sábado, 26 de fevereiro de 2011

É mesmo óbvio? Ou estou sendo pretensioso?

Capa do nº1 do fanzine, que é dobrada ao meio.
             Quando analiso a sociedade, temo a soberba. É preciso estar muito atento às formas sutis de penetração deste sentimento. Ele se insinua de infinitas maneiras, sob qualquer pretexto e com múltiplas faces. O sentimento de superioridade bloqueia a inteligência e nos cega diante de evidências. Em poucas palavras, ele nos inferioriza as capacidades, a visão de mundo e a atuação na coletividade. Por isso costumo tomar todo o cuidado. A facilidade que sinto em perceber, a todo momento, as mentiras feitas verdades que são propagadas como valores intocáveis, trabalhadas para se instalarem no inconsciente coletivo, junto à dificuldade que percebo nas pessoas em se dar conta da  condução dos seus valores, me fazem duvidar da minha humildade e, por conseqüência, das minhas conclusões. Levanto, preventivamente, a hipótese da soberba.
            Mas olho para a estrutura da sociedade e me parece muito simples. A ignorância, a miséria, fruto de uma desigualdade brutal; um povo aparvalhado, infantilizado, entre a ausência de ensino e a “formação” de opinião pela mídia privada; a violência de um Estado que não garante as condições mínimas definidas pela sua própria constituição – básicas para extinguir esses males – e que se transforma na violência social, no crime, na truculência da polícia contra as comunidades pobres. Nos crimes das grandes empresas contra as populações que se encontrem em seu caminho insano, em direção ao lucro. Contra o meio ambiente, contra a soberania nacional, contra os povos nativos e locais, contra a qualidade de vida que apregoam como razão da sua existência - numa hipocrisia mal mascarada pela publicidade inteligente, insidiosa, que pega pelo inconsciente, o subliminar. Tudo isso e muito mais me dizem claro que a sociedade humana está dominada e controlada por empresas, quer dizer, os donos das maiores empresas controlam, interferem, influenciam, pressionam, concentram poderes o mais que podem sobre os Estados nacionais, compondo com as empresas de cada lugar, com os poucos das elites locais. Aí está a razão dessa estrutura cruel de sociedade. Será que é muita pretensão minha? Que eu tô delirando, vendo coisas? Parece tão óbvio...
            A estrutura social (imposta pelos poderes reais, os econômicos, ou das pessoas que se escondem atrás de suas grandes empresas), enquanto massacra a maior parte, submete enorme parcela da população, as classes intermediárias, a uma existência sem outro sentido que “subir na vida”, de forma a sustentar essa estrutura, com nossos desejos, nossos objetivos de vida, nosso egocentrismo induzido e estimulado. O massacre publicitário é o tempo todo. Forma nossas opiniões, desejos e valores desde a infância. A agressividade é estimulada, a competitividade é imposta. Os postos de comando são mais bem remunerados, imprescindíveis que são no controle da maioria, na administração da ordem vigente. A grade curricular das escolas é direcionada ao “mercado”, não mais à sociedade. O ensino público, fundamental e médio, é deteriorado, destruído, conservando as formas pra sair na foto. Tudo interessa às empresas, até mesmo a miséria – a melhor garantia de manutenção dos salários baixos. É preciso explorar ao máximo. Não é à toa que o Repórter Brasil denuncia trabalho escravo, todos os dias. A estrutura favorece.
            E nós favorecemos a estrutura, desejando o que nos mandam, nos submetendo a trabalhos de que não gostamos, priorizando o ter, o possuir, o desfrutar, em detrimento de ser, de estar, de se relacionar com o mundo e consigo mesmo, abrindo mão de nos realizar como seres humanos. A sociedade “como um todo” nos cobra essa desumanização. Enxergamos a miséria e a ignorância como inevitáveis. Vivemos um presente frustrante, na expectativa de “benefícios” futuros, que não compensam o alto preço que custam em qualidade de vida ao longo do tempo. Permitimos que nos formem os valores, através de mecanismos do inconsciente, conhecidos pelos marqueteiros, publicitários e “formadores de opinião” da mídia. Sem perceber, não vemos alternativas diante das pressões na direção da normalidade, muitas vezes cobrando de outros as mesmas posturas. Cheguei a trilhar esse caminho, mas a angústia e a falta de sentido eram tão intensas que resolvi mudar o rumo, apesar das ameaças. Mesmo sem saber a direção a seguir. E as ameaças de discriminação, de repulsa social, de perseguição se concretizaram. Não foi trágico, apenas sintomático. Eu procurava caminhos que não me eram apresentados. Não podia esperar compreensão, muito menos apoio. E não houve nem respeito. Com o tempo, percebi que o único respeito imprescindível é o próprio. E que, em alguns casos, o desrespeito é como um elogio.
            É a nossa permissão que faz a sociedade ser o que é. Nossa acomodação, nosso medo, nossa indiferença, nossos objetivos de vida, tudo plantado, tudo planejado. Acolhemos valores desumanos e vivemos desgraçadamente em torno deles, sofrendo-lhes as conseqüências e sem saber a quê atribuir a nossa angústia.
            Simples assim. As empresas dominam os Estados. A coisa pública está imersa na privada. O inimigo se instala, sorridente, nas salas das casas, com declarações de afeto e juras de amor, “entretendo” com novelas e programas (por onde escorrem as invasões subliminares, a formação de valores falsos, os condicionamentos). E ataca os que o denunciam, com seus jornais e revistas, rádios e televisões, criminalizando, distorcendo e omitindo informações, incitando as forças de segurança e a população em geral contra os que ousam resistir – e a população, em tais condições, não percebe os crimes dos quais é vítima.
            Buscar a realização pessoal humana é um ato revolucionário. Construir seus próprios valores, independente dos induzidos, é uma obrigação de quem o percebe. Renegar as marcas, consumir apenas o necessário, exterminar a cultura do consumo, desenvolver o gosto pela contemplação, a movimentação gratuita, a diversão sem custo monetário, a alimentação e a medicina mais próximas à natureza e ao bem estar interno. Dedicar mais atenção aos sentimentos, desenvolver a tolerância, a reflexão, a solidariedade, a consciência. E aplicar nas relações com os indivíduos e a coletividade. A mudança precisa de base interna, pra ter força. As mudanças externas são uma extensão, uma conseqüência que, sem as raízes internas – profundas e sinceras -, logo secam e morrem, ou se demonstram ervas venenosas. Como disse Gandhi, é preciso fazer em si as mudanças que se deseja no mundo.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Frases

“Antigamente era mais difícil se informar e tomar consciência. Hoje, com as novas tecnologias, com a informática, qualquer pessoa com uma curiosidade mais aguçada pode perceber o mundo como ele é.”


Milton Santos - geógrafo baiano documentariado por Sílvio Tendler, em "Encontro com Milton Santos - o mundo globalizado visto do lado de cá" (vale assistir). 1926 - 2001




“Quem não quer pensar, é um fanático; quem não pode pensar, é um idiota; quem não ousa pensar, é um covarde”.

Horace Walpole - romancista inglês aristocrata, foi "Conde de Oxford". 1717 - 1797



"A massa sustenta a marca; a marca sustenta a mídia; e a mídia controla a massa."

George Orwell (Eric Arthur Blair) - Escritor e jornalista inglês. 1903 - 1950



"Quem quer que seja que ponha as mãos sobre mim para me governar é um usurpador, um tirano e eu o declaro meu inimigo."

Pierre-Joseph Proudhon -  filósofo político e econômico francês. 1809 - 1865



A sabotagem do ensino, a desinformação, a narcotização pelas mídias e a violência contra os pobres de grana são planejadas, comandadas, executadas e consentidas pelos pobres de espírito.

Eduardo Marinho - 1960 e, ainda, vivo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Satisfação aos “seguidores”

A banca vermelha é de minerais para colecionadores e amantes das pedras. O cara se chama Miguel, o acupunturista.
O que ele está "apertando" é tabaco, não se iludam.




            Neste último terço de janeiro, este blogue ficou meio abandonado. Como alguns amigos ficam admiradíssimos quando digo o número de seguidores (detesto esse nome), comecei a sentir uma certa responsabilidade, uma dívida de consideração com essas pessoas, a maioria que nem conheço, mas que, claramente, acompanha estas coisas óbvias que eu posto aqui. Por isso acho que devo uma satisfação a essa rapaziada, pra que saibam o que acontece e porque.
            Eu não tinha noção da importância desse número, mas lembrei de Diamantina, quando um garimpeiro que se tornou meu amigo me mostrou uma pedra. Estávamos num bar, à noite, e comentávamos as dificuldades de sobrevivência da maioria, quando ele me falou da sorte que tivera, na semana. Olhou pros lados, disse que ia reformar a casa da mãe e a dele, e ainda trocaria de moto. Com um sorriso triunfante, tirou do bolso do casaco uma pedra e pôs na minha mão, sempre dando umas olhadas em volta. Peguei o diamante bruto, rolei na mão, olhando, procurando alguma coisa que o diferenciasse das outras pedras de cristal que via pelo chão das ruas e das estradas. Eu passaria por aquela pedra sem nem perceber, eu a chutaria como brincadeira, tentando acertar alguma coisa mais na frente, só por “desfastio”, como dizia minha avó. Fiz a ligação com a vida e percebi quantas vezes se tem nas mãos algo valioso e não se percebe. Talvez exatamente por estar na mão. Desdenhamos nossas preciosidades, até que elas se vão. Aí percebemos, já tarde demais.
            Bem, voltando ao assunto, no sábado, 22 de janeiro, eu expus em Santa Teresa, até umas nove da noite, pois estou chegando mais tarde devido ao calor do sol no lugar em que exponho. Ravi, meu filho, estava na área, vendendo seu artesanato nos bares e muvucas que se formam no bairro. Conversando com Jean, o rasta que faz e vende instrumentos de percussão, ali no Guimarães mesmo, Ravi manifestou o desejo de aprender a fazer instrumentos – assim, um desejo casual, sem nenhum compromisso com o tornar realidade essa vontade. Mas o Jean, prestativo, nos chamou à sua casa, ali perto, pra ele ver como é que é. Depois de encerrarmos o “expediente”, fomos caminhando até lá, Jean e sua mina, Ravi e eu.
            Era uma rua que ligava a descida pra Glória ao largo do Curvelo, de pouca circulação. Neste percurso, surgiram mais na frente um cara e dois cachorros, um grande e outro pequeno. O grande estava preso numa guia e na mão do cara. O pequeno, solto, nos viu e veio na nossa direção. Não dei muita atenção, é normal o cachorro vir dar sua cheirada de reconhecimento a cada novidade que aparece na sua frente. Mais interessante era a arquitetura de uma casa pela qual passávamos, no alto de uma escadaria ao lado da rua, com a alvenaria toda trabalhada em detalhes. Nisto, ouvi um pequeno rosnado e senti a bocada rápida, atrás da perna direita.
            Surpreso, comentei, “fidaputa, me mordeu, esse vira-lata!” Levantei a calça, olhei, embaixo da batata, acima do tornozelo, um arranhão e um ponto. Tive vontade de lhe dar uma bicuda, mas ele já estava a uma distância segura, na calçada do outro lado da rua. Olhei pro cara, que foi logo dizendo que não tinha nada a ver com aquele cachorro. “Cachorrinho safado, eu não tava nem olhando pra ele. O dono deve ser um pilantra” e o cara riu, sem graça. “Cê conhece o dono?” “Conheço”. “Sabe se é vacinado?” “É, sim.” Pela expressão dele, achei que ele tava mentindo, que o cachorro era dele. “O cachorro pega o caráter do dono”, arrematei. Não valia a pena confrontar o cara, já estava mordido, mesmo, nada ia mudar isso.
            Chegando à casa do Jean, perguntei se tinha água oxigenada. Não tinha. Fui ao banheiro, lavei com sabão o arranhado, esfreguei bem. Depois, ficamos um tempo papeando, ele mostrava a Ravi seu material de trabalho, explicava como fazia e tal. Quando saímos, Ravi foi vender nos bares e eu fui pra casa. Como era tarde, tive que sair de Santa a pé e atravessei todo o centro do Rio, até chegar na praça XV, onde tem transporte pra Niterói, a noite toda. Levei mais umas duas hora pra chegar em casa.
            Aí, fui tratar da ferida. A perna havia inchado, o arranhão estava preto e fundo, a inchação dava a ele o aspecto de uma boca sem dentes, meio sorrindo. Tomei um susto quando vi, “caraca”, e preparei uns emplastros de alho socado. Esquentei no vapor e pus em cima, três vezes. O preto foi saindo, a cada emplastro. Quando apareceu a cor da carne, passei uns óleos essenciais (lavanda, tea tree), fiz um curativo e fui dormir. Mas o tempo de demora tinha infiltrado mais fundo a infectação e eu tive muito trabalho com aquilo, a perna inchada, a ferida crescendo, enquanto superficializava e eu colocava emplastros de alho e folhas de saião, tomava extrato de própolis e mastigava uns dentes de alho, pra reforçar o sangue. O aspecto ficou assustador, mas eu já conhecia esse processo. Pra resumir, duas semanas mancando com dor, até reverter. Encarei como um expurgo, o momento na minha vida era agudo, emocional e afetivamente, e aquilo me pareceu parte do processo. Algo estava sendo posto pra fora, através daquela ferida.
            A necessidade de produzir os desenhos, de aquarelar, pra expor e arrumar o sustento, tomava toda minha energia. Fiquei sem inspiração pra escrever. Trabalhava com a perna esticada num banco, pra doer menos, e só fazia o essencial. Era, mesmo, um momento especial, de reflexão na vida. Finalmente a ferida se superficializou de todo, agora já está na casca, embora ainda precise de cuidados, mas no caminho da solução. Já não dói tanto, só arde um pouco, quando faço mais esforço. Mas a perna desinchada mostra o final do processo. Olhei o blogue e me senti em falta. Por isso, inaugurei a seção “crônicas de estrada”, postando o “encontro com Adauto”, já escrito há algum tempo, na esperança de, um dia, editar um livro com essas histórias. Valeu a idéia, de vez em quando publicarei uma crônica dessas – tenho várias espalhadas em muitos cadernos, perdidos no meio das minhas bagunças ou sumidos pra sempre.
            Aos que acompanham a evolução deste blogue, peço um pouco de paciência, pois ele não paga minhas contas e eu preciso me dedicar ao que me traz a merreca que eu ganho, ou seja, os desenhos, os “livrins” e outros babilaques. A web já me toma mais tempo do que eu posso, são vinte ou trinta imeios por dia e não gosto de deixar ninguém sem resposta.
            Outro dia me perguntaram se eu tinha algum sonho pessoal, em termos materiais. Pensei um pouco e descobri qual é esse sonho: nunca mais me preocupar com as contas e poder fazer meu trabalho totalmente dedicado a ele. Diante da sociedade que me cerca, sinto uma enorme necessidade de trabalhar no que transformei em meu lema. Sensibilizar, esclarecer, conscientizar. Começando por mim mesmo e minhas grandes falhas internas. Assim, minha vida tem sentido.
            Abraços a todos.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Crônica de estrada



Eduardo Marinho em uniforme de gala
1977 - Campinas, SP



Chovia muito. Quase não dava pra ver o outro lado da rua. Entrei encharcado na rodoviária de Barra Mansa, calças arregaçadas, descalço, sandálias havaianas presas na cintura, pela corda que servia de cinto e prendia, do outro lado, um rolo de fio de “alpaca” – arame cor de prata, que eu usava pra escrever nomes em forma de broches. Bolsa de sisal atravessada do ombro, mochila média às costas, cabelos longos e barba rala, tudo pingando muito,subi as escadas que levavam ao patamar das bilheterias e parei ao reconhecer, de longe, entre as duas figuras destacadas de verde, um conhecido da escola militar. Paletó verde-oliva, botões dourados, camisa e gravata bege, duas estrelas em cada ombro. Um eu não conhecia, o outro fora meu colega de sala de aula e de setor na segunda companhia. Adauto. Encostei numa pilastra ao lado do fim da escada, sorrindo. Eu sabia que ele seguiria carreira. Imaginava toda a linha dos acontecimentos da vida dele. Terminara a escola que fazíamos, ingressara automaticamente na academia. Foi novamente bicho, calouro e veterano. Recebeu o espadim em solenidade e tornou-se aspirante a oficial, por seis meses, eu acho. Daí a segundo tenente, por alguns anos e, automaticamente, “promoção” a primeiro tenente. Aí, mais anos passariam até chegar a capitão. Depois disso, o critério das promoções deixa de ser automático, passa a ser “merecimento”, ou seja, relacionamentos, influências, “peixadas”.

Adauto ainda não me vira. Estava de lado, esperava o outro comprar as passagens no guichê. Eu, parado junto à escadaria que acabara de subir. De repente ele olhou direto pra mim- sem me reconhecer - mas, como estávamos distantes uns trinta metros, relanceou o olhar pro outro lado, em busca de algo perto dele que eu pudesse estar olhando. Não encontrando, olhou pra mim de novo, já começando a achar estranho. Ele tinha a mesma cara, acrescentando um bigodinho fino sobre o lábio; eu estava irreconhecível para ele. Minha vida, meus valores, minha visão de mundo, minhas buscas, ele não fazia a menor idéia de nada. Minha imagem, pra ele, eu sabia estranhíssima, descalço, cabeludo, pingando e encarando. Na terceira olhada ele já tinha franzido as sobrancelhas, quando chegou o outro tenente. Adauto falou algo perto do seu ouvido e os dois me olharam. Falaram entre si, pegaram suas bagagens e vieram na direção da escada, agora os dois me encarando. A tendência era a agressividade, mas o meu meio sorriso os desarmava. Quando passavam a dois metros de mim, soltei baixo e melódico “Adauto”... Ele deve ter tomado um choque, porque, com um pulo, agarrou meu braço, gritando “quem é você? QUEM É VOCÊ?” – “calma, Adauto”- “de onde você me conhece?”- “larga meu braço, Adauto” – “DE ONDE VOCÊ ME CONHECE?”- “vai me agredir, Adauto? Vai me prender?” Ele se recompôs, constrangido, largou meu braço “não, tudo bem, mas fala quem você é”. O outro tenente se colocara em posição de cortar uma rota de fuga, preferi não ver. “Sou o Marinho, da preparatória, lembra não?” Ele buscou nos arquivos mentais, ficou meio aturdido ao lembrar –“Marinho?”- mudou o tom pra estarrecido – “Marinho?!”- e, ao me olhar de cima a baixo, foi ficando penalizado –“Marinho!”. Sua expressão era a da mais profunda desolação – “meu Deus! O que aconteceu com você? Como é que você caiu nessa?”- eu continuava sorrindo, tranqüilo, ele demonstrava confusão –“morreu alguém da sua família?”- eu ria, abertamente, “não, não”- “foi mulher?”- gargalhei -“quê isso, cara, eu tô bem, tô legal!”- “ah, não tá, não. O que aconteceu com você? Como é que cê caiu nessa?”- “paga uma cerveja e eu te conto”- “eu pago, cê tem que me contar que que aconteceu.”

Fomos a um boteco em frente à rodoviária, Adauto e eu, o outro ficou. Sentados, com uma cerveja no meio, discorri para ele sobre minha trajetória até perceber que não me enquadraria de maneira formal na estrutura social. “Por que não seguiu carreira? Hoje seria um oficial do exército”, era sua questão. Eu lhe disse como encarava o papel dos militares na sociedade. Lembrei de como apontamos fuzis para uma multidão desarmada. Falei que os militares, com essa de não questionar ordens, não defendiam a população. Que as Forças Armadas eram usadas pra manter privilégios da minoria rica e reprimir qualquer revolta ou manifestação dos sabotados, da maioria. Ele não estava preparado. Não conseguia me encarar. Eu observava seus olhos inquietos procurando os debaixos das mesas, as laterais do boteco, enquanto eu falava no uso dos militares para servir aos interesses da minoria dominante. De como, em última análise, éramos jogados contra a população, espoliada das condições básicas de existência, a favor de uma concentração absurda das riquezas do país, gerando miséria, ignorância, sofrimentos sem conta para a maior parte. Adauto não chegou à metade do primeiro copo. Alegou estar em cima da hora, de repente, apertou rapidamente a minha mão e saiu sem pagar a cerveja. Eu fiquei olhando aquele jovem oficial, túnica verde-oliva, botões dourados, quepe na cabeça, atravessando a rua debaixo de chuva, em fuga.

Terminei a cerveja, paguei, fui ao andar de cima da rodoviária, comprei a passagem pro Rio e desci à plataforma do ônibus. Para minha surpresa, Adauto e seu colega estavam na fila do mesmo ônibus. Quando olhei uma segunda vez, Adauto havia sumido. Entrei na fila, no ônibus, sentei na poltrona. Quando o motor foi ligado para a partida, entrou o Adauto, passou por mim com um aceno e um sorriso amarelo e foi pro fundo do veículo.

Eu não havia dormido à noite, apaguei antes de chegar à estrada; quando acordei, na rodoviária do Rio, era o motorista que me sacudia –“chegou, chegou, rodoviária!”. Não havia mais ninguém no ônibus. Adauto tinha ido embora, com seu colega e sua confusão.
Eduardo e Brisa do Outono, com 6 meses.
1982


 



observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.