segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Filho de bandido

            - Não vai tirar, não – o tom era seguro. Ela hesitava e argumentava:
            - Mas como é que eu vou ter filho, tá maluco? E se minha mãe me bota pra fora de casa?
            - Eu dou meu jeito -, ele parecia tranqüilo, nos seus dezenove anos. Ela estava pelos quatorze. Eles tinham um ano de namoro e estavam apaixonados. A camisinha do posto de saúde tinha estourado, numa refrega mais intensa, eles tinham contado com a sorte e esquecido o assunto. Até ela revelar a ele o atraso de três semanas. Ele havia aberto um sorriso de felicidade, mas ficou sério diante da idéia do aborto. Isso ele não queria.
            - Tu tem é que largar essa vida. Minha mãe não quer te ver nem pintado. Que jeito que tu quer dar? Nezinha já falou que me ajuda.
            Ele fechou a cara e levantou a voz.
            - Nezinha é o caralho! Não vai matar meu filho, não! Já disse que dou meu jeito.
            - Que jeito? Minha mãe tá certa, filho de bandido já nasce sem pai, que o destino é a cadeia ou o cemitério. Vai arranjar trabalho decente pra sustentar teu filho? E onde é que eu vou morar?
            Ele começou a arrumar as coisas na mochila, pegou um cofre de balas cheio, encaixou no fuzil, encostou na parede, sentou na cama com a pistola no colo.
            - Na hora que tu quiser, vem morar aqui, comigo e a mãe. Ela gosta de você, não é que nem a tua, comigo.
            - Se eu fosse puta, duvido que ela gostasse. E tu é bandido, não pode tirar a razão da minha mãe – ela foi rápida e certeira. Ele se ressentiu.
            - E tu acha que bandido é o mesmo que puta?
            - Não sei o que é pior.
            Ele terminou com a pistola, colocou na mochila. Levantou, foi até a janela, olhou as luzes daquele mar de barracos, morro abaixo. Ele tinha vergonha de ser bandido, não gostava de ser temido. Entre bandidos, precisava, pra não perder o respeito. Mas não maltratava ninguém, falava sempre baixo, com educação, escondia as armas, ao contrário dos outros, que gostavam de ostentar. Morador ele não deixava ninguém maltratar, na posição de respeito que tinha alcançado – em grande parte por causa da sua disposição de enfrentar a polícia. Ele ficava como possuído, atirava como louco, ainda fazia mira, entre as rajadas, quando divisava um alvo. Já tinha derrubado vários, e gargalhava quando isso acontecia, pra estranheza dos companheiros. Mas todos sabiam o porquê. Seu pai fora morto pela polícia.
            Era um biscateiro, fazia de um tudo, consertava canos, instalava a eletricidade nas casas, tinha uma carroça que usava pra buscar coisas pra consertar, catar reciclagem e fazer fretes. Sempre se orgulhara de ser honesto e trabalhador, mesmo desfavorecido pela vida, sem estudo, sem formação, sem capital. Fora com o pai que ele aprendera a gostar de todo mundo. Adorava sair com o pai e a carroça, quando não tinha aula. O pai, ele e o Tarzã, um vira-lata malhado e magro. O pai cantava, assoviava e dançava, falava com todo mundo, os porteiros lhe davam as coisas que os moradores dos prédios dispensavam, pediam alguns favores em troca, ele atendia de boa vontade. Quase sempre ele ganhava uma quentinha, pela hora do almoço. Algum restaurante ou moradores, mesmo, ele era muito querido. Até a noite em que ele saiu do bar, na favela, e tomou uma rajada, sem explicação. Depois puseram uma arma na mão dele. Seu pai, que dava o maior valor a não ser bandido, saiu no jornal como traficante, morto em confronto com a polícia. O ódio não cicatrizava. Depois daquilo, nunca mais foi à escola, apesar da insistência da mãe.
            Ele deixara a carroça guardada no lugar dela, num terreno vazio, do lado do posto, junto com outras carroças, era muito pequeno ainda, nos seus dez anos. A mãe emprestou pra um tio, em troca de uma merreca, o que rolasse. A carroça seria sua, quando crescesse um pouco mais. Mas a mãe adoecera e ele acabou vendendo pra comprar os remédios, que ajudaram, mas não curaram. Depois ele foi se arrumar no tráfico e foi o que deu condição pra eles viverem sem perrengue braba. Era só ele e a mãe. O mais velho tinha morrido, também, já fazia uns quatro anos. No tráfico. A mãe, cada vez mais calada.
            Olhando as luzes da favela, ele sentiu uma tristeza profunda.
            - Vou mudar de vida – ele murmurou. O rosto dela se iluminou.
            - Quando? – e foi se chegando nele, dengosa. Ele continuava olhando as luzes, pensando. Sentou na cama, olhou nos olhos dela.
            - Preciso arrumar um dinheiro. Me dá um mês. Aí a gente abre uma birosca, aqui na favela, mesmo. Só não vou poder ficar de frente, no começo, até os “verme” esquecer da minha cara.
            Ela irradiou felicidade, bateu palmas e se atirou em cima dele, aos beijos.
            - Mas não vai tirar a porra do meu filho, não! – ele fazia de bravo – e deixa eu ir, que agora é função – e saiu pelo escuro dos becos, fuzil pendurado no ombro.
            Na cabeça de menino, ele ia imaginando o filho, a risadinha de criança. E pensava na mãe, “tu vai brincar com teu netinho, mãe, botar ele no colo e sair dessa tristeza. Vou te dar uma alegria, mãe”. Pra ele, nada sairia errado, tudo ia dar certo. Logo a birosca estaria funcionando, em seu otimismo adolescente.

22 comentários:

  1. Gostei muito! hehehe
    Mas agora preciso saber o resto da história :)

    Abraços, e parabéns pelos trabalhos maravilhosos!

    Raquel Long

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  2. pelo que parece eu ja sei como acaba... :(

    mais parabéns ai pelos trabalhos!

    sou um adimirador das suas obras e fiquei sabendo que vc já esteve em JF (juiz de Fora), fato????

    vlw, abraço!

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  3. Fica a dica do resto da família, né.

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  4. Estive em Juiz de Fora muitas vezes. Algumas, nem entrei na cidade, só passei pela BR.

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  5. Como sempre eu digo Sensacional seu trabalho Dudu...
    Parabéns mais uma vez, essa concerteza és uma
    historia bem repentina na vida do trafico, porem
    nem todos os mocinhos do lado errado, fazem o
    mesmo que esse ai esta fazendo...
    por mais que eu saiba o final tambem, gostaria
    de ver o seu final aqui no blog, caso nao tenha
    tranquilo, so a sua intençao de amostrar com simplicidade isso ja esta maravilhoso sao fatos
    reais e do dia a dia que qualquer um de nos
    sabemos que existe, mais que a elite ignora
    afinal eles (elite) se favorecem com isso...

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  6. Muito boa a narrativa... E vc tem razão, é uma situação normal... Mas aí é que está a arte, transformando a rotina em algo belo e eterno...

    Parabéns!

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  7. Parabéns meu mano
    Muito bom

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  8. Ual!
    Linda a história, tem continuação?!

    Choque de realidade; e a última frase: "...em seu otimismo adolescente." Você fechou a história maravilhosamente e caso não tenha a continuação; saiba que realmente nem precisa.

    parabéns

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  9. Raquel, talvez essa história ainda não teve um fim. Nem todas histórias acabaram, sempre há chances de mudar para melhor

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  10. Não é qualquer um que sabe causar emoções, com as palavras...
    Muito bom mesmo.

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  11. Parabens Guerreiro de Luz , suas sabias palavras nos trazem a esperança de que um dia viveremos em uma sociedade mais humana e fraterna .
    Abração
    Christian / Floripa

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  12. "- E tu acha que bandido é o mesmo que puta?
    - Não sei o que é pior."

    Este trecho chama minha reflexão.
    Tento entender a colocação do garoto, o que é mais degradante na visão dele, a prostituição ou o tráfico?
    Existe uma escala social, ou uma hierarquia dentro da marginalidade?
    Se existe, quais são os critérios?
    Porque ser puta é pior/melhor do que ser traficante?

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  13. Esse é um assunto complexo e variado. As hierarquias variam, como varia a classe mais numerosa e exposta a diversos condicionamentos, sem defesa crítica. À distância, tudo parece a mesma coisa. Mas, de dentro, as variações são enormes. Agora, papo é melhor pelo endereço eletrônico.

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  14. Amigo, se algum dia tiveres por Lisboa, avisa! Gostava muito de te pagar um copo e falar sobre a vida. Continuação de um bom trabalho! Abraço

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  15. Sensacional, parabéns, conheci seu trabalho hoje e não consigo sair do blog, esse seu ativismo puritano e sincero inspira qualquer pessoa que pensa positivo, mais uma vez parabéns, abraço!!

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  16. Sensacional imagino o final da historia
    "...em seu otimismo adolescente."
    mas gosto de final feliz então vou imagina um !!!

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  17. Oi Eduardo,

    Essa é a primeira vez que entro no seu blogue, conheci através do blogue coluna zero, onde assisti um vídeo seu de 2009 do dia do publicitário que é hoje. Achei muito coerente o que você disse.
    Vi que você é uma pessoa com muito conhecimento prático da vida, isso é muito bom. Minha história de vida também proporcionou conhecer muitos extratos da sociedade, como nem todos tem essa oportunidade, as vezes fica difícil de verem o final da história baseado numa possível realidade.
    Sabemos que o jovem da história passa por muitos medos o tempo todo, graças a dificuldade em conseguir as necessidades básicas dele e da família. Agora com a gravidez da namorada então...
    Sobre ele abrir o comércio na favela, eu como filho de comerciantes de uma cidade de grande porte, sei mais ou menos quais seriam os problemas por ele enfrentado, que com certeza seriam horríveis. Comércio na favela deve ser uma coisa muito difícil imagino. Espero estar errado.
    Seria preciso muita sorte pra ele conseguir tirar o sustento dele, da mãe, da mulher, e da criança através desse comércio. Mas sabemos que o ser humano possui um grande poder de superação e quem sabe poderíamos ser otimistas com seu futuro nessa história...
    Parabéns pelo texto e por deixar suspenso o final... É assim que as pessoas mudam, pensando ...

    Abraços
    Apoena

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  18. Tanta coisa para discutir sobre este roteiro, tão comum, infelizmente. Mas deixo isso para quando pudermos levar um papo real, sem letras escritas, mas com som. Por enquanto, só digo que este teu belo texto me fez lembrar muito do filme " Quanto vale ou é por kilo? ". Parece que, infelizmente, poucas pessoas o viram. Para mim, foi uma das reflexões mais sérias que vi nas telas sobre a violência, o tráfico e, mais que tudo, sobre a hipocrisia da " ajuda " dos ricos. Saí do filme muito dividida. E do teu texto também. Abraço.

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  19. Crônicas do Morro... Chico Buarque fez um música muito boa, Meu Guri, gostei do texto. Mais seria melhor. Escreve um livro. :-)

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