.

Concordo que as técnicas de propaganda e publicidade são ferramentas sem vontade própria, e que podem ser utilizadas tanto para libertar como para aprisionar. Mas como é que têm sido utilizadas? Como é que têm sido utilizados todos os conhecimentos guardados nas academias? Todos os recursos materiais do planeta?

Reformulo, graças a você, a frase "a publicidade é uma atividade criminosa", retirando o "é" e substituindo por "tem sido". Em Cuba há um autidór com a colocação "consuma apenas o necessário". É possível imaginar isso no nosso modelo de sociedade?

As necessidades mais importantes são abstratas - afeto, integração, solidariedade, utilidade ao coletivo, compreensão, o trabalho interno (e, basicamente, individual) nas grandes falhas (orgulho, egoísmo, soberba, medo,...), conscientização, desapego, a prática de compartilhar, a cooperatividade, o desenvolvimento do discernimento, senso de justiça e por aí vai. Tudo no sentido da evolução humana, individual e coletiva. Mas o foco da vida foi centrado na matéria, em "benefício" de uma minoria de zero vírgula uns por cento e na abastança de pouco mais de vinte por cento de "qualificados" que os servem. As técnicas de propaganda e publicidade estão na linha de frente, não só nos comerciais, como nos jornais, novelas, filmes, programas de tv, de rádio, nos carros, nos ônibus, nas estações, nas ruas, em toda parte - é um massacre.

Eu não diria que a maioria da população é idiota, imbecil, vazia. Diria que é idiotizada, imbecilizada, esvaziada, infantilizada, via técnicas publicitárias (agora, sim) criminosas, com a ajuda inestimável da sabotagem da educação pública e da interferência na educação privada, por pressão dos que controlam as marionetes políticas. Por que se chama os gastos públicos de "custo social" e não de "investimento na população"? Porque está plantado no inconsciente coletivo que "custo" é algo que precisa ser contido, cortado, diminuído ao máximo. Investimento pressupõe retorno. E, no caso, o retorno seria uma população educada, pensante, crítica, capaz de decidir seus caminhos e de perceber as falácias das elites apresentadas por seu porta-voz, a mídia privada. Tudo o que a classe dos dominantes não quer.

Acredito firmemente que, se cada um consumisse o que lhe fosse realmente necessário, o sistema capitalista ruiria, sem remédio. O socialismo seria implantado por conseqüência, com base no esclarecimento do povo. Não com esses socialistas com o rei na barriga, cheios de verdades imutáveis. Esses são uns imbecis, sabem das coisas mas, ao invés de se darem ao trabalho de esclarecer a maioria, ficam vociferando contra os que "representam" o poder e brigando entre suas tendências de esquerda. Pra falar a língua chula, estou com os bagos cheios desses revolucionários. E faço o que acho que deveria ser feito, a começar pela minha própria vida, seguindo a linha gandhiana de "sermos a mudança que desejamos no mundo".

Como você pode ver, minha tendência é bastante prolixa. Tento condensar, mas tenho dificuldade. Às vezes consigo, como no texto "A Mídia Mente - descaradamente", que está no blog e nas minhas serigrafias - das quais tiro meu sustento. Mas olho pro texto e sinto vontade de desenvolver cada parágrafo, pois cada um me parece um tópico a ser desenvolvido, com toda uma gama de idéias a perfilar. Preciso trabalhar no sentido de desenvolver a capacidade de síntese, você tem razão.

E vou terminando por aqui, pra esboçar alguma coerência com o que acabo de dizer.

Um grande abraço, e obrigado por me ajudar o pensamento.

Eduardo

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Por tão poucos terem tanto, é que tantos têm tão pouco








Em cima da palavra 'poucos' há um casal para representá-los, esses, que são 1% da população, ou menos. Chamei-os messiê Deboche e madame Arrogância. Classe das mega-empresas, os concentradores das riquezas, controladores dos mercados financeiros, sentam-se no topo da pirâmide social, vivem isolados da maioria, estão sempre dentro de algum lugar cercado, sentem-se donos. À direita da palavra há uma porta com um segurança, há sempre seguranças entre eles e a realidade. O garçom está num ambiente de pronto serviço, eficiência exigida por esses tipos e seus subalternos graúdos - as cadeiras se assemelham a tronos para simbolizar o sentimento de 'natural' superioridade que eles sentem e emanam, mas o morcego denuncia seu vampirismo social. Eles se sustentam no poder do mundo apoiados pela força das armas - inclusive da segurança pública -, por isso o chão é um fuzil, que divide a sociedade entre os poucos e os tantos, ao mesmo tempo apoiando os poucos que têm tanto e ameaçando os tantos que têm tão pouco, representados na forma urbana da favela, na parte inferior direita - as armas pairam sobre suas cabeças. Aí é o território de exclusão, a área da miséria, de ausência do Estado e da sociedade organizada. A estrada significa haver caminho de saída para esta situação, mas são tantas as dificuldades - as funções do Estado, determinadas pela Constituição, a "carta magna", são ignoradas e não cumpridas, saneamento, condições de vida digna, ensino público que mereça o nome, moradia, alimentação suficiente, higiene, informação, cidadania, nada disso existe para essa enorme parcela da população, muitas vezes nem estrutura familiar-, tantos impedimentos, que um caminhão carregado simboliza ser barra pesada, muito difícil sair por esse caminho. Vêem-se exceções, apontadas como exemplo da possibilidade pra todos, reduzindo a maioria à sensação de incapacidade, impotência e subalternidade.À esquerda inferior há um ambiente de cinema, são as pessoas que assistem à vida, olham o mundo como se fosse um filme do qual eles não participam. Seu pensamento é "sempre foi assim, não tenho nada com isso, cuido é de mim e dos meus", geralmente são pessoas em condições de se qualificar em escolas particulares - e universidades 'públicas'-, alcançam condições de ocupar cargos importantes na manutenção da sociedade como ela é. São entre 20 e 30% da população, hierarquizados organizadamente de acordo com os interesses dos 1%, e disputam as migalhas enormes e variadas da opulência. Como vivem das migalhas do poder, o rato à esquerda os representa com propriedade. São os ricos que o povo vê, ainda que à distância, os subalternos dos mais ricos, dominantes da sociedade e do Estado - esses são difíceis de se ver passar, andam de helicópteros ou, no máximo, em carros blindados, cercados de seguranças, em trajetos curtos. Acima, a escuridão que envolve uma pessoa - nitidamente mestiça - simboliza a ignorância, criada e mantida para envolver a maioria. A vela simboliza luz. Por menor que seja a luz, por maior que seja a ignorância, quando há interesse e vontade, a luz vence a escuridão. É o trabalho da conscientização. A árvore representa a tendência natural, nos vegetais, de ir para o alto e buscar a luz. Aqui há uma analogia com a evolução da consciência. Por isso das suas folhagens mais altas vão surgindo pessoas, subindo pela esquerda, até o alto do desenho, significando a tomada de consciência, quando as maiorias percebem a farsa da "democracia de mercado", com a mídia na linha de frente na formação de opiniões e valores sociais e individuais. Percebe-se, afinal, as falsidades da hierarquia social, a igualdade intrínseca de direitos entre todos. E, deixando de se sentirem inferiores, deixando de reconhecer superioridades artificiais, ocupam naturalmente os lugares que lhes pertencem por direito moral de seres humanos, em igualdade conquistada pela consciência da realidade. O olho representa não só a possibilidade de enxergar a realidade como a necessidade de tomar consciência da realidade, de buscar o porquê e o como de tanta concentração de poder, de tanta perversidade com as maiorias, de tanto egoísmo estimulado, de tanta infantilização e idiotização da esmagadora maioria, de tanta ignorância e, em última análise, tanto sofrimento provocado pela estrutura da sociedade. O olho fala de observar e absorver.



Contra-corrente

A superioridade que eles sentem                                              
e exercem de forma arrogante,
se soma à certeza absoluta                                 
da inferioridade do restante.

Entortam sua sensibilidade,
desdenham o alheio sofrimento
e, em sua sub-humanidade,
a própria crueldade é seu tormento.

Do outro lado é plantada a ignorância
e desejos impossíveis de consumo
fazem o povo de idiota ou de criança
e destróem a esperança em outro rumo.

Os poucos com acesso a demais
desfrutam do roubado à maioria,
alegando direitos tão boçais
que é clara e evidente a hipocrisia.

Usufruir de privilégios, ostentações,
que egoísmo, que vergonha, que maldade!
Apenas desejar tais condições
já demonstra o grau primário da vontade.

Se cada um quisesse e tomasse para si
da vida só o que lhe fosse necessário
ruiria o sistema do egoísmo, e aí
o mundo poderia ser mais solidário.

Com humildade e com dignidade
escolhe a humanidade o mal e o bem,
é preciso trabalhar a sociedade
pra que não se abandone mais ninguém

Se ainda não vivo um mundo assim,
não posso simplesmente ignorar,
não dá pra ver a vida só pra mim,
se quero ter valor no trabalhar.

Sem me conformar, muito menos aderir,
faço meu olhar bem mais profundo.
Observar, absorver, analisar, refletir
e expor tudo em meu trabalho sobre o mundo.

E se e quando eu for de arrasto na corrente poderosa
quero saber que eu andei ao contrário da corrente,
que não vivi atrás de uma vida cor de rosa,
ignorando a injustiça e o sofrer de tanta gente.

Quero saber que lutei o quanto pude,
que não me rendi a pressões nem seduções;
que mantive em minha vida a atitude
de não desejar mais do que preciso
e estar sempre solidário às multidões.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.