quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Entre empresarismo e humanismo

Esquerda, direita, esquerda, direita,...! Marcha ordinária, batida, em forma, no exército.

Querem definir o pensamento, as opções e escolhas, a visão de mundo como esquerda e direita. Tenho olhado isso das calçadas, há muitos e muitos anos. Antigamente expunha meu trabalho entre sindicalistas, nas assembléias, nos encontros, nas manifestações. Mas eles foram mudando de índole, a receptividade foi diminuindo, a hostilidade e a desconfiança foram aumentando, fui rareando minha presença, pouco a pouco, até perder a vontade de ir e preferir expor nas praças, nas ruas, às vezes marcando ponto, às vezes mudando de lugar em lugar.

De onde eu estava, formava minha visão.

A tal “direita” propõe mentiras descaradas. Meritocracia sem igualdade de condições é uma farsa. Empresas “dão” empregos, não exploram até o talo, não violam direitos trabalhistas, não chantageiam seus funcionários, outra inversão mentirosa. O tal do Estado mínimo só serve aos mais ricos, minoria ínfima da população, mas podre de rica e calçada nas classes favorecidas com direitos e privilégios. Tudo o que propõe a chamada direita é falso.

A tal “esquerda” tem propostas de uma sociedade menos perversa e injusta, mas induzida a um sentimento de superioridade falso, que a deixa cega de arrogância, de certezas e verdades duvidosas. De onde estamos, sob o jugo dos poderes econômico-financeiros, essa gente propõe “organizar os trabalhadores”, se sente “mais preparada” pra cargos de mando, cria coletivos de cima pra baixo, convencida de que trata com “inferiores”, “despreparados”, “ignorantes”, sem lembrar da sabedoria de um dos seus heróis “secundários”, Paulo Freire.

Este sentimento é planejado e estratégico pra afastar as pessoas, esterilizar as iniciativas e impedir qualquer ameaça à estrutura social. Humildade seria fundamental pra perceber a força da sabedoria sabotada, a capacidade da intuição desenvolvida e a resistência aos baques da vida, na superação cotidiana de dificuldades.

Mas esse troço de esquerda, direita, esquerda, direita nunca me desceu direito. Sei que houve um parlamento, num dos países colonizadores da Europa, há séculos atrás, onde se dividiram “o povo” e a nobreza. O povo era representado por comerciantes abastados, minoria no meio do povo, do lado esquerdo, e a nobreza se colocava à direita do parlamento. Isso não existe por aqui e nunca existiu, eu olho pros plenários e não tem esquerda e direita. Eles dizem que é definição ideológica, eu vejo é declaração de colonização cultural. Os colonizadores são foda, eles incutem as mentalidades mesmo dos que se opõem a eles. Não é à toa que a esquerda é toda dividida e gasta uma imensa energia brigando entre as diversas seitas – eles chamam de correntes ideológicas, mas são verdades tão rígidas quanto as das religiões.

Eu tenho um ranço danado de colonialismo – que visa o saque de riquezas, a exploração do povo, a manutenção da miséria, da pobreza e da ignorância, pra facilitar o domínio, e construir a “metrópole desenvolvida, de primeiro mundo” em cima do sofrimento nos territórios colonizados. Não consigo deixar de ver essa colonização mental à minha volta, em toda parte. Em camisas, em letreiros, em nomes de prédios e lojas, nas definições cotidianas, soando “naturalmente”, imperceptivelmente. A gente não vai num centro comercial, vai no “shopping”, por exemplo. E são milhares de exemplos como esse, que passam batido na percepção geral. Se eu me manifestasse a cada sinal de colonização mental, seria um chato insuportável. Mas não posso deixar de perceber, na verdade nem quero. Não vejo conforto na inconsciência.

Vejo da seguinte maneira: estamos num modelo de sociedade que tem no seu centro de importância, interesses econômico-financeiros. Ou seja, um punhado de podres de ricos, que são quem comanda os poderes públicos. Sua fonte de poder e grana é a exploração desenfreada das riquezas nos territórios, do trabalho das populações, mantendo a ignorância, a desinformação, a hierarquização econômica criando abismos desumanos e anti-sociais. A vida humana, animal, o equilíbrio do meio ambiente, a saúde das florestas e populações estão em plano secundário. Esta é uma sociedade empresarista, centrada em – e controlada por – bancos e mega-empresas, dos bastidores do teatro macabro de marionetes chamado de “política partidária”, reduto de máfias criminosas e dons quixotes brigando contra moinhos, danificando aqui e ali, mas sem capacidade de afetar a estrutura.

Os que se dizem de direita, exibem uma arrogância econômica, uma ignorância astronômica, uma agressividade brochante. Os que se dizem de esquerda exibem uma arrogância intelectual, donos da verdade que são, sempre de cima, desrespeitando mesmo que com benevolência os irmãos sabotados pela sociedade.

Não estamos entre direita e esquerda, estamos entre empresarismo e humanismo. O que se pretende é que no centro de importância da sociedade esteja o ser humano, a harmonia social, a formação das pessoas em humanidade, com as prioridades totais na satisfação de todas as necessidades básicas de todas as pessoas. Uma sociedade onde seja inadmissível a existência de miséria, fome e desabrigo. Onde as crianças recebam as melhores condições pra se desenvolverem ao longo da adolescência e da juventude, pra exercer as suas vocações na coletividade. Isso exterminaria a necessidade de presídios, secaria a maior fonte de criminalidade de rua. Todos seriam servidos dos seus direitos, alimentação, moradia, saneamento, educação, formação humana, instrução, informação. E a velhice produziria a sabedoria de que é capaz em benefício da coletividade, com todo o apoio social de que necessitasse, sem exclusão de nenhuma forma.

Digo “seriam”, “produziriam” apenas porque sei que, apesar de trabalhar nessa direção, não será no meu tempo de vida. Porque também sei que será assim, no fundo da alma. Quanto tempo, quantas gerações vai levar, e o que vai ser preciso pra que isso aconteça, não se sabe. Mas olhando pra trás, dá pra fazer projeções pro futuro, com a assessoria da intuição e do sentimento – nossos sintonizadores com dimensões espirituais. E que ninguém me peça pra definir “dimensões espirituais”... eu não me atreveria. Só sei que taí e levo em conta. A consciência ativa traz os recados, as instruções e os silêncios.

Quando a gente tá pronta pra saber, fica sabendo. Antes disso é só pretensão. É preciso ir se desenvolvendo, aumentando as capacidades de percepção e compreensão. E isso se faz no dia a dia, na auto-observação dos pensamentos, sentimentos, desejos, valores e comportamentos. O que se desenvolve internamente logo se estende ao coletivo.

Vivências - mais uma carona

 

Vai pra onde?

Pro norte.

Mas pra qual cidade?

Qualquer uma, a que tiver no caminho, qualquer lugar que tu me deixar, tá bom.

Tu é meio doido, né?

É o que dizem as más línguas.

Rimos os dois.

Vambora lá, gostei de tu.

Então bora.

Era mais um "doido" fazendo "minha cabeça".

Eram muitos papos, vários todo dia, na minha construção.

Muito variados.

E eu olhando tudo, tentando aprender por instinto.

Observando e absorvendo todo o tempo.

Crente de que não durava muito tempo

e tava tudo bem, eu tava vivendo no risco

que a liberdade impõe.

Mas o tempo passou, não morri.

Este ano faço sessenta.

Nunca nem imaginei isso.

Há cinco anos eu, que chegava a pé, chego de kombi.

E a idéia rola, de todo jeito, 

em qualquer lugar em que eu esteja,

porque esse é o trabalho que eu escolhi.

Idéia, reflexão, questionamento, 

ponho no meu trabalho o que vejo, o que penso, o que sinto.

E tô satisfeito com isso.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Depois do fim, o recomeço

 É como tatear no escuro.

Não dá pra confiar nas informações, é preciso peneirar muito e a maioria delas não passa, é distorção. Mas a realidade taí, muita coisa é verdade, apesar do mau caráter da mídia, sorridente e sedutora pra convencer a população das suas mentiras, desde sempre.  É preciso decidir o que fazer, todo o tempo, viver é fazer escolhas. Observo, desconfio, sinto, decido.

A pandemia também taí, inegável, embora pra maioria que vive sob riscos bem mais palpáveis, visíveis e rotineiros, essa é uma ameaça a mais, invisível, impalpável, distante. Uso a máscara, o álcool, mas não nego um aperto de mão a quem estende – se tiver álcool por perto, uso, senão deixo pra lá e esqueço. É na base do sejuquideusquisé. A máscara anda pendurada na orelha, horrível respirar com aquilo. Na direção da kombi, se precisar parar e falar com alguém pela janela, como os frentistas dos postos, coloco direitim, por uma questão de respeito. Pra entrar em estabelecimentos, mercado, correio, sempre de máscara, se tiver álcool na entrada, uso. Sempre bom cuidar dos sentimentos nos ambientes onde estamos, sobretudo quando entramos. Bons cultivos, boas colheitas.

Vamos andando, a vida tem que ser levada. No escuro que seja, tateando mas caminhando, com cuidado, atento. É a sociedade da escuridão, da mentira, do controle subterrâneo. As comunicações não merecem confiança, os governos não merecem confiança, a educação não merece confiança, a medicina não merece confiança, nada que tenha como objetivo final o lucro merece confiança.

É o empresarismo que torna a sociedade desumana, mentirosa, perversa e criminosa. A mentalidade empresarial implantada nos próprios servidores, nos explorados, nos empregados, desde a base e por dentro das suas camadas, impostas pelas conveniências interesseiras e dominadas a partir dos próprios valores, da própria visão de mundo, dos objetivos de vida, dos desejos e das escolhas de cada um, de cada grupo e da coletividade como um todo. A psicologia do inconsciente é fartamente utilizada e regiamente remunerada, no controle mental produzido pelo massacre ideológico da publicidade, do márquetim, do jornalismo empresarial, da cultura de consumo sobre (ou sob) a ignorância implantada pela sabotagem e modelagem da educação, conforme os interesses do “mercado”.

Vampiros sociais sempre existiram, desde que se formaram estruturas coletivas de sociedade humana, é um primitivismo ainda a ser superado. E se depender dessas esquerdas que andam por aí há séculos, manipuladas, induzidas e condicionadas a um sentimento de superioridade pelo próprio sistema social, é uma superação por demais longínqua. A esquerda tampouco merece confiança – e as exceções apenas confirmam a regra. A arrogância e a pretensão são características do atraso e são, também, induções estratégicas pra afastar as pessoas, separar e criar conflitos.

Alguns se verão sem saída, "senão a esquerda, então o quê?" Ara... o destino. O mundo tá envenenado, os resíduos dos descartes se acumulam sem parar, o clima se modificando a olhos vistos, os governantes cada vez mais descarados, a crueldade social criando fome, desabrigo, miséria e as conseqüentes violência e criminalidade, tanto de estado quando na população abandonada, roubada em seus direitos constitucionais, em sua cidadania. O apocalipse – não o da bíblia – tá batendo na porta, aliás, batendo não, arrombando. A desestruturação dos Estados, o apodrecimento das condições de vida, além de muito sofrimento, farão aparecer formas de autonomia e defesa das coletividades, obrigarão à busca da sobrevivência, da harmonia coletiva sem contar com o aparato estatal.

Talvez seja o princípio do que, num futuro de muitas gerações ainda por vir, seria ou será um mundo sem fronteiras – “cercas embandeiradas que separam quintais” -, onde o ser humano e a harmonia coletiva estejam no centro de importância, onde a prioridade sejam as necessidades primárias supridas pra uma vida digna, sem nenhuma exceção. Uma outra estrutura social construída com o foco de atender a todas as necessidades de todas as pessoas, onde a miséria, a fome, o desabrigo, a ignorância e a desinformação sejam inadmissíveis e extintas de todas as maneiras. Condições materiais pra isso já existem há muito tempo.

Estamos no desenvolvimento individual e coletivo das condições morais e mentais, na formação de valores mais apurados, mais humanos, mais sociais, mais amorosos e solidários. A gente ainda caminha no escuro da ignorância, da desinformação, da distorção da realidade, da mentira, da farsa falsamente política. Mas caminha. Tateando no escuro, mas andando.

O tempo não pára de passar, é sempre bom lembrar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O fluxo dos ciclos

























No mato, não tive reflexões. Ao contrário, fiquei na raríssima situação de não pensar em nada, em vários momentos. Tipo o objetivo da meditação. É como se houvesse uma atividade de acomodação mental, mas no inconsciente - a nível consciente era o nada, sem pensamentos além dos instintivos, o cuidado com a inclinação, com alguma cobra ou aranha que estivesse no meio das folhas e caules jogados no chão no dia anterior, pra chegar na terra e aplicar as ferramentas na abertura da trilha. 

A vida já anda longa, pra quem pensou que não passaria dos trinta anos. O tempo impõe as mudanças, o caminho não pára de passar, a mutação é permanente. O garoto de ontem passou pelo adulto e já se torna velho. Acontecimentos a perder de vista, aprendizados no próprio couro, no arriscado da exposição sem proteção. Espero pra saber o que acontece no inconsciente, de onde afloram os resultados na consciência e daí segue pra atividade, pra materialização, a dimensão do aprendizado prático, pro plantio no coletivo, seja da forma que for.

"Agora é nossa vez, somos os mais velhos", pensei no enterro do corpo da minha mãe. E falei com minha irmã. Meu pai já tinha ido em 2003, imagino que estivesse no grupo de recepção dela. Não senti a presença dela no acontecimento como senti a dele. Meu pai estava ali, vendo tudo e todos, no enterro dele - ou melhor, do seu corpo. Minha mãe foi levada dormindo. Não estava ali, não viu nada, só o corpo restava pras pessoas "se despedirem". Um dia vou saber o porquê. Um dia vou entender muita coisa que, por agora, não dá, é preciso aceitar, por inevitável. Há entendimentos acessíveis por fazer e é perda de tempo buscar explicações e entendimento inacessíveis, além do nosso alcance. O que mais precisamos aprender está acessível - mas às vezes é o que não queremos, não nos dispomos, impedidos por orgulho.

Fim de um ciclo, começo de outro. Foi assim desde que me entendo. Só que agora os ciclos são mais amplos, levam mais tempo. E a visão do caminho caminhado percebe nuances, profundidades e ligações antes despercebidas. É a digestão da vida enquanto chegam os sessenta anos nessa existência. Uma atividade cumprida no profundo do ser, na camada subterrânea da alma, no inconsciente - as palavras são precárias nessas definições que escapam à razão no estágio em que estamos.

Seguimos nas idas e vindas entre dimensões, numa caminhada onde temos chegadas, mas não vemos a chegada final. A cada fim corresponde um começo - ou recomeço -, a cada morte corresponde um nascimento. 


Fotos - Maria Clara Gusmão e Eduardo Marinho.



observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.