terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A visão da perifa e a academia

Emicida diz "os boy conhece Marx, nóis conhece a fome", uma realidade inegável. Mas já se levanta a voz da academia, com sua distância do chão social, sua arrogância programada e sua "sensibilidade" a críticas, que se torna intolerância quando a crítica é contundente e não vem de acadêmicos, mas de periféricos. Há uma cadeira subliminar de arrogância, nas academias, na criação de sentimentos de superioridade que não resistem à prática cotidiana, à realidade de superação de dificuldades que a coletividade acadêmica nem imagina, nem suporta.
Os boy conhece Marx, mas não sabe o que fazer com esse conhecimento - há séculos. Sentem superioridade por aqueles que constróem sua casa, costuram sua roupa, produzem o alimento que mata sua fome, servem de base pra universidade onde eles estudam Marx e recebem sua carga de arrogância pra simularem revoluções que não chegam a lugar nenhum - ou pior, recrudescem a repressão sobre os sabotados sociais. É parte da programação social de dominação criar essa distância entre o saber e a sabedoria. Servir de conhecimentos os que tiveram seu direito de acesso negado, com humildade e espírito de serviço, não é "ajudar", "conscientizar", "organizar os trabalhadores" ou "ensinar os ignorantes". Muito menos "conduzir as massas". É compartilhar, servir de saber aqueles que têm acesso a uma sabedoria que a academia não reconhece. É preciso reconhecer pessoalmente. Os fortes são os que superam dificuldades imensas, criadas por um Estado criminoso que rouba direitos humanos, básicos e constitucionais. Apenas são impregnados pelo massacre midiático, publicitário, ideológico e convencidos de uma falsa inferioridade (da mesma forma que há criação de superioridade entre minorias protegidas e privilegiadas socialmente). Estes, os periféricos, são quem têm condição de construir uma sociedade justa. Justamente os mesmos que constróem esta sociedade da farsa. Uma questão de consciência, que deve ser alimentada de conhecimentos amorosa e respeitosamente, reconhecendo a estratégia de distanciamento pelos sentimento de superioridade, de um lado, e inferioridade, do outro.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

"Parabéns por ter enfrentado seus pais", alguém me disse.

Eu precisava enfrentar era o mundo, sem privilégios além dos que eu já carregava na minha formação, pra vivenciar o que vivenciei e fazer hoje o que faço. Não me vejo como exemplo pra ninguém, ao contrário, mas exerço minha visão de mundo no meu trabalho, desde décadas atrás, como consequência das minhas vivências. Perdi todas as garantias e considerações sociais e segui no risco, como todo mundo à minha volta, no abandono social - e sem reclamar, amarradão, atento às lições preciosas que a vida me apresentava. Enfrentar os meus pais foi um momento curto, lá no comecinho, como a chave pra abrir essa nova existência, tão cheia de aprendizados, que jamais seria assimilada por eles. E que não seria possível vivenciar, em vários momentos críticos, se houvesse alguma proximidade com eles. Eu estava só diante do aparato público, sem intermediários, sem proteção, no nível mais baixo da sociedade. Tinha que tratar com isso e desenrolar com as pessoas do aparato, quando necessário, tratar com o descaso, com a indiferença, com a falta de recursos e a má vontade institucional com a imensa legião de pobres que a sociedade necessita produzir, pra manter minorias em privilégios. Os meus privilégios sociais, escolas particulares "de qualidade", cursos, boa alimentação, esportes e movimentações que me deram resistência e saúde, os hábitos de buscar e analisar informações em jornais e informativos, ainda que empresariais, tudo isso então foi comigo buscar as vivências que os privilegiados não têm. Não têm e morrem de medo de ter, se sentiriam humilhados, frágeis. Vivências que exigem resistência e criatividade, que desenvolvem a capacidade de superação, a solidariedade, a disposição de encarar os riscos de viver sem proteção.
Ali que eu percebi que os privilégios fragilizam, que os fortes estavam ali, encarando todas as durezas com naturalidade, disposição, alegria, união solidária diante das dificuldades. Ali eu percebi a riqueza da pobreza, a humanidade mais desenvolvida - não por alguma superioridade espíritual, mas por necessidade de sobrevivência, de superação das dificuldades que esta estrutura criminosa de sociedade cria. Os fortes não sabem que são fortes sociais, se sentem fortes apenas nos seus afazeres, socialmente se sentem pequenos, frágeis, insignificantes, incapazes, como a própria ideologia social os faz crer, com todas as artimanhas de convencimento e sabotagem, de exclusão e acorrentamento a valores falsos e planejados pra evitar que se tome consciência da própria importância na sociedade, da própria força e capacidade. Não se trata de levantar disputas e apontar saídas, trata-se apenas de ver a realidade como ela é, não como nos é mostrada, tomar consciência dela progressivamente e construir suas próprias soluções e caminhos. Eu construí, na minha vida, no meu mundo, já que não podia fazer isso com o mundo. E foi essa atitude, esses caminhos e essas práticas que se tornaram útieis ao mundo.
Só pra concluir, o enfrentamento com meus pais durou coisa de dois meses. Com a estrutura social já lá se vão quarenta anos.

Produzindo pra viagem e pensando no mundo, na vida, na humanidade.

Sexta-feira passada, na oficina. Gravação por Amanda Mara.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Eduardo Marinho - Nem esquerda, nem direita, a força tá na periferia.

A dita "esquerda" pode ter uma proposta menos injusta, mais igualitária, menos perversa e mais solidária, mas não tem a condição prática pra fazer isso. Programada pelas induções sociais, se arroga a capacidade de determinar como transformar a sociedade, sem se perceber condicionada e muito menos fazer a necessária revolução interna que lhe daria humildade e esta lhe permitiria perceber que os mais capazes de construir uma sociedade nova são exatamente os que constróem a sociedade todos os dias. Mesmo que tenham sido induzidos a sentir inferioridade, incapacidade e desvalor, da mesma forma que os que tiveram acesso são induzidos a sentir superioridade, sem reconhecer a dependência completa do trabalho braçal, em todos os espaços da sua vida. Os mais fortes não são os apontados pela sociedade ainda desumana, esta é apenas mais uma mentira social. Os mais fortes são os que se sentem mais fracos, são os que superam dificuldades enormes na sua rotina de vida, que convivem com todas as sabotagens - na educação, na saúde, no transporte, no trabalho...- e encaram os piores trabalhos, os mais duros e mal remunerados. É uma questão de tomar consciência. Tanto entre os instruídos quanto entre os sabotados. Sentimentos de superioridade e inferioridade falsas são construídos estrategicamente no subconsciente coletivo, com a função de afastar o conhecimento da capacidade de resistência, de impedir o encontro do saber com a sabedoria. A arrogância ou a humilhação são muros intransponíveis. Mas não são indestrutíveis.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Espionagem e controle mundial é rotina oculta permanente

CIA espionou comunicações no Brasil e em mais de 120 países do mundo


Governos estrangeiros pagavam a empresa suiça Crypto AG pelo privilégio de ter suas comunicações mais secretas monitoradas pelas agências de inteligência

DAVID BROOKS
Nova York (Estados Unidos)

Durante meio século até 2018, mais de 120 governos ao redor do mundo, incluindo o México, confiavam em uma única empresa suíça para manter secretas as comunicações com seus espiões, militares, diplomatas e outros governos, mas nenhum sabia que os donos reais dessa empresa eram a CIA e sua contraparte alemã BND, revelou o Washington Post.

A empresa, Crypto AG, se converteu no principal fabricante de máquinas de cifrado, e ganhou milhões de dólares vendendo o equipamento a governos na Europa, nas Américas, na Ásia e na África. O Vaticano e a Organização das Nações Unidas também eram clientes.

“Mas o que nenhum de seus clientes jamais soube é que a Crypto AG era secretamente propriedade da CIA” e sua sócia a inteligência da Alemanha ocidental, revelou o Post em uma reportagem exclusiva em colaboração com ZDF, um meio alemão, os quais tiveram acesso a uma história classificada da CIA e informes alemães sobre a operação, bem como entrevistas com alguns dos participantes.

“Foi o logro de inteligência do século”, conclui o informe da CIA, agregando que “governos estrangeiros pagavam um bom dinheiro aos Estados Unidos e à Alemanha Ocidental pelo privilégio de ter suas comunicações mais secretas lidas por pelo menos dois (e possivelmente até cinco ou seis) países estrangeiros”, reporta o Post.

Desde 1970 até 2018, a CIA e a Agência de Segurança Nacional (NSA), controlaram todas as operações da Crypto, sem o conhecimento de seus clientes, e de quase todos os seus funcionários. 
A evolução dos produtos e a adaptação de novas tecnologias, estavam desenhadas para trair seus compradores. A empresa começou a funcionar durante a Segunda Guerra Mundial sob o comando de seu fundador na Suíça, o qual colaborou com a inteligência estadunidense e europeia, mas foi em 1970 que foi comprada pela CIA e sua contraparte alemã. Algumas empresas, como Siemens e Motorola participaram para melhorar os produtos.
Com isso, a CIA e a NSA estavam monitorando comunicações de Anwar El Sadat em 1978, dos iranianos em 1979, como de outros desde a Arábia Saudita à Coreia do Sul, desde a Argentina, à Venezuela, Colômbia, México e Brasil.
A reportagem aborda a forma como foi manejada a empresa para evitar que seus funcionários ficassem sabendo da relação com as agências de inteligência, das disputas burocráticas entre e dentro dos Estados Unidos e Alemanha, como o tipo de informação que se conseguiu obter. Leia esta reportagem clicando AQUI.
O National Security Archive, centro de investigações de relações exteriores e documentação oficial secreta, disse hoje que a reportagem do Post confirma que entre os países que empregaram as máquinas da Crypto para suas comunicações secretas estão os regimes militares da Operação Condor encabeçada pelo Chile, Argentina e Uruguai quando “realizavam atos de repressão e terrorismo regionais e internacionais contra figuras da oposição”. 
Com o uso dos instrumentos da Crypto, a CIA e a NSA tinham a capacidade de monitorar operações golpistas e de repressão dentro do Cone Sul, até atos terroristas como o assassinato de Orlando Letelier em Washington ou a derrubada do avião da Cubana de Aviación em 1976. Portanto, afirma o Arquivo, a reportagem gera novas interrogantes sobre quando e o que sabia o governo estadunidense sobre essas operações na América Latina. 
O arquivo observa que documentos desclassificados pelo centro revelaram anteriormente que, na começo formal da Operação Condor, por seus cinco regimes, em 1975, se chegou a um acordo para se estabelecer um sistema de criptografia que foi batizado como Condortel. O equipamento para essa rede de comunicação veio da Crypto AG.
Para acessar outros documentos clique AQUI.

*David Brooks é correspondente de La Jornada em Nova York, EUA.
**La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
***Tradução: Beatriz Cannabrava

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.