terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Crônica de estrada



Eduardo Marinho em uniforme de gala
1977 - Campinas, SP



Chovia muito. Quase não dava pra ver o outro lado da rua. Entrei encharcado na rodoviária de Barra Mansa, calças arregaçadas, descalço, sandálias havaianas presas na cintura, pela corda que servia de cinto e prendia, do outro lado, um rolo de fio de “alpaca” – arame cor de prata, que eu usava pra escrever nomes em forma de broches. Bolsa de sisal atravessada do ombro, mochila média às costas, cabelos longos e barba rala, tudo pingando muito,subi as escadas que levavam ao patamar das bilheterias e parei ao reconhecer, de longe, entre as duas figuras destacadas de verde, um conhecido da escola militar. Paletó verde-oliva, botões dourados, camisa e gravata bege, duas estrelas em cada ombro. Um eu não conhecia, o outro fora meu colega de sala de aula e de setor na segunda companhia. Adauto. Encostei numa pilastra ao lado do fim da escada, sorrindo. Eu sabia que ele seguiria carreira. Imaginava toda a linha dos acontecimentos da vida dele. Terminara a escola que fazíamos, ingressara automaticamente na academia. Foi novamente bicho, calouro e veterano. Recebeu o espadim em solenidade e tornou-se aspirante a oficial, por seis meses, eu acho. Daí a segundo tenente, por alguns anos e, automaticamente, “promoção” a primeiro tenente. Aí, mais anos passariam até chegar a capitão. Depois disso, o critério das promoções deixa de ser automático, passa a ser “merecimento”, ou seja, relacionamentos, influências, “peixadas”.

Adauto ainda não me vira. Estava de lado, esperava o outro comprar as passagens no guichê. Eu, parado junto à escadaria que acabara de subir. De repente ele olhou direto pra mim- sem me reconhecer - mas, como estávamos distantes uns trinta metros, relanceou o olhar pro outro lado, em busca de algo perto dele que eu pudesse estar olhando. Não encontrando, olhou pra mim de novo, já começando a achar estranho. Ele tinha a mesma cara, acrescentando um bigodinho fino sobre o lábio; eu estava irreconhecível para ele. Minha vida, meus valores, minha visão de mundo, minhas buscas, ele não fazia a menor idéia de nada. Minha imagem, pra ele, eu sabia estranhíssima, descalço, cabeludo, pingando e encarando. Na terceira olhada ele já tinha franzido as sobrancelhas, quando chegou o outro tenente. Adauto falou algo perto do seu ouvido e os dois me olharam. Falaram entre si, pegaram suas bagagens e vieram na direção da escada, agora os dois me encarando. A tendência era a agressividade, mas o meu meio sorriso os desarmava. Quando passavam a dois metros de mim, soltei baixo e melódico “Adauto”... Ele deve ter tomado um choque, porque, com um pulo, agarrou meu braço, gritando “quem é você? QUEM É VOCÊ?” – “calma, Adauto”- “de onde você me conhece?”- “larga meu braço, Adauto” – “DE ONDE VOCÊ ME CONHECE?”- “vai me agredir, Adauto? Vai me prender?” Ele se recompôs, constrangido, largou meu braço “não, tudo bem, mas fala quem você é”. O outro tenente se colocara em posição de cortar uma rota de fuga, preferi não ver. “Sou o Marinho, da preparatória, lembra não?” Ele buscou nos arquivos mentais, ficou meio aturdido ao lembrar –“Marinho?”- mudou o tom pra estarrecido – “Marinho?!”- e, ao me olhar de cima a baixo, foi ficando penalizado –“Marinho!”. Sua expressão era a da mais profunda desolação – “meu Deus! O que aconteceu com você? Como é que você caiu nessa?”- eu continuava sorrindo, tranqüilo, ele demonstrava confusão –“morreu alguém da sua família?”- eu ria, abertamente, “não, não”- “foi mulher?”- gargalhei -“quê isso, cara, eu tô bem, tô legal!”- “ah, não tá, não. O que aconteceu com você? Como é que cê caiu nessa?”- “paga uma cerveja e eu te conto”- “eu pago, cê tem que me contar que que aconteceu.”

Fomos a um boteco em frente à rodoviária, Adauto e eu, o outro ficou. Sentados, com uma cerveja no meio, discorri para ele sobre minha trajetória até perceber que não me enquadraria de maneira formal na estrutura social. “Por que não seguiu carreira? Hoje seria um oficial do exército”, era sua questão. Eu lhe disse como encarava o papel dos militares na sociedade. Lembrei de como apontamos fuzis para uma multidão desarmada. Falei que os militares, com essa de não questionar ordens, não defendiam a população. Que as Forças Armadas eram usadas pra manter privilégios da minoria rica e reprimir qualquer revolta ou manifestação dos sabotados, da maioria. Ele não estava preparado. Não conseguia me encarar. Eu observava seus olhos inquietos procurando os debaixos das mesas, as laterais do boteco, enquanto eu falava no uso dos militares para servir aos interesses da minoria dominante. De como, em última análise, éramos jogados contra a população, espoliada das condições básicas de existência, a favor de uma concentração absurda das riquezas do país, gerando miséria, ignorância, sofrimentos sem conta para a maior parte. Adauto não chegou à metade do primeiro copo. Alegou estar em cima da hora, de repente, apertou rapidamente a minha mão e saiu sem pagar a cerveja. Eu fiquei olhando aquele jovem oficial, túnica verde-oliva, botões dourados, quepe na cabeça, atravessando a rua debaixo de chuva, em fuga.

Terminei a cerveja, paguei, fui ao andar de cima da rodoviária, comprei a passagem pro Rio e desci à plataforma do ônibus. Para minha surpresa, Adauto e seu colega estavam na fila do mesmo ônibus. Quando olhei uma segunda vez, Adauto havia sumido. Entrei na fila, no ônibus, sentei na poltrona. Quando o motor foi ligado para a partida, entrou o Adauto, passou por mim com um aceno e um sorriso amarelo e foi pro fundo do veículo.

Eu não havia dormido à noite, apaguei antes de chegar à estrada; quando acordei, na rodoviária do Rio, era o motorista que me sacudia –“chegou, chegou, rodoviária!”. Não havia mais ninguém no ônibus. Adauto tinha ido embora, com seu colega e sua confusão.
Eduardo e Brisa do Outono, com 6 meses.
1982


 



24 comentários:

  1. Essa incrível história lembro você dizendo para mim na sua casa. O encontro tempestuoso de duas fronteiras. Dois mundos diferentes. E Ele ainda não entende suas escolhas, né Eduardo?

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  2. Ele não podia entender. Talvez hoje possa, talvez não. Nunca mais vi o cara.

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  3. A cada dia que passa sou mais teu Fã meu caro...
    Gabriel Moreira (trocamos ideias as vezes por e-mails)
    Sensacional sua intelectualidade... se eu obtivesse pelo menos uns 30% do seu talento com artes e ou consciente... sem dúvida seguiria seu caminho... já faço bastante para tirar o sistem a de dentro de mim em primeiro lugar.

    Abraços irmão !

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  4. Cara, ainda não li atentamente seu blog, mas já vi que é muito bom... Seu pensamento e forma de vida são coisas admiráveis... Deixo aqui o endereço de um postagem no meu blog, na qual eu comento sobre você e sobre tudo isso que nós lutamos... Abraços...

    http://seisvogais.blogspot.com/2011/02/parafernalias.html

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  5. Gostei muito do texto, fiz uma reflexão muito legal sobre quantas pessoas tem a oportunidade de refletir sobre sua vida e escolhas atraves de outras pessoas ou de circunstâncias , mas ainda assim não o fazem... muito obrigado por mais essa historia, levo de lição pra mim e para os proximos de mim.

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  6. Muito boa a pequena história, creio eu que ja dominado ele não podia entender seu ponto de vista e talvez o viu como um "desleixado" talvez?
    ou você conseguiu o por na reflexão?

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  7. Largado, perdido, drogado, qualquer coisa pra me desqualificar e seguir seu caminho programado.

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  8. Exatamento o que pensei...
    é triste ver que pessoas perdem a capacidade de questionar a sociedade, e quando está de frente com alguem que a questiona logo cria "obstáculos" para não o fazer

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  9. Essa história é muito interessante. Eu já imaginara o final. Mas é boa a lição que você retrata.

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  10. o que eu acho q deve ser prioridade de nos leitores desse blog eh que REALMENTE levemos para nossas vidas a mensagem do Eduardo. Eu sei que não é facil largar tudo como ele fez, ele é o martir da libertação, mas nós podemos fazer muito tambem. Eu tento a cada dia me desapegar mais da parte material da vida e tentar vivenciar mais a parte sentimental, !saber dar valor as coisas mais simples".

    Acho que é isso que ele espera difundindo sua mensagem e suas ideias. Que alguns de nós mudemos e que Nós tambem mudemos outras pessoas. ABraços!

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  11. ...mártir da libertação... aí é phoda.
    Calmaê, rapá. Não larguei nada que não estivesse me pesando. Fui atrás do que todo mundo vai: satisfação pessoal. Só que não acreditei no que me diziam a respeito do que é satisfação pessoal.

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  12. sabe que gosto do seu texto, os comentários depois são deliciosos. A primeira vez que vi esse blog passei dias me perguntando se "levava minha vida" ou se estava sendo levado....

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Eduardo Marinho.Este nome está guardado perto dos meus grandes ídolos(Martin Luther King,Malcolm X,entre outros).
    Eduardo, gostaria muito de saber seu ponto de vista perante as conspirações que rondam net à fora.Sobre Nova Ordem Mundial e illuminates.Deve estar ciente destes assuntos.

    Valeu,Abraços.

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  15. Claro, Rodrigo. Algumas dezenas de dinastias mantêm o "controle", do jeito desumano que conseguem. Eles se escondem atrás de conceitos criados, como "mercado"(onde controlam seus milhões de coadjuvantes), e ditam normas absurdas, criadas nos laboratórios transnacionais e implantados pela mídia, que também é deles. A nova ordem mundial é seu golpe de mestre, mas eles dependem, totalmente, da inconsciência e da subalternidade. Sem nós, sem os subalternos, não são nada. Não sabem faxinar seu próprio quarto, fazer sua comida ou lavar sua roupa. São completamente dependentes dos subalternos. Por isso, ao invés de atacá-los (eles estão preparados pra qualquer ataque, sabem o que fazem e estudam - ou pagam pra estudarem - as reações possíveis), prefiro desvendá-los aos que estiverem ao meu alcance. Eles não conseguem controlar inteiramente, daí o surgimento da ALBA, na América Latina, e as insurreições no Oriente Médio, na atualidade. Por isso, escolho trabalhar na conscientização, no desenvolvimento do amor próprio, na insubmissão aos padrões vigentes. Eles, os poderosos, estão preparados pra tudo, pro combate direto, pras denúncias. Só não estão, nem podem estar, é pra tomada de consciência da maioria. Não espero resultados, mas preciso trabalhar nesta direção. Gerações passaram neste trabalho condicionador, gerações passarão no trabalho conscientizador.
    PS - Cuidado com a idolatria, rapaz. Observe e faça o seu papel, nesse processo. Em nome de você mesmo e da sua dignidade. Grande abraço

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  16. continue eduardo! contunue com este blog sou um grande admirador seu e de seu belo trabalho, é preciso conscientizar o maior número de pessoas possíveis!
    aliás gostaria que vc visse este documentário:

    http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=4Z9WVZddH9w

    gostaria de saber sua opinião
    mande para meu e mail: otoniellima27@yahoo.com.br
    abraços!

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  17. continue eduardo! contunue com este blog sou um grande admirador seu e de seu belo trabalho, é preciso conscientizar o maior número de pessoas possíveis!
    aliás gostaria que vc visse este documentário:

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    gostaria de saber sua opinião
    mande para meu e mail: otoniellima27@yahoo.com.br
    abraços!

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  18. Acredito que este encontro tenha sido necessário ao Adauto. De acordo com as atitudes que teve,deve ter ficado em estado de choque e meio perdido entre tudo o que sempre pensou e todas as verdades que ouviu. Agora deve ter digerido bem (ou não)suas declarações, conversado com outras pessoas,provavelmente seus superiores e que fizeram de tudo para provar-lhe o oposto do que ouviu. Gostaria mesmo de saber o que pensa o Adauto neste momento. Com certeza foi um encontro marcante!!!

    Rsrsrsrsrs!!!

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  19. Linda, simplesmente linda essa imagem.
    Que Deus le abensoe e toda sua decendência.

    Ass: Aranjhonn

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  20. Talvez Adauto tenha fugido de vergonha...
    Um abraço,
    Dôra Araújo

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  21. Este comentário foi removido pelo autor.

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  22. uhaiuahiauhaiuhaiuah queria ter visto a cara dele e tbm te mandar a merda por alguma coisa tua que eu não goste e não saiba!...td mundo só te elogia, coisa chata!

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  23. Se eu soltar um sonoro e pútrido pum no almoço, cê me manda?

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