No trato com desabrigados* é comum a visão geral, externa e impessoal. Eu mesmo, originário de classe média, via o povo “da rua” como um bloco homogêneo, de fora, sem perceber as particularidades pessoais. Uma realidade estranha, desconhecida, assustadora, desconfortável de ver. Apenas quando vivi entre eles, sendo um deles, é que percebi a imensa riqueza de variações, temperamentos, visões de mundo, caráter, sentimentos, temperamentos e, sobretudo, de histórias.
Parece difícil levar em conta que cada um ali, em situação de miséria e abandono, foi um recém-nascido, uma criança que passou por todas as idades até se tornar adulto, por incontáveis experiências, vivências e acontecimentos nas relações pessoais e com a sociedade. É preciso individualizar e levantar cada história, percorrendo o caminho até chegar na situação do desabrigo - e suas conseqüências.
De que maneira a pessoa chegou ao mundo, como foi recebida pela sociedade, quais as referências que ela teve na sua formação até a idade em que está? Que configuração familiar ela encontrou? Quais os contatos e de que qualidade ela teve com as instituições - polícia, medicina, escola, vizinhança… -, como foi formada sua visão de mundo e seu sentimento na coletividade social? Quantas situações e acontecimentos traumáticos aconteceram na sua vida?
É preciso levantar a história de vida de cada um, individualizando e ajustando o trato a cada personalidade e contexto, percebendo também os crimes que a própria sociedade cometeu e comete cotidianamente contra essas pessoas, sempre vistas como sub-humanas, inferiores, incômodas, expulsáveis, repugnantes e perigosas, em vez de serem vistas como são, roubadas em seus direitos, excluídas dos benefícios da tecnologia e da sociedade em geral, destinadas, quando muito, aos piores trabalhos, mais sacrificados e de menor remuneração.
Entre os desabrigados, famintos, desprezados, repelidos, agredidos, alguns caminham pro crime, que está sempre por ali, convidando de inúmeras maneiras, da “camaradagem” eventual às grandes empresas do crime.
Outros buscam anestésico nos alteradores de consciência, entre o álcool e outras drogas que trazem momentos de alívio, de paz, alegria ou esquecimento da realidade. A dependência chega como conseqüência. Ali está o acolhimento que a sociedade negou, o conforto que nunca houve, a anestesia momentânea pras dores da vida. É preciso compreender primeiro esta situação, quando o objetivo é o resgate.
Respeito verdadeiro, solidariedade sincera, humildade, sensibilidade e calma são ferramentas valiosas nesse trabalho. A conversa franca, a escuta interessada, a compreensão sem julgamentos são caminhos afetivos na criação, no despertar da vontade de receber ajuda e mudar a situação.
* não gosto da expressão “morador de rua”, que parece estabilizar ou normalizar a situação de desabrigo, um crime constitucional (artigo 6º) praticado pelo Estado contra sua própria população - desde sua fundação por europeus. Por isso prefiro “desabrigado”, palavra mais clara que denuncia a omissão da sociedade no cumprimento da chamada “lei magna”, a base da formação do Estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário