sábado, 29 de setembro de 2018

Historinhas de viagem

Em Volta Redonda, Mineiro, o mecânico, trabalha no bairro Vila Americana, na rua Argentina, entre as ruas Equador e Canadá. Seguindo um pouco mais, atravessamos a rua México pra almoçar. Fronteiras inexistentes no mapa se encontram nas esquinas periféricas de Voltão.

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Em Vitória da Conquista, na Bahia, há um pequeno aeroporto, que recebe um ou dois vôos comerciais por dia, construído onde antes havia um lixão. Na cabeceira da pista, onde há restos do lixão, urubus passeiam procurando comida. Um funcionário do aeroporto tem uma incumbência específica. Antes de cada vôo, ele pega sua motocicleta, carregado de rojões - esses mesmos que se soltam no São João ou nos jogos de futebol - e vai até a cabeceira. Sua função é espantar os urubus, pra que os aviões pousem sem risco de engolir alguns em suas turbinas. Na base do rojão.

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O fubá na prateleira não tinha o T de transgênico, parecia bom, orgânico.
- Esse fubá é transgênico?
- Não, é só milho mesmo.
São muitos os que não sabem o que é transgenia... o ruim é que o tempo vai ensinar.

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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Para Brisa

Pra você, cercada dessa ignorância social raivosa que infesta a coletividade, debatendo essas propostas superficiais que não buscam as raízes dos problemas sociais e pretendem "combatê-las" de forma que, claramente, vão agravá-las. Por exemplo, criando mais universidades do crime (penitenciárias) ao invés de buscar os porquês de tanta criminalidade - crimes de Estado, constitucionais, contra a maioria da população, negando direitos, condições de moradia, de educação, de alimentação, de informação, criando miséria, pobreza, ignorância e desinformação, deixando as comunicações do país sob controle empresarial, mantendo áreas de exclusão social onde o massacre publicitário-midiático cria desejos compulsivos de consumo, como valor social e pessoal, onde não há condições econômicas pra isso, praticamente convocando ao crime milhares e milhares de jovens, adolescentes, adultos e crianças. Tratando superficalmente de todos os temas, apelando pra termos sonoros como "família", "Deus", "pátria", longe de apresentar propostas sinceras, profundas e realizáveis no sentido de solucionar os graves problemas permanentes através dos tempos e de governos que servem aos poderes econômicos.

Não se trata de "combater" esse ou aquele candidato, mas sim de pensar em formas de sociedade onde não exista gente como lixo, abandonados sociais, ignorância e miséria, onde não exista a exploração desumana que força milhões e se apertarem em transportes públicos torturantes, várias horas por dia. Onde não haja mendicância ou doenças sem atendimento. Onde não se produzam desabrigados sociais, os chamados moradores de rua. Onde não se veja o constrangedor - e revelador - constraste entre a riqueza ostensiva e indiferente de poucos e as condições miseráveis de dar vergonha a qualquer sociedade que se proponha humana.

Essas discussões eleitorais, grosseiras, agressivas, conflituosas, são uma indução à superficialidade que se aproveita da ignorância implantada estrategicamente por uma educação parcial - empresarista e enquadradora. Essas discussões grotescas, insultuosas, violentas, são programações sociais, imposições midiáticas, jogo de ilusão, como faz a mão do mágico, que chama a atenção enquanto a outra age e faz o truque. A outra mão é o mercado financeiro, o poder econômico que submete o Estado e faz de tudo pra impedir a sociedade de ser solidária, harmônica, com prioridade no ser humano, de verdade, onde seja um escândalo a existência de miséria e abandono, da fome, do desabrigo, da ignorância, da desinformação, com tantas condições reais, tecnológicas, de produção e distribuição, relativamente simples e de baixo custo.

Uma população bem alimentada, instruída, informada, tem muito melhor condição de decidir a forma social mais justa, equilibrada e harmônica. Uma sociedade onde as crianças - todas, como prioridade - recebam uma formação amorosa, desenvolvam suas aptidões de acordo com a índole e as vocações de cada uma e tenham estimulado o desenvolvimento do senso de justiça, da capacidade reflexiva, na criação de valores mais humanos. Uma educação centrada não no mercado de trabalho, mas na harmonia social. Assim se constrói uma coletividade menos grosseira, no caminho da evolução planetária.

Quando essa harmonia for o objetivo da existência coletiva, não é difícil imaginar o nível de criminalidade, se é que haverá algum. Mas é preciso perceber que essa desarmonia, essas brigas, discussões brutais, é produção estratégica dos laboratórios de pensamento que se utilizam de muitas formas, mas sobretudo da mídia, pra implantar, induzir essa discórdia dispersiva que passa longe de atingir a estrutura social que se alimenta de todas as mazelas sociais, que precisa mesmo de miséria e ignorância, de superficialidade mental, de alienação, de confrontos inumeráveis, coletivos e pessoais.

Não é à toa a deturpação de significado de várias palavras tidas pelo poder verdadeiro, muito acima das marionetes políticas que distraem a atenção do público, como palavras subversivas. Assim, "radical", ir às raízes, procurar as causas mais profundas, refletir sobre as fontes verdadeiras dos problemas, aprofundar o pensamento, passou a significar "agressivo", "intolerante", "violento", "extremista".

"Individualista" passou a ser "egoísta", "criativo" é "empreendedor", "solidariedade" agora é "empatia" (eca, parece nome de doença do fígado). É preciso não estranhar a superficialidade, a agressividade, a competitividade, os confrontos. São produções sociais, induções, deformações, condicionamentos, enfim, uma "condução de gado" muitíssimo bem montada na estrutura social que ainda persistirá muito tempo, enquanto outras formas de pensamento, de relacionamento, de valores sociais fermentam como embriões invisíveis por aí, invisíveis mas não inativos, ao contrário, extremamente contaminantes. Desenvolvendo formas de se relacionar, de existir, criando relações solidárias e cooperativas. O processo, como eu disse, é planetário, permanente, as mutações se fazem por gerações e gerações.

A busca da harmonia social começa da busca de harmonia pessoal, na busca de harmonia nas nossas relações com o mundo. Não posso transformar a sociedade da forma que gostaria, obviamente. Então procuro fazer essas transformações em mim mesmo, na minha vida, nos meus valores, nas minhas relações.

sábado, 15 de setembro de 2018

Saindo de Brasília








Desta vez passamos com pressa por Brasília, muito a fazer pelo caminho, até chegar em casa, já precisando ser logo. Abaixo, fotos da viagem, passando por Correntina. Em Muquém de São Francisco, paramos pra fotografar o santo e descobrimos um ninho na manga dele. Soja transgênica a perder de vista, fazendas que sumiam no horizonte, tratores e máquinas, vazio de gente, aridez agronegócica.

Na saída da Chapada, pintura no céu.
 
Paisagem estranha. Máquina corta o feno, outra prensa, puxada por tratores. Estas fazem uma poeira densa e branca.

O ninho tá na manga esquerda, à direita de quem olha.
Combina com a história de tratar os animais como irmãos.

Ao longe, a fumaça da prensagem do feno.
A torre tá com um ar sinistro, como um esqueleto, isolado e morto. E a feira piorou tanto que não teve exposição por ali.
Em Brasília, fomos recebidos em Brazlândia, onde arrumamos ótimo mecânico, que tem duas kombis e tem afeto por elas. Ganhamos duas velas pra Celestina, conhecemos a família de Márcio Veloso e ganhamos um almoço bem gostoso. Ficaram vários ímãs, fanzines e um desenho. É esse o tipo de mecânico que gosto pra Celestina. Agora tá tinindo pra partir pra Uberlândia. Vamos daqui a pouco, na noite, que é mais frio, gasta menos pneu, desgasta menos as peças e depois de certa hora, a estrada fica vazia. Parando aqui e ali pra tomar um café, a viagem segue.



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A chegada em Viçosa e o trem pra Ubá

Década de 80.

A última carona havia me deixado a alguns quilômetros de distância da cidade, segui pela estrada, que vinha de Ponte Nova e chegava em Viçosa, andando pelo acostamento. Levava mochila, banca pendurada no ombro (mesa desmontável, portátil, numa perna de calça costurada, com uma alça) e o painel de trampo (brochinhos, brincos, alguns colares e pulseiras). Vinha de bermuda, chapéu de feltro, sandálias havaianas, cabelo comprido e barba rala. Depois de uma grande curva à direita, a pista descia quinhentos metros e terminava numa rua calçada com paralelepípedo. Terminava mesmo, em T, e já era o centro da cidade. Viçosa era muito pequena, naquela época. 

Do outro lado da rua, num posto de combustíveis, tinha uma fila de carros esperando e se estendendo até fora, junto à calçada. Carros novos, bonitos, grandes, brilhantes. Eu caminhava descendo pela estrada, de frente pra cena. Na calçada havia um latão de lixo, perto da entrada, junto a um poste. Mergulhada nele, com as pernas de fora, uma criança catava latinhas de alumínio. Apoiada na beira do tonel pelas dobras das pernas, o corpo sumia lá dentro. O vestido virado deixava à mostra a calcinha muito branca, contrastando com o preto das pernas, as latinhas apareciam pela borda e caíam no chão, mal se viam as mãozinhas que jogavam e voltavam ao fundo pra buscar mais. Junto ao tonel, uma outra criança menor, também preta e menina, juntava as latinhas que caíam, com os pés. Não devia ter mais de quatro anos. Ela segurava um saco plástico pequeno nas mãos e, no chão, havia um saco maior e mais grosso, com um volume enrolado dentro e uma pedra em cima. 

Um dos motoristas estava em pé, fora do seu carro, e observava as crianças, impassível. Era um senhor de cabelo e bigode brancos, óculos de aro dourado, boné no estilo francês, bem vestido e fumando um cachimbo. Eu vinha caminhando, olhando, atravessei a estrada, cheguei do outro lado da rua e parei pra olhar a cena. Com tristeza, a diferença brutal e a indiferença das pessoas, como as situações de sobrevivência miserável que a parte "instruída" desta sociedade aceita acontecerem, "naturalmente". Constrangedor contraste entre privilegiados e abandonados sociais, quando eu foco nisso dá uma espécie de nó na garganta, os olhos ardem. Não fazia ali nenhum julgamento pessoal, era uma percepção coletiva, se há algo condenável é o modelo social como um todo. Viçosa é uma cidade universitária, imaginei que o cara era um antigo professor. Tinha jeito, cara, idade e pose pra isso. As pessoas se acostumam com a miséria, entre os abastados é até recomendável, é como parte da paisagem, apenas "lamentável", mas "inevitável". Esses pensamentos, acompanhados de uns anti-depressivos, acalmam a consciência e anestesiam os sentimentos de solidariedade social.

As latinhas foram escasseando, de repente as perninhas fizeram um movimento rápido pra baixo e o tronco da menina surgiu, se erguendo de dentro do latão ainda com uma latinha em cada mão, e ela caiu fora, em pé na calçada. Pensei em oito anos, o vestido branco, sapatos brancos, cabelo puxado pra trás e um coque no alto da cabeça, bem amarrado com uma fita também branca. Dava pra ver que eram meninas de família, bem cuidadas, apenas muito pobres. Não olhou pra ninguém, abaixou, pegou a pedra, abriu o saco plástico e foi pegando cada latinha no chão, batendo pra amassar e jogando no saco. A menor ajudava empurrando com os pés as latas que estavam mais longe, olhava pra maior e a maior não olhava em volta, concentrada no que fazia. A fila dos carros andou e o professor voltou pro seu carro. Motores foram ligados, movimentos foram feitos, sem que ela nem uma vez olhasse. Terminou, enrolou a boca do saco, envolveu nela a pedra, segurou e estendeu a outra mão. A pequena agarrou na hora, saíram andando ao longo da entrada do posto e seguiram pela calçada. A grandinha olhava em frente, a menor olhava pra trás, pros lados, pras pessoas, pros carros, pra tudo, na curiosidade irresistível das crianças mais pequenas, enquanto andava quase correndo pra acompanhar os passos da irmã que, de cabeça erguida, seguia seu caminho e puxava pela mão. Num momento a menorzinha olhou pra mim, do outro lado da rua. Tropeçou, olhou pro chão, se equilibrou e voltou a me olhar, de olhos bem abertos, sempre agarrada na mãozinha da irmã. Eu era diferente do que ela estava acostumada, carregado de coisas, caminhando quase paralelo a elas, um pouco atrás. Sorri e acenei pra ela, que sorriu encabulada e olhou pra frente sorrindo. 

Eu ia na mesma direção, fui pelo outro lado da rua mesmo. Tinha pensado em fazer um contato, mas achei que ia incomodar com meu "ser estranho", além de ter percebido na dignidade da mais velha o desejo de não fazer contato, de passar despercebida, como é comum entre os desprezados. É preciso respeitar. Acompanhei de longe até que elas entraram numa esquina e foram em direção a uma área sem calçamento. Quando iam virar a menorzinha me olhou de novo, sorri e acenei outra vez. Aí ela sorriu e acenou com a mãozinha. Eu segui em frente e fui expor na universidade.

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Passei alguns dias em Viçosa. Estava numa das separações do meu primeiro casamento e a saudade das crianças maltratava demais. Isso me deixava inquieto, beberrão, conversador, topador de qualquer parada. Precisava estar em movimento, mudar de lugares e de gentes, de ambientes, climas e relevos, andar na estrada pra ficar sozinho e refletir na vida, andar na cidade pra esquecer da vida, pra anestesiar os sentimentos. Ou ao contrário, encontrar sinais e toques que precisava encontrar, trazidos pelos acasos da vida, pelas coincidências inexplicáveis. Precisava manguear, expor, trampar, conversar, beber, me entorpecer, esquecer, lembrar, pensar, me isolar e me misturar, alternando meio sem controle. Viçosa já tinha dado o que podia, queria ir embora.

Estive abrigado em várias repúblicas de estudantes, nesse dia arrumei minhas coisas quando acordei e saí carregando tudo. "Hoje não vou dormir em Viçosa", avisei. Expus na universidade de dia, mangueei nos bares da noite, parei pra beber e a madrugada chegou. "Vou quando amanhecer o dia". Eram umas quatro da manhã e eu ainda estava bebendo, sentado numa mesa de um bar, quando vi passarem duas locomotivas, bem devagar e em frente ao bar, puxando uma dessas intermináveis composições de vagões. Eu sabia dos trilhos, mas não tinha visto passar nenhum trem até ali. "Ele passa sempre às quatro e quinze da manhã", me disseram. Eu estava bêbado, não lembrava o quanto havia bebido, entre cervejas, conhaques e cachaças e fiquei olhando os vagões. "Tá carregando o quê, essa porra?" "Sei lá" foi a resposta. "E tu sabe pra onde tá indo?" "Sei, pra Ubá". Ubá? É pra lá que eu vou. Levantei, fui colocando a mochila enquanto pedia a um dos garçons, "vê a conta rapidinho aí, cumpade!" Já estava com o equipamento completo, mochila, banca e painel, quando o cara trouxe. Os vagões continuavam passando lentamente, eu cuidava pra ver se a fila de vagões não vinha terminando. Paguei e fui na direção do trem. Tive a impressão que a velocidade aumentava, disse "parece que tá mais rápido", em dúvida se não era impressão por estar bêbado, e alguém falou "quando chega fora da cidade a velocidade aumenta". Me apressei, esperei passar a escadinha que tem no fim de cada vagão e, com uma corridinha e um impulso, me agarrei nela. Estava mais rápido, mas deu pra agarrar, com apenas uma das mãos - a outra segurava o painel - e os pés nos degraus. 

Cambaleei pra frente e pra trás, me esforçando pra me equilibrar. A subida foi difícil, com peso e uma única mão pra segurar e trocar de degraus. Quase caí várias vezes, fui subindo com dificuldade, aos poucos, o trem aumentando mais a velocidade, saindo da cidade e entrando no breu da escuridão. Com muito esforço, cheguei à borda do vagão, senti que não conseguiria levantar as pernas pra passar e, com uma cambalhota dolorosa, desabei lá dentro. Eram pedras de carvão mineral. Fiquei um tempo me recuperando do esforço e da pancada, sem conseguir pensar direito. Arrumei de alguma forma as pedras, fazendo uma espécie de berço, joguei a mochila por cima e deitei de costas sobre ela. Apaguei em pouco tempo, com o ruído do trem e o vento fresco.

Acordei suando, queimando com o sol alto, o trem de novo andava devagar, fui acordado pelo apito. A ressaca pesava minha cabeça, estava também ressecado pelo sol, a dor atrás dos olhos era de matar, o corpo todo doía. Eu espremia os olhos com a claridade, virei de costas pro sol rolando sobre as pedras, a cabeça latejando. "Deve ser Ubá". Apoiei as duas mãos e os dois pés e ergui o corpo de forma a colocar a cabeça acima da borda e olhar onde estava. A velocidade era mínima. Olhei e conseguir ler Ubá-MG numa parede. Quase ao mesmo tempo, ouvi gritos e alguém soprou um apito. O trem estacou nesse instante e eu caí de costas sobre as pedras. "Ah, caralho, putaquilpariu!" Fechei os olhos, doía tudo. 

Senti que era comigo, que devia sair logo dali, mas era tudo muito pesado, cabeça, braços, pernas, mochila... fui me aprumando, consegui colocar a mochila, cada movimento doía, a cabeça latejava, os olhos lacrimejavam, até os dedos doíam. Estiquei o braço na direção da banca, consegui segurar a alça quando ouvi "parado!" Fiquei imóvel, virei a cabeça devagar na direção do grito. O guarda me apontava uma pistola, por cima da borda, na escada do vagão da frente. "Pega essas merda e desce a escada!" Concordei com a cabeça, puxei a banca, peguei o painel e fui. No chão, bem na frente da escadinha, outro guarda me apontava outra pistola do mesmo tipo. "Desce devagar!" Eu não tinha outra maneira pra descer, tinha que ser devagar mesmo. Reparei no uniforme, Polícia Ferroviária Federal. Nem sabia que existia essa polícia. Bueno, digamos assim, estava conhecendo agora.

Fomos caminhando, passando trilhos, até a base deles, na estação, um do lado e outro atrás, os dois de armas na mão. Dentro era escuro, pra quem vinha do sol alto, mandaram sentar numa cadeira e começaram a perguntar, de onde vinha, como tinha entrado no trem, eu contava tudo, com a maior naturalidade, o trem passou na minha frente, eu esperava amanhecer pra pegar a estrada, ouvi que a composição ia pra Ubá, nem sabia que era proibido pegar carona num vagão. Eu passava mal, pedia água, ressecado. "Água é o cacete!" era a resposta. Eles pareciam não se conformar, queriam alguma coisa mais grave, mas não tinha. Gritavam. Eu não reagia, falava baixo, mesmo com eles gritando, mesmo sentindo as pancadas, dizia "precisa mesmo disso?" e olhava nos olhos deles. Acho que cansaram de mim, eu não era mesmo nenhuma ameaça. Não me deram água, por mais que eu pedisse. Eles saíram, conversaram, voltaram e ameaçaram, "da próxima vez, vai ficar aqui, na cela, e tem processo federal, sabia?" Eu não sabia, mas sabia que eles estavam prestes a me soltar, aquilo era só o epílogo. Continuei na mesma, calmo, com cara de enjôo, me sentindo meio morto, cabeça pesada, doendo, garganta seca, falando muito baixo. A senha de saída, afinal, "some daqui!" foi dita com a porta aberta, não precisei falar mais nada, peguei minhas coisas e saí pra luz ofuscante do sol de duas ou três da tarde.

Matei minha sede na torneira do jardim em frente à estação ferroviária. Depois andei um pouco pela cidade, encontrei uma obra abandonada, entrei e dormi até tarde da noite. Acordei com mais disposição, saí, tomei mais água e perambulei até achar um bar. 

sábado, 8 de setembro de 2018

Meia dúzia de pensamentos

A solidariedade só é uma virtude nas classes abastadas. Nas classes  baixas, nas periferias, favelas, nas áreas de ilegalidade constitucional, de abandono social, a solidariedade é uma ferramenta de sobrevivência coletiva, automática, que brota nas dificuldades cotidianas dessas áreas.

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Consciência não se alcança, se desenvolve. O que se alcança são degraus, estágios de consciência. O desenvolvimento é permanente.

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Humildade não é uma virtude mas, sim, senso de proporção e inteligência, na disposição de aprender e crescer contínuamente com a alma, o espírito, o abstrato do ser. É uma das bases indispensáveis da sabedoria. Não confundir com humilhação, cegueira comum aos orgulhosos e aos arrogantes.

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A sinceridade é a garantia de uma vida em paz consigo mesmo e com as pessoas que convivem com a gente. Não é uma questão moral, é uma questão prática. A vida e as relações pessoais são bem melhores quando a gente é sincera, mais espontâneas, sinceras e confiáveis. Onde a sinceridade não é bem-vinda é o campo da falsidade, da hipocrisia, da superficialidade. Não pode haver harmonia nem paz de espírito. Uma questão de qualidade de vida. E as escolhas são pessoais.

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A mídia seduz para trair, encena para enganar, mente para servir aos poucos que se servem do todo em prejuízo de todos. Desinstruídas, desinformadas, alienadas, hipnotizadas, as multidões se tornam gado, facilmente manipulável. Na seqüência, a própria mídia criminaliza as vítimas, "responsáveis" pela degradação social, culpadas da sua desgraça. E as pessoas, em sua maioria, repetem a mídia, acreditam nela, se deixam seduzir pela falsidade, insconscientes, sabotadas em educação, em formação de senso crítico, em informação, no desenvolvimento de consciência que é seu direito. Humano e constitucional.

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O trabalho interno é permanente e é a raiz das mudanças verdadeiras. Sem ele, é tudo cênico. Com ele o trabalho coletivo se aprofunda, cria raízes e se fortalece. É a diferença entre sinceridade e falsidade. Em tempo, falsidade nem sempre é mal intencionada. Ilusão é a falsidade dos bem intencionados.




sábado, 1 de setembro de 2018

Capciosidade feita Utilidade

Recebi uma pergunta que antigamente se chamava de capciosa. "Como você vê o direito de legítima defesa do indivíduo?" Uma convocação ao confronto planejado, uma avaliação de que lado se está. Mas não caí na armadilha. E aproveitei pra dizer o que penso.

Esse é apenas um assunto de "campanha eleitoral", como chamam essa farsa, superficial demais como toda campanha publicitária, enquanto se evita a todo custo refletir sobre as causas de tanta violência e criminalidade. O foco é "combater" a criminalidade, como se fosse possível secar a casa sem fechar o furo no encanamento. O teatro tá montado pra canalizar as atenções. Essa disputa, essa rixa entre coxinhas e mortadelas, direita e esquerda, capitalismo e comunismo é coisa fabricada, programada, condicionada estrategicamente, sociedade do confronto, da disputa, do "vencer na vida", do consumo como valor social, da superficialidade, da forma sem conteúdo. São chamarizes (iscas pra chamar a atenção) pra que não se questione de verdade as raízes dos problemas sociais. Pra que não se perceba a intenção total e deliberada na manutenção dessa violência e criminalidade, até como fator de apavoramento. Isso facilita a criação de falsas soluções, como armar a população pra que "se defenda", aumento do sistema carcerário (com significativa privatização, pra quem tem olhos de ver), diminuição da maioridade penal e outras aberrações sub-humanas que só farão aumentar os índices da barbárie. É como desviar o fluxo do furo pra saídas da casa, que acumularão, criarão poças, se infiltrarão e minarão os alicerces da casa. Melhor fechar o buraco no cano, consertar o vazamento - e aí se encontra o atendimento dos direitos constitucionais da população, investimento maciço na educação livre pra qualquer um que deseje, abertura das comunicações pra todos, abrigamento de todos os desabrigados, alimentação pra todos os famintos, informação e formação pra todos. Estamos entre o empresarismo vigente e o humanismo que pretendemos. Entre o modelo empresarial - onde ainda estamos - e o modelo humanista - que já se mostra nos embriões, nos grupos de exceção, ainda invisibilizados e, quando visíveis, ironizados, desqualificados ou atacados.

Uma sociedade que tenha como prioridade a sua população e a sua integridade ambiental terá todas as condições pra receber cada criança que nasce, com moradia, alimentação saudável, saberá formar, instruir e educar os futuros adultos na integração em uma coletividade harmônica, com o objetivo de existir se desenvolvendo cada vez mais na direção da paz social, da harmonização das relações, eliminando fácil, pura e simplesmente o espectro vergonhoso da miséria, da ignorância e do abandono. Propostas sociais que não tenham essas prioridades imediatas, não podem ser vistas como humanas, são propostas empresariais, onde o lucro e o patrimônio são valores acima da vida, do ser humano, da harmonia social e da eliminação de tanto sofrimento desnecessário, por existirem todas as condições materiais pra isso. O empresarismo cria indiferença ao sofrimento alheio e o "justifica". A miséria é "a justa punição da incompetênca", como disse Galeano.

Interesses banqueiros, mega-empresariais, dominam a sociedade. Dominam os poderes públicos de várias maneiras, influenciando a educação e dominando as comunicações, conduzindo pelo inconsciente os valores, os comportamentos, os objetivos, os desejos, as opiniões - mesmo diversas - em massa. Cada vez que vejo uma nova palavra ou expressão brotando entre os pretensos instruídos da sociedade, sinto cheiro de laboratórios de pensamento, das academias, da mídia ou de ambos. Gente existindo como lixo, miséria e abandono nas periferias das milhões de pessoas exploráveis ou descartáveis são a exposição da desumanidade social imposta pelo "mercado" e exercida pelos Estados dominados.

Áreas dominadas, educação e comunicação, postas a serviço dos interesses mega-empresariais. São estratégicas na formação de um povo instruído e culto ou consumista e competidor, conhecedor da sua história e informado sobre o mundo ou ignorante e desinformado, capaz de escolher individual e coletivamente os melhores caminhos a seguir, as necessidades a suprir, as prioridades sociais ou facilmente conduzível pelo massacre midiático-publicitário pela formação ideológica nas escolas particulares e pela ignorância produzida pelo ensino público. Por isso são as mais ferrenhamente dominadas e sabotadas nas suas funções sociais. Não são as únicas, todas as áreas são lucrativas e estão dominadas. Mineração, transportes, medicina, alimentação, tecnologia, agronegócios, indúsrias, tudo.

Mede-se o valor humano pela propriedade, pela renda, pelo cargo, não pela humanidade, sentimentos, temperamentos, caráter. O objetivo é vencer na vida, e não apenas se satisfazer com ela, viver em paz e satisfeito com a existência. O sucesso é medido pela qualidade do consumo, pela quantidade de riqueza acumulada, não pelos afetos criados, pelo avanço da consciência, pela utilidade coletiva ou pela solidariedade. Os insatisfeitos são canalizados pela idéia de "mudar o mundo", de comandar os de baixo, de organizar as massas, programados que são pela hierarquia da escolaridade. Assim são anulados em seus propósitos, entre "vitórias e derrotas", "auto-críticas" e "reposicionamentos", impotentes em "mobilizar" as suas "massas". Antes de revolucionar a sociedade, é preciso revolucionar a si mesmo. É constrangedor, pra mim, encontrar pessoas ligadas a movimentos sociais divulgando sorteios pra estadias em hotéis de luxo. Esses privilégios da riqueza são frutos da injustiça social, coisa pra se ter vergonha, não pra se desejar, é o que me diz minha consciência. Bom, em lugar de "constrangedor" eu podia dizer "revelador", não?

Como é revelador perceber que médicos recebem "comissões" de laboratórios e indústrias médicas - como a de próteses -, engenheiros que superfaturam preços e subqualificam materiais, funcionários públicos que recebem propinas pra cumprir suas obrigações ou pra não cumprir, professores estafados por excesso de trabalho mal remunerado, a não ser nas poucas escolas caras, por exigências de elites na formação dos seus filhos, transportes públicos invariavelmente torturantes e desrespeitosos, forças de segurança fazendo guerras em meio aos bairros mais abandonados pelo estado contra os funcionários do crime "organizado" (por quem?).

Posso citar aqui ponto por ponto em nossa sociedade, mas seria aumentar demais esse texto. As demonstrações de que o Estado, conduzido como é, representa o crime organizado contra seu próprio povo, contra seu território, contra suas riquezas, contra sua soberania, contra o desenvolvimento das nações como sociedades instruídas, bem formadas, bem alimentadas, bem informadas, conscientes de si e da necessidade de desenvolvimento da sociedade humana, estão em cada ponto. Tomar consciência disso é o fundamento na criação de novas condições de existência da humanidade no planeta. As primeiras raízes a se perceber estão dentro de cada um de nós. O ampliar da visão é um processo permanente, no ritmo do desenvolvimento da consciência. As conseqüências se fazem sentir no coletivo, em seguida a cada passo. A caminhada não tem fim, pelo menos à vista, ao longo das gerações futuras até onde a imaginação alcança - a minha, claro. Há quem imagine "o fim de tudo".

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.