segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Eduardo Marinho - ao vivo (Palestra completa)

Palestra acontecida sexta-feira última, dia 16 de dezembro, no Espelho Mágico, em São José dos Campos, promovida por Haedyl e Denise. Longa gravação, feita por Claudio Louro (é sobrenome, não apelido - embora em español seja o contrário, es apellido, no sobrenombre). Perguntas ao final, enriquecendo as idéias. Agradeço o trabalho de preparação, de recepção e receptividade. No dia seguinte houve uma continuação na rua, deve ser publicado na seqüência, por aqui mesmo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Mais um transplante vital pra Celestina, a kombi





A primeira mochila não era nem cheia. Poucas coisas levava. De trabalho apenas uma tabuinha com pregos em oposição nas extremidades, onde amarrava linhas pra fazer umas pulseirinhas bem simplesinhas, um ensaio de trabalho, mais que um trabalho mesmo. Algumas camisas feitas no quarto, de forma improvisada, impressas com alguns desenhos, em casa. Agora não tinha mais quarto, nem casa, nem ferramentas, eu estava solto no mundo e não havia retorno. As garantias sociais haviam evaporado, nada me garantia facilidades ou amparo, em caso de necessidade. A antiga família já não sabia, nem queria saber, onde eu estava. Pulserinhas na mão, pedia mais do que trocava, trocava mais do que vendia. Não precisava de dinheiro mesmo, qualquer merrequinha já era muita coisa, mangueava o que comer, onde dormir, às vezes em casas abandonadas ou construções onde achava alguma entrada, sob marquises nas calçadas, em coretos nas praças, nos postos de abastecimento das estradas.
    Olhos atentos, ouvidos ligados, observava tudo, perguntava, experimentava, aprendia ávido tudo o que podia, ouvindo histórias, comparando vivências, sentindo as pessoas mais que nunca. Comportamentos de classes eram vistos de fora das classes – eu estava nas últimas classes, as de pedintes, mas me diferenciava por conhecer as situações de fartura que ali quase ninguém conhecia. E por saber das pobrezas internas entre os abastados, jamais me senti humilhado com o desprezo social, com o preconceito e a discriminação. Achei natural, necessário e agradável de experimentar, porque me fazia igual entre os debaixo, onde eu descobria as relações mais humanas que eu já tinha visto. Nunca me arrependi e nunca me senti humilhado ao ver desprezo e preconceito comigo. Estava imune, ganhando humildade.
    Mente analítica, alma sensível, andei o quanto pude, por onde pude, conhecendo, vivendo, aprendendo, por anos a fio pelo território, caminhando, viajando de carona, cidade em cidade, de periferia a periferia, indo aos centros pra satisfazer as necessidades e só. Com as memórias do tempo farto, das relações entre privilegiados, e com as vivências despossuídas e convivências entre os que não têm nada, fui montando pouco a pouco o quadro social.
    O trabalho foi se tornando mais importante, já queria escolher o que comer, já havia uma filha pequena, precisava pagar aluguel e contas. Fazia brincos, pulseiras e colares que foram melhorando em qualidade, fiz bolsas e sapatos de couro, fiz pão integral pra vender, nos períodos em que estava morando em algum lugar. Quando não estava, era o metal a base do trampo, em fio, em chapa, usando sementes, contas, espinhos, penas, dentes e unhas de animais mortos que encontrava nos caminhos, geralmente atropelados. Usava então mochila maior, carregava mais coisas, havia bolsas e volumes além da mochila.

                                                                             
    A uma certa altura dos acontecimentos, comecei a sentir vontade de colocar o que eu pensava no meu trabalho. Aprendi a gravar chapa de metal com corrosivo. Bacias de corrosão, maçarico, tesoura de cortar metal, vários alicates, pedra de amolar, soldas e apetrechos já somavam volumes. Quando saímos da Bahia, já com duas crianças, tive que fazer uma mochila, com lona de caminhão pra ser impermeável, enorme de tamanho pra caber a maior parte das coisas. Durante a viagem pro sudeste, pesei numa balança e estava pesando quarenta e cinco quilos. Além de todo ferramental, levava as coisas das crianças, as minhas, um fogareiro com um pequeno botijão, duas panelas e ainda comida.
    Paramos no Rio, dois meses de rua, depois Saquarema, Rio Seco, rua de novo, ocupação na Tirol, na Freguesia em Jacarepaguá, depois Petrópolis. Quando saímos de lá pra Montes Claros, tive que dividir as coisas, uma parte ficou esperando vir buscar - e se perdeu na enchente de 87 pra 88. E o que foi levado, básico pra sobrevivência, já não cabia nas mochilas e bolsas,  ferramentas iam num caixote enorme e pesado. De Montes Claros a Sete Lagoas, de Sete Lagoas a Prudente de Morais. Ali nos instalamos, nos dividimos, nos separamos em duas casas e vivemos quatro anos.
    Quando saí dali, em 92, sozinho com os três, não pude ir de carona. Fomos de ônibus até Visconde de Mauá, região serrana onde moramos em várias casas, por quatro anos. No final, um segundo casamento me trouxe um pequeno carro que passou a transportar as coisas e fez a mudança pro Rio.      O casamento acabou, o carro se foi e eu consegui, pouco a pouco, trazer meus filhos de volta dos dois anos que passaram com a mãe – dois deles, pois uma esteve comigo todo o tempo e foi quem me significou a saída do buraco escuro em que caí quando acabou. Eu precisava correr atrás, todo dia, por ela. E o tempo passou e toda ferida cicatriza.
    Segui dizendo o que pensava, minha visão de mundo e opiniões através do meu trabalho, então era o centro de atenção, falar com minhas artes o que me explodia no peito, a inconformação com esta estrutura social injusta, perversa com seus melhores e mais necessários membros. Já se iam mais de quinze anos nessa lida, minha vida e meu trabalho haviam se tornado a mesma coisa.
    Comprei uma bicicleta, saía com ela lotada de mercadorias, todas feitas à mão, com minha idéia e criações. Bagagem atrás e na frente, levava desenhos em papel, em camisas, em adesivos, ímãs, livrinhos... Cheguei a fazer viagens, a Parati, a Volta Redonda, a Visconde de Mauá. Os filhos cresceram, ganharam o mundo, fiquei só em casa. Foi quando tia Christina morreu. Ninguém esperava, mas ela tinha feito um plano de previdência pros dezenove sobrinhos que tinha e aí eu pude comprar a Kombi, num depósito em São Gonçalo, abandonada por uma pastora que não estava usando havia dez anos. Teve que trocar motor, instalar freios, trocar carburação, velas, distribuidor, bateria...
    Quando finalmente começou a funcionar sem problemas, me senti um privilegiado – não de privilégios sociais, mas de poder transportar minhas coisas e fazer o que sempre gostei, dirigir, ainda mais kombi. Senti aumentar minha responsabilidade com o privilégio, agora precisava encher com mercadorias reflexivas, minha proposta de trabalho e de vida. Aos cinqüenta e quatro anos, passei a viajar de kombi.
    A primeira viagem longa foi ao Rio Grande do Sul. Santiago, Santa Maria, Porto Alegre, Restinga, Sarandi, palestras e exposições. Fora pequenos problemas fáceis de resolver, troca de velas, aperto em porcas frouxas, tudo correu tranqüilo. Viagens próximas, Mauá, Belorizonte, se sucederam. Uma viagem ao Vale do Capão contou com mais de setecentos quilômetros de estradas de terra, perdeu-se um trinco da porta de trás, a barra estabilizadora da direção partiu, a homocinética esquerda quebrou. Eu tinha de reserva exatamente a homocinética que precisava, a barra foi soldada em Jequié, o trinco foi improvisado num serralheiro.
    Então começou a saga. Vazamento de óleo, que ninguém localizava a causa. Fui no João aqui do Viradouro, ele cobrou quatrocentos paus – o dinheiro minguava nos estertores finais – pra abrir, trocar o filtro de óleo, ajustar os flautins, regular os tuchos. Fomos pro sul, palestras em Floripa, Curitibanos, Guaporé, Cachoeirinha e Porto Alegre. Em Floripa, vendi como nunca, Clara nos desenhos enquanto eu palestrava. Fiquei pasmo com a quantidade de grana – nunca havia vendido tanto em tão pouco tempo – mas não sabia que ela ia ser toda necessária. Na subida da serra pra Curitibanos, por falta de óleo, o motor quebrou definitivamente. Passamos uma noite em Rancho Queimado e voltamos a Floripa com um caminhão guincho. Um amigo nos indicou um mecânico da confiança dele e deixamos a kombi pra ir cumprir os compromissos de ônibus. Na volta, ele apresentou um motor pra colocar, em preço vantajoso e em pouco tempo. Uma semana depois, saíamos de Floripa. O motor não estava em boas condições de verdade, bateu antes de chegar em Sampa. Incompetência ou má-fé? Não importa, isso não muda o resultado.
    Outro guincho, hospedagem na Ana Rosa, em Sampa, aparece um mecânico oferecendo um motor “em ótimas condições” e com um preço bem baixo “pra qualidade dele”. Mecânico de fama, com vídeos sobre os diversos problemas de motores, inspirava confiança, conhecimento e experiência. Senti que podia confiar no motor, o cara sabia tudo sobre motores a ar, pelo que parecia. Mil e quinhentos reais pagos ao dono, uma mixaria pra um motor tão bom, segundo o mecânico. Ele nem cobrou o serviço de retirada do velho e colocação do novo, só queria fazer um vídeo do processo. Achei ótimo, não teria mais dinheiro mesmo, estava de final de grana, salvando com as exposições na avenida Paulista. Retribuí como pude, deixei com ele e sua filha uma quantidade de desenhos, nem contei, juntei um de cada numa pacote só e entreguei de presente, pra sua surpresa.
    Senti que podia confiar, mas mais uma vez senti errado. Quatrocentos quilômetros rodados e parecia desandar, perdia potência, o óleo descendo o nível, eu completava, queimava óleo e saía fumaça. Cheguei em casa desse jeito, levei num mecânico aqui da rua, bom, mas caro, e ele  desconfiou do motor, pediu pra levar numa retífica, eu não acreditei, argumentei, disse que o motor tava garantido pelo melhor mecânico de que tinha notícia. Ele respondeu que o barulho era indicador de problemas nos cabeçotes, talvez anel de segmento nos pistões, coisa interna. Resisti e não levei. Mas a coisa piorava, o motor esquentava até parar, era preciso estacionar, abrir a tampa e esperar esfriar, saía fumaça do suspiro do óleo.
    Apareceu o Claudio Louro, me apresentou os mecânicos de família, pai, mãe, tia, o filho, todos tinham carros com motores a ar, fuscas e kombi. Os caras desmontaram o motor, apontaram a necessidade de retífica em vários pontos, os cabeçotes estavam condenados, um deles com uma trinca enorme. Nos encaixes dos eixos internos, arranhões e sulcos inviabilizavam o motor. A retífica recusou o serviço, apontando o motor como irrecuperável. Na opinião unânime dos mecânicos, o motor fora “engatilhado”. Eu não sabia o que era isso, me explicaram: “arrumado pra vender e quebrar logo depois”. Simples assim.
    Fiz saber a ambos, o dono do motor e o mecânico, do acontecido. O primeiro nem se manifestou em resposta. O mecânico reclamou por eu não reconhecer o seu trabalho e esforço. Bueno, cada um com seu caráter. Eu, no lugar do primeiro, devolveria a grana e me desculparia – claro que se eu soubesse do estado do motor, jamais venderia, muito menos o disfarçaria. No lugar do segundo, se não soubesse das condições do motor – o que acho improvável, embora possível –, iria reclamar com o dono, pois teria empenhado meu nome na garantia moral de que era um ótimo motor, e exigiria dele a devolução da grana ou cortaria relações pessoais com ele, assumindo a dívida, mesmo que não pudesse pagar. Assumiria porque minha consciência não me perdoaria se não assumisse. Mas não posso cobrar de outra pessoa que tenha a mesma consciência e o mesmo comportamento que eu teria.
    Cada um é cada um, com sua consciência, suas decisões e suas conseqüências. Trato do que tenho pela frente. Ao invés de voltar atrás pra cobrar, brigar, me aborrecer e estragar meus dias, prefiro correr atrás de um motor que funcione, trabalhar mais pra arrumar a grana, sem me aborrecer, fazendo meu serviço de causar reflexões, questionamentos, pensamentos e sentimentos por aí. Trato como uma fatalidade porque não gosto de trabalhar com culpas, mágoas e rancores. Muito menos manter contato com quem já deu sinais de omissão e fraqueza de caráter. São os mais difíceis e desagradáveis de tratar, ainda mais quando se trata do ponto mais sensível de pessoas assim, o bolso. Eu não tenho esse apego todo e prefiro perder o motor a entrar em conflitos e desequilíbrios tão detestáveis. Confiei, não foi? Agora pago o preço pela confiança em quem não é de confiança. Segue a lida.
    Nos primeiros movimentos neste sentido, as vendas não têm sido boas além do necessário pros gastos cotidianos e vejo a demora se desenhando, enquanto a kombi ocupa lugar numa oficina lá na Piedade, onde mora o Claudio. Não é pra ficar muito tempo, mas tá difícil.
    Várias pessoas sugeriram fazer um financiamento coletivo, mas não me senti no direito, afinal, a kombi é pra mim, ferramenta do meu trabalho que será feito, com ou sem viatura, apenas com mobilidade e capacidade de carga mais restritas. Achei que era uma função minha. E devo reconhecer que neste setor de ganhar grana sempre fui um fracasso, até porque nunca me preocupei em ganhar mais do que precisava pras despesas mínimas. Vejo pessoas que têm esse dom, mas não é o meu caso e não lamento por isso. Apenas nesse momento seria muito bom ter esse dom, mas não tenho. Aí me disseram que meu trabalho é coletivo e que havia gente disposta a colaborar na recuperação da Celestina. Resisti à idéia, mas com o passar dos dias essa resistência foi enfraquecendo. É verdade, a kombi me leva a mais gente, mais rápido e com muito mais coisas pra espalhar por aí, entre desenhos, livrinhos, ímãs e outras coisas em maior quantidade que em qualquer tempo da minha vida. Uma viagem pra palestra pode se desdobrar em palestras várias, nas periferias e associações, onde eu for chamado, locais que não teriam condição de bancar minha viagem. Então mudei minha posição.
    O esquema deve ser o mais informal possível. Há motores de fábrica, novos, o da kombi tá custando mais de onze mil reais, mais do que paguei na kombi... chega a ser engraçado. Há motores em condições de durabilidade – agora estou bem acessorado – que ficam entre quatro e sete mil. Se pessoas se juntarem pra arrecadar até mil reais, posso garantir uma visita com palestra e exposição, se estiverem num raio de quatrocentos quilômetros. Mais que isso, vou precisar de ajuda no combustível. Nunca cobrei uma palestra, mas estas seriam em retribuição por me ajudarem a recuperar a mobilidade que a viatura me dá. Os que me arrumarem quinhentos, podem indicar cinco desenhos pra eu enviar pelo correio (vendo a quarenta e cinqüenta reais, mas nesse caso seria uma ajuda e uma retribuição, não uma compra). Os que encomendarem desenhos, simplesmente, pelos seus próprios preços, também estarão contribuindo pra levar adiante essa vida de trampo que eu levo, completando os gastos com as despesas além kombi. E quem quiser contribuir de qualquer forma, com qualquer quantia, estarei atento às doações e aviso quando atingir o objetivo. Se sobrar alguma coisa, há inúmeros reparos a serem feitos, dobradiças a soldar, trincos a consertar, fechaduras por colocar, uma série de pequenas coisas por fazer. Estes reparos não estão na prioridade, por isso esperam as possibilidades. Tampouco estão no objetivo desta convocação de colaboração internética. Mas satisfações serão dadas na medida da minha consciência. Peço pra me enviarem os comprovantes de depósito pra eu fazer uma lista dos doadores, serão de alguma forma amigos da Celestina e, se rolar ocasião, agradecerei pessoalmente.
    Não sei se posso fazer melhor que isso, tô aceitando sugestões.

A conta pra depósito é uma poupança que abri pra trocar cheques, há tempos. Agora serve pra receber as encomendas que envio pelo correio. E vai servir pra receber essa ajuda pra arrumar a kombi e voltar a circular com ela pelo território, levando material reflexivo, questionador, pretensiosamente conscientizador.

Hoje, nove de dezembro, encerra-se a necessidade de contribuições pra kombi, o que rolou já deu pra resolver não só os problemas do motor, mas vários outros menores que estavam esperando pra serem resolvidos, conforme as possibilidades. Agradeço a todos. Sigo pondo no meu trampo o que vejo e o que penso, e levo aonde eu for. Celestina é ferramenta nisso, a última e já importante.

Ah, sim, gostaria que todos os participantes da "vaquinha" mandassem comprovantes de depósito pro arteutil.em@gmail.com, pra fazer a lista dos financiadores do motor.

Estrada gaúcha.
Serra de Visconde de Mauá
Trocando janelas, em Belo Horizonte.
Via Dutra, Sampa - Rio
Br-116, Bahia.





domingo, 4 de dezembro de 2016

Eduardo Marinho - sobre Deus ou espiritualidade.

O planeta Terra, em sua proporção astronômica, é uma poeira cósmica girando em torno de uma estrela anã (o sol), insignificante, na periferia de uma galáxia de cem bilhões de estrelas, quase todas maiores do que o sol, com dezenas, centenas de planetas, cada um com seus satélites, luas a perder a conta, em suas órbitas, estrelas dez, cem, mil vezes maiores que o nosso solzinho, estrela-anã. Imaginar (criar a imagem) destas dimensões exige uma certa concentração e algum senso de espaço. É preciso se projetar na imensidão do espaço universal e preceber a insignificante participação do nosso sistema diante do infinito existir perceptível. 

Se levar em conta que essa galáxia espiralada em que existimos (a via láctea) é também uma das mais simples e menores entre os duzentos bilhões (!) de galáxias contadas e catalogadas por inúmeras gerações de astrônomos, algumas com trilhões de estrelas, sóis com seus sistemas planetários, aí se começa a ter noção da nossa insignificância. Dessas dimensões universais, podemos perceber que somos um pequeno grupo de viventes numa poeira cósmica e, a partir daí, assumir o fato de semos uma família planetária em evolução permanente em meio a todo o movimento universal, em mutação eterna. Chega a ser irracional imaginar que só tem vida aqui na Terra e do jeito que conhecemos.

Essa visão toda, a meu ver, serve pra gente deixar de ser besta, primitivo e inseguro e parar de criar divindades que só nos separam, distanciam e criam confronto, e perceber que nossa necessidade maior está entre nós, nas formas de nos relacionarmos, nos valores truncados que nos enfiam goela abaixo, no desenvolvimento da sociedade humana de verdade. Não esse desenvolvimento mentiroso, que só aponta economia e tecnologia, mas o desenvolvimento moral que nos permitiria simplesmente atender a todas as necessidades de todos os seres do planeta, pois condições materiais pra isso já existem, o que não existe é o desenvolvimento moral e de consciência. Enquanto focalizamos deuses imaginários, geralmente machos – generosos e amorosos mas vingativos e cruéis ao mesmo tempo – concepções ridículas (me perdoem os religiosos) que tiveram sua função, a de acalmar o primitivismo humano com castigos e prêmios, dispersamos as nossas possibilidades de construir uma sociedade harmônica, sem tanta miséria e abandono, violência e criminalidade.

É preciso perceber que a espiritualidade se manifesta na conduta, no caráter, no temperamento, no dia a dia, no relacionamento com as pessoas e com os acontecimentos. Nos sentimentos que se produzem, tanto dentro de si como ao seu entorno, nas pessoas com quem se trata. No templo todo mundo é "santo", devoto, contrito e bajulador do seu deus. Mas a revelação se faz nas atitudes, tolerantes ou intolerantes, amorosas ou raivosas, humildes ou arrogantes, compreensivas ou julgadoras. A crença ou não crença importa menos. O que se acredita pode mudar de uma hora pra outra, conforme circunstâncias da vida, é o que tenho visto por aí. Mas o que se faz é determinante, fez tá feito, a conseqüência tali na frente. "Não importa o que tu pensa, "mo fio", importa é o que tu faz". Ouvi isso de uma entidade num terreiro de candomblé, em Salvador, numa festa de Cosme e Damião. Foi uma das coisas mais sábias que já ouvi.

Não preciso acreditar em nada, assumo que não sei e assim fico menos fechado na percepção da realidade. Além do mais, se minha espiritualidade está na matéria, é na matéria que devo exercer e desenvolver minha espiritualidade, não nas projeções pra além da minha capacidade de compreensão, que se demonstram historicamente como fonte de conflitos e disputas, totalmente de acordo com um modelo social que nos estimula conflitos e disputas, uma sociedade altamente competitiva que nos atira intencionalmente uns contra os outros - no interesse egoísta, ambicioso, ávido e perverso de um pequeno grupo de podres de ricos que domina os Estados, os mercados sobretudo os financeiros, as comunicações, o modelo de ensino e tudo o que podem, criando a mentalidade, os valores, os desejos e objetivos de vida. Essa estrutura social depende do comportamento geral, daí a mudança mais premente - e eficiente - ser a mudança interna, a que muda o comportamento.

Se aproxima o momento de dispensar a religiosidade e perceber que ninguém escapa da espiritualidade.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.