domingo, 27 de novembro de 2022

A vida no Bolsonistão

 

Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.


Al­ta­mira se tornou um dos prin­ci­pais cen­tros do Bol­so­nistão. Se Al­ta­mira fosse o Brasil, Bol­so­naro teria ven­cido no pri­meiro turno, quando al­cançou quase 58% dos votos, contra 36,9% de Lula. No mo­mento em que es­crevi este ar­tigo, havia um grupo de ma­ni­fes­tantes acam­pados em frente ao 51º Ba­ta­lhão de In­fan­taria de Selva, que fica no li­mite da ci­dade, pe­dindo uma “in­ter­venção” – leia-se golpe mi­litar. Em frente ao ba­ta­lhão, vá­rias chur­ras­queiras a pleno vapor. A chur­ras­cada foi pro­me­tida para a po­pu­lação caso Bol­so­naro fosse eleito pre­si­dente. Com a der­rota, a carne que falta na mesa de mi­lhares de pes­soas nas pe­ri­fe­rias de Al­ta­mira foi usada para agregar “sim­pa­ti­zantes” em torno do pro­testo gol­pista. Carne, re­fri­ge­rantes e ou­tros gê­neros che­garam em caixas en­vi­adas por co­mer­ci­antes e em­pre­sá­rios lo­cais, o que ajuda a manter viva a re­volta gol­pista contra o re­sul­tado le­gí­timo das urnas.

No dia se­guinte ao se­gundo turno, re­gis­trei o pro­testo em vídeo duas vezes. Achei que es­tava pas­sando des­per­ce­bido. Neste do­mingo, fui mais uma vez. O ce­lular foi to­mado da minha mão. En­quanto eu pro­tes­tava aos gritos, uma roda de ama­re­li­nhos se formou ao meu redor. Tive que ne­go­ciar com um dos lí­deres da di­reita local a de­vo­lução do apa­relho, em troca do com­pro­misso de apagar o vídeo. Ele me disse que, nas oca­siões an­te­ri­ores, havia pes­soas prontas para me agredir. Des­co­briram meu nome e agora me atacam nas redes so­ciais. Fui avi­sado de que cir­cula por What­sApp a men­sagem de um mi­litar do meu bairro que disse ter von­tade de me “dar um tiro”.

Vivo em Al­ta­mira, uma das prin­ci­pais ci­dades do arco do des­ma­ta­mento, na Amazônia, há 14 anos. É a pri­meira vez que estou as­sus­tado, a ponto de me afastar do de­bate po­lí­tico com a so­ci­e­dade local. Vá­rios dos em­pre­sá­rios que fi­nan­ciam as ações gol­pistas en­ri­que­ceram com a gri­lagem de terras, através de fraudes em pro­jetos de de­sen­vol­vi­mento re­gi­onal da di­ta­dura mi­litar-em­pre­sa­rial (1964-1985). Vá­rios deles hoje plei­teiam pe­daços de terra já in­va­didos e des­ma­tados na Terra In­dí­gena Ituna-Itatá, onde há re­gistro de pre­sença de povos iso­lados, a cerca de 100 quilô­me­tros da ci­dade. Quando con­tes­tados, dizem que os in­dí­genas “de­sa­pa­re­ceram”. Claro, ater­ro­ri­zados, com sua terra toda in­va­dida por mi­lí­cias ar­madas, eles se eva­diram para áreas mais re­motas.

Em sua ma­ni­fes­tação em frente ao quartel, os se­gui­dores de Bol­so­naro gri­tavam: “Li­ber­dade, li­ber­dade”. Quem vive na Amazônia sabe que a “li­ber­dade” que de­fendem é a li­ber­dade para in­vadir terras pú­blicas, queimar, des­matar, ga­rimpar, tirar ma­deira. Não é acaso o fato de Al­ta­mira ser a campeã em emis­sões de dió­xido de car­bono do Brasil, à frente in­clu­sive da ci­dade de São Paulo. Há uma cor­re­lação ex­plí­cita entre o arco do des­ma­ta­mento da Amazônia, a área de maior in­ten­si­dade de ati­vi­dades pre­da­tó­rias des­tru­tivas do meio am­bi­ente, e as áreas onde Bol­so­naro teve suas vo­ta­ções mais ex­pres­sivas.

De­sem­bar­quei na ci­dade em 2008, após ser apro­vado no con­curso para uma vaga de ecó­logo na Uni­ver­si­dade Fe­deral do Pará (UFPA). Minha li­gação com a re­gião amazô­nica, porém, co­meçou em 1996, quando ini­ciei meu con­tato com os Kayapó como es­tu­dante de bi­o­logia na Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP). Apai­xonei-me pela flo­resta amazô­nica da bacia do Xingu e pela cul­tura com­ba­tiva desse povo. Mas a re­a­li­dade que en­con­trei em Al­ta­mira, anos mais tarde, foi to­tal­mente di­versa: uma ci­dade que odeia a flo­resta, des­preza os in­dí­genas e faz de tudo para re­negar sua origem. Quase não há ár­vores pelas ruas, e as poucas que existem vão sendo ra­pi­da­mente de­le­tadas da pai­sagem ur­bana. Nestes úl­timos anos, fiz do en­torno da casa que cons­truí uma flo­resta, mas tive meu ter­reno in­va­dido re­cen­te­mente por um vi­zinho que en­ve­nenou al­gumas ár­vores que lhe co­briam par­ci­al­mente a vista do rio Xingu. Em vez de pro­testar, fui obri­gado a me con­formar ca­lado, pois se trata de um gri­leiro que cos­tuma re­solver seus pro­blemas à moda an­tiga. Gasto parte subs­tan­cial do meu tempo de tra­balho ten­tando jar­dinar e ar­bo­rizar o campus da UFPA, com frequência em con­flito com aqueles que con­si­deram as ár­vores uma ameaça às es­tru­turas fí­sicas da uni­ver­si­dade.

Quando che­guei, o rio Xingu corria livre e belo em frente à minha casa. Al­ta­mira tinha um ritmo pa­cato, trân­sito tran­quilo e praias de areia branca onde o povo se di­vertia nos fi­nais de se­mana. Isso até a cons­trução da Usina Hi­dre­lé­trica de Belo Monte, que trans­tornou a pai­sagem, com a inun­dação das praias, o apo­dre­ci­mento do rio, a de­gra­dação ur­bana e so­cial e a ex­plosão da vi­o­lência.

A imagem do pre­si­dente Lula de mãos dadas e er­guidas com Tuire Kayapó é, para mim, a sín­tese da cam­panha elei­toral de 2022. Tuire ficou mun­di­al­mente co­nhe­cida em 1989 ao en­costar seu facão no rosto de um di­retor da Ele­tro­norte, José Antônio Lopes, quando ele de­fendia a cons­trução da hi­dre­lé­trica, cha­mada na época de Ka­raraô. Lula, por outro lado, que chegou à pre­si­dência pela pri­meira vez cer­cado por grandes ex­pec­ta­tivas para a con­ser­vação da maior flo­resta tro­pical do pla­neta, de­cep­ci­onou in­dí­genas e ati­vistas am­bi­en­tais ao de­sen­ga­vetar aquele an­tigo pro­jeto da di­ta­dura.

En­quanto o país crescia sob ine­gá­veis avanços so­ciais pro­por­ci­o­nados pelos go­vernos pe­tistas, em Al­ta­mira nós de­nun­ci­amos re­pe­ti­da­mente a in­vi­a­bi­li­dade téc­nica e econô­mica, assim como as ter­rí­veis con­sequên­cias so­ci­o­am­bi­en­tais da­quela que era con­si­de­rada a maior obra do setor elé­trico do Pro­grama de Ace­le­ração do Cres­ci­mento (PAC). Em 2010, fomos re­pri­midos pela Força Na­ci­onal quando ten­tamos pro­testar du­rante a vi­sita do então pre­si­dente Lula à ci­dade, onde de­sem­barcou para de­fender Belo Monte. Iro­ni­ca­mente, na oca­sião, Lula con­fra­ter­nizou com muitos dos que hoje o ca­lu­niam, lu­taram contra sua eleição e cir­cu­lavam pela chur­ras­cada gol­pista di­ante do quartel do Exér­cito. Belo Monte ma­te­ri­a­lizou-se no Xingu, e todas as nossas pi­ores pre­vi­sões se con­fir­maram.

So­mente uma re­vi­ra­volta po­lí­tica tão grande para con­verter os opo­si­tores de Belo Monte em fer­vo­rosos de­fen­sores da eleição de Lula. A forma cri­mi­nosa como o atual go­verno, sob res­pon­sa­bi­li­dade di­reta de Jair Bol­so­naro, agiu di­ante da pan­demia, foi res­pon­sável pela morte de quase 700 mil bra­si­leiros. Perdi dois amigos de Al­ta­mira e do Xingu: o ma­ra­vi­lhoso re­pórter fo­to­grá­fico Lilo Cla­reto, que mo­rava na ci­dade re­tra­tando as vi­o­la­ções am­bi­en­tais e hu­manas cau­sadas pela cons­trução da hi­dre­lé­trica de Belo Monte, e meu irmão na cul­tura Kayapó, o ca­cique Pau­linho Pai­akan, que no final dos anos 1980 foi a mais im­por­tante li­de­rança na luta contra a cons­trução da hi­dre­lé­trica. Bol­so­naro só não foi de­nun­ciado pela CPI da Pan­demia por crime de ge­no­cídio por uma tec­ni­ca­li­dade. Se­gundo al­guns, o ge­no­cídio teria que ser uma ação vol­tada contra grupos ét­nicos es­pe­cí­ficos, en­quanto os crimes de Bol­so­naro na pan­demia te­riam sido contra todo o povo bra­si­leiro. Acei­tando-se tal de­fi­nição, o con­ceito po­deria ser apli­cado ao tra­ta­mento dado por Bol­so­naro es­pe­ci­fi­ca­mente aos povos in­dí­genas.

Bol­so­naro pro­meteu du­rante a cam­panha de 2018 que não de­mar­caria nem um cen­tí­metro mais de terras in­dí­genas, con­tra­ri­ando a de­ter­mi­nação da Cons­ti­tuição de 1988, e cum­priu a pro­messa à risca. Pior que isso, in­cen­tivou o ga­rimpo ilegal nas terras in­dí­genas, tanto em suas falas quanto no des­monte dos ór­gãos de fis­ca­li­zação e no apa­re­lha­mento da Funai. Vá­rias al­deias na Terra In­dí­gena Kayapó, que co­nheço mais pro­fun­da­mente, ce­deram às pres­sões e abriram seus ter­ri­tó­rios para o ga­rimpo. Ou­tras ainda re­sistem. Aukre, a minha al­deia, fun­dada por Pau­linho Pai­akan, aonde re­torno todos os anos para me re­co­nectar com a flo­resta, re­sistiu aos ga­rimpos até aqui. Mas di­fi­cil­mente re­sis­tiria a um novo go­verno Bol­so­naro.

Foi uma cam­panha elei­toral vi­o­lenta, com abusos de poder econô­mico e do uso da má­quina pú­blica por Bol­so­naro. Vi muita gente das classes D e E em Al­ta­mira com medo de ex­pressar sua opção por Lula, an­dando nas ruas, a pé ou de bi­ci­cleta, aten­dendo nas lojas com medo do pa­trão. Mas até nisso Al­ta­mira é de­si­gual. Só por ter um carro, sou con­si­de­rado “rico”. Achei que es­taria me ar­ris­cando ao en­cher meu carro de ade­sivos de Lula. Mas não, tudo o que ouvi foi o apoio de pes­soas que la­men­tavam não poder fazer o mesmo. Por medo.

Quem so­freu por isso foi meu filho ado­les­cente, que ma­tri­culei na­quela que ima­gi­nava ser a me­lhor es­cola da ci­dade. Quando seus co­legas viram os ade­sivos no meu carro, ele passou a so­frer bullying de boa parte deles, fi­lhos de bol­so­na­ristas. Che­garam a cercá-lo di­zendo que, se ele é “es­quer­dista”, não po­deria ter ce­lular. Fico pre­o­cu­pado com uma ju­ven­tude que apoia a des­truição da flo­resta e de­fende um po­lí­tico que enal­tece tor­tu­ra­dores.

Al­ta­mira me faz lem­brar da fa­mosa frase de Ber­tolt Brecht: “A ca­dela do fas­cismo está sempre no cio”. Hoje, em Al­ta­mira e no Brasil, essa ca­dela está ávida e feroz. Apesar do so­luço de alívio re­pre­sen­tado pela vi­tória de Lula, a Amazônia ainda está por um fio.

Rodolfo Salm é professor da Universidade Federal do Pará.

odolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente na Re­vista Su­maúma.

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