sábado, 28 de janeiro de 2012

Mudar por dentro, pra mudar a sociedade

Consentimos nessa barbárie social, assumindo os valores incutidos em nosso inconsciente, acreditando na realidade distorcida que nos é apresentada, desejando o que nos é condicionado desejar e nos comportando, mais ou menos explicitamente, como programado nos laboratórios de psicologia cooptada pelo poder econômico e implantado pela mídia comercial. O verdadeiro trabalho revolucionário começa dentro de si mesmo, em cada um. Quem não se dispõe a isso, por orgulho ou outra cegueira, jamais será realmente revolucionário, ao contrário, servirá inconsciente à formação de um cenário de falsa democracia e, no máximo, justificará o incremento das forças de segurança destinadas à contenção de massa, com sua atuação dezarrazoada, virulenta, esporrenta, agressiva, usando a maneira programada de protesto previsível e desejável aos poderosos do sistema. Não é preciso derrubar os opressores, apenas deixar de sustentá-los, de colaborar com eles, consciente ou inconscientemente. E eles cairão, por desamparo. 

Li no Correio do Brasil que a relatora especial da ONU sobre o direito à moradia adequada “pediu” às autoridades brasileiras pra encontrar uma “solução pacífica” e se declarou “chocada” com o “uso excessivo da força” na desocupação de Pinheirinho. Daqui da minha insignificância, eu perguntaria à doutora Raquel em que mundo ela vive. Então não é um procedimento comum e freqüente, as forças de segurança serem atiradas pra cima do povo pobre que toma atitudes de emergência por sua conta, ocupando o que é do seu direito moral ou reivindicando do Estado o que é de sua obrigação constitucional e não é cumprido, porque o poder econômico/político não permite? Porta-voz do sistema, a mídia late furiosa e histérica contra qualquer movimento realmente popular, que tenha expressão e conseqüência, como o dos sem terra, dos sem teto, dos trabalhadores desempregados, o pela reforma agrária, o dos atingidos por barragens, o dos povos indígenas que insistem em sobreviver ao genocídio e ao saque secular das suas terras e tantos outros.

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A relatora especial das Nações Unidas sobre o direito à moradia adequada, a urbanista brasileira Raquel Rolnik diz que esta chocada com o uso da força


As pessoas sem teto sabem muito bem que, ao ocuparem prédios abandonados, correm muito menos risco de violência se forem imóveis públicos. Quando são propriedade privada, mesmo caindo aos pedaços, a desocupação pela polícia é violenta ao extremo, porque a influência raivosa dos proprietários contamina o aparato público de repressão e, como vi no documentário “Atrás da porta” (http://www.youtube.com/watch?v=NDQuRhsr8HI), no aviso de um sargento pras pessoas que se dispunham a sair, “não sai agora não, que a ordem é esculachar”, ou seja, descer a porrada. O traço de humanidade revelado pelo sargento é exceção à regra, mas revelador da disposição do comando em dar o exemplo de terror pros desabrigados, sinal de sujeição ao poder econômico. A propriedade privada é mais sagrada que o ser humano, desde que este seja parte da maioria pobre. A vida que tem valor é a de quem tem patrimônio, tanto mais valor quanto maior o patrimônio. A quem serve o comando das forças de segurança? Pelos fatos, evidentemente, aos que mandam, os grandes empresários, que os revolucionários acadêmicos chamam obscuramente de “o capital”.

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Um punhado de indivíduos cercados de empregados por todos os lados, que não sabem nem lavar suas cuecas e calcinhas, não sabem fazer nada além de ordenar, sabotar, controlar e explorar pobres. Eles morreriam à míngua se não tivessem quem os servisse. Ou teriam que aprender o serviço dos seus empregados, idéia inconcebível pra eles. Não é à toa que o ensino é sabotado (longe de ser por incompetência dos políticos), que a mídia é privada e qualquer tentativa de regulação das comunicações é violentamente rejeitada como ataque à liberdade de imprensa (liberdade pra mentir impunemente, na verdade) e qualquer proposta de democratização, liberando rádios e TVs comunitárias, sindicais, de associações, bairros, municípios e escolas é combatida. É preciso - e fundamental - que o povo seja ignorante, desinformado e mero expectador não atuante em sua própria história, para se manter tudo como está, o poder concentrado na mão desse punhado, dessa corja desumana que se acha superior.

São incontáveis os massacres, as perseguições, as agressões das forças de segurança pra cima da população mais pobre e sabotada em seus direitos constitucionais. Seria exaustivo aqui listar as violências, as ilegalidades, as agressões a movimentos sociais, as falácias jurídicas aplicadas às coletividades, as prisões e assassinatos de lideranças, mesmo depois da ditadura explícita, mesmo a contar do Eldorado dos Carajás, na época do lesa-pátria FHC. Quem vive em comunidade pobre conhece a violência cotidiana, vive sob essa realidade. É muito difícil encontrar nessas comunidades quem já não tenha sido de alguma forma desrespeitado por elementos das forças policiais, quem não tenha parentes, amigos e conhecidos agredidos ou mortos por essas forças “públicas”. A coisa pública está imersa na privada e a seu serviço, enquanto sustenta a hipocrisia de que é um estado democrático, falácia vergonhosa que não se sustenta em qualquer análise isenta e interessada na realidade.

Desgraçadamente, isso não parou aí, mas sim foi estabelecido como comportamento padrão. As forças armadas contra o povo, a favor dos grandes empresários e das classes mais ricas, minorias numericamente insignificantes que se consideram civilizadas, educadas, superiores, finas, o que demonstra sua inferioridade espiritual e disfarça sua fraqueza pessoal. Morrem de medo que a população acorde e faça com eles o que eles fariam com quem os tratasse da forma que a maioria é tratada. Como disse Josué de Castro, o mundo está dividido entre os que não dormem porque têm fome e os que não dormem com medo da revolta dos que têm fome. Os poderosos, com o poder usurpado sobre as sociedades, se armam com forças de segurança pública e privada, do mesmo jeito que dispõem das verbas públicas, do orçamento público, dos organismos públicos, do poder público, como um direito adquirido às custas da inconsciência da maioria, da engabelação e da sabotagem.

Insisto em que todos nós não só colaboramos, como sustentamos esse sistema espúrio, com nossos valores, nossos comportamentos induzidos a partir da infância pelos costumes arraigados desde os tempos do “sangue azul” e atualizados pelo poder de persuasão dos chamados “grandes meios de comunicação”, a mídia privada, e seus profissionais de psicologia do inconsciente e do comportamento. Veja “O século do eu”, ou “O século do ego” (http://www.youtube.com/watch?v=MTKFVFjUr8c), acho que são duas versões do mesmo filme, que demonstra como começou a manipulação do comportamento através do inconsciente, com os conhecimentos desenvolvidos por Freud e aplicados em publicidade por um sobrinho seu, que ficou rico nos USA, servindo às corporações em seu começo de manipulação midiática. De lá pra cá, essa prática foi desenvolvida ao extremo e nos pega a todos desprevenidos. Pensamos que formamos nossos valores, nossos padrões de comportamentos, e somos induzidos todo o tempo. Senão, como aceitar a miséria como inevitável? Como encarar a sociedade como um campo de batalha, como desejar consumos excessivos, como valorizar a forma e desprezar o conteúdo? Um pilantra bem vestido é socialmente bem tratado, uma pessoa honesta, generosa e solidária, se estiver maltrapilha, é invariavelmente maltratada. Não se olha nos olhos, não se leva em conta a alma. 

Ou retomamos o direito - e a obrigação - de formar nossos valores e padrões de comportamento, ou qualquer mudança social será cosmética, sem profundidade e inócua.


Eu gostaria muito de ver as fotos que esse cara conseguiu. Devem ter ficado o máximo.

7 comentários:

  1. Sabe o que me choca tambem ? Que os instrumentos da violência, os soldados, são na verdade parte do mesmo povo que atacam e , salvo os corruptos que tem seus ganhos altos, vivem com salários que pouco podem fazer para mante-los fora de locais como Pinheirinho.

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  2. Eu reconheci você pelo olhar, mas você não se identificou...

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  3. A situação dos militares e demais forças de "segurança" é peculiar e digna de uma análise mais profunda, isenta de rancor, coisa difícil pra quem já esteve tantas vezes exposto à grosseria, ao desrespeito, às ameaças explícitas e implícitas, ao tratamento violento comum nas áreas pobres da sociedade, à ameaça de armas apontadas sem o menor motivo real. Os profissionais de segurança que estão na rua refletem a ideologia e a posição dos que comandam, que por sua vez sofrem influência direta dos que mandam de verdade, acima das secretarias de segurança e mesmo dos governantes, subalternizados pelos financiamentos de campanha. Daí a prática cotidiana ser impregnada com a desumanidade empresarial. Os policiais sofrem sua cota - desumanizados, desenvolvem patologias sérias e, muito freqüentemente, têm problemas afetivos, emocionais, relacionais - com as famílias, com os vizinhos... - tornando-se elementos violentos, intolerantes, problemáticos, acabando em rejeição - haja visto a rejeição social -, o que piora o quadro. É preciso uma análise humana, isenta de rancor, de julgamento das ações ordenadas "de cima", por quem não põe a cara pra assumir as decisões publicamente, e praticadas pela parte psicologicamente mais frágil e manipulada por instruções a que ninguém tem acesso, mas que define personalidade e comportamento das tropas.

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  4. Eduardo, já vi alguns vídeos e palestras com você no youtube, cheguei até o seu blog, vi sobre o lançamento de seu livro, comprei e estou na metade dele. Eu estudo na Unesp, "grande" universidade pública, casa da ciência e do saber, onde o senso comum é frequentemente desmerecido por inúmeras razões, inclusive por não ser produzido por pessoas com estudos acadêmicos, em sua maioria; geralmente desmerecido por professores mesquinhos e egocentricos que usam seus diplomas emoldurados para deixar na frente do banheiro para que sempre que forem fazer suas necessidades, lembrarem-se do quão foda eles são. O que me impressiona nas suas escritas e suas falas, é a propriedade em que você fala sobre as coisas sem ter esses estudos acadêmicos, fala de um modo e de uma maneira que nenhum professor doutor livre docente com pós na casa do caralho diz, tanta convicção sem ter certeza de nada, e um orgulho de questionar, para sempre aprender e aprimorar, uma vivência humana, uma variedade e humildade impressionante. Estou aprendendo coisas que tenho certeza que não apredenderei jamais na faculdade, ainda mais por graduar Educação Física que sofre de sedentarismo social (há exceções). Enfim... não pare de questionar, e de divulgar seus pensamentos conosco, parabéns!

    Chico.

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  5. Assisti ao documentário Atrás da Porta e apesar de triste e revoltante, já valeu a minha segunda-feira. Abraço!

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  6. Excelente Eduardo, como sempre ! Eu que moro em condomínio, os novos guetos, ou os guetos 'ao contrário', vejo isso todo dia, o que você diz e o que Josué de Castro também disse: o mundo está dividido entre os que não dormem porque têm fome e os que não dormem com medo da revolta dos que têm fome.Como você diz em sua conclusão, é chegado o tempo de uma mudança de valores, de atitudes e de comportamento. Concordo com tudo que o Chico disse num comentário acima e também estou aprendendo coisas que tenho certeza que não aprendi jamais nos meus cursos na academia. abraços e obrigado.

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