sexta-feira, 20 de abril de 2012

Dia do índio é o cacete




Ontem, dia 19 de abril, chamado o “dia do índio”, não escrevi nada sobre o tema porque não existe dia do índio, desde que chegou aqui a civilização européia. Antes, como diz a música, todo dia era dia de índio.

Imagino o assombro com que a rapaziada viu surgirem as caravelas no horizonte, como enormes águas vivas, velas estufadas pelo vento, vindo em direção à praia, cada vez maiores, diante dos olhos espantados da tribo. Relatos escritos pelos europeus dão conta do espanto de índios e civilizados. Uns com a chegada daquelas enormes borboletas marinhas, cheias de brancos fedorentos e cobertos de panos, coisa incompreensível pra eles, naquele calor, outros com a existência de habitantes naquelas paragens desconhecidas, despidos homens e mulheres, uma vegetação nunca vista, com animais e frutos novos, costumes e línguas estranhas de parte a parte.

Os nativos não imaginavam a capacidade destrutiva dos europeus. Ali começavam os cinco séculos de violência, escravização, saque, expulsão e morte. Setenta milhões de habitantes das Américas foram sistematicamente exterminados e seus descendentes ainda são perseguidos até hoje, discriminados, difamados, saqueados, expulsos das terras que lhes restam.



Além da cobiça dos ricos latifundiários, mineradores e outros, os povos originários são perseguidos, a meu ver, por razões ideológicas. Numa sociedade centralizada no consumo e na produção, controlada por uns poucos e impregnada por valores falsos que transformam a vida num inferno, eles incomodam por evidenciar as mentiras nas quais estamos todos imersos. O indígena não vive para trabalhar, mas trabalha para viver e no que gosta. Quando chega da mata, trazendo caça, peixe ou frutos, não dá pra dizer se estava trabalhando ou se divertindo, porque para o índio, trabalho e diversão se misturam. Nós, civilizados, nos acostumamos à idéia do trabalho como um sacrifício a que todos estão obrigados. Assim fomos condicionados e poucos conseguem reagir a isso. Para nós, o mundo é uma competição desenfreada, um inferno de todos contra todos, conforme convém ao pequeno grupo dominante. O objetivo de acumular e de consumir, motor do inferno social, não existe para o índio. O que ele precisa, em seu estado natural, ele faz, não precisa comprar. Se ele precisa de uma casa, ele sabe fazer. Uma canoa, ele faz. Uma panela, uma rede, suas armas de caça, tudo ele sabe fazer, agasalho, remédios, tudo. Produz seu artesanato e pode muito bem viver de trocas, nos poucos produtos civilizados que lhe são úteis, como facões, machados e pouca coisa mais. O objetivo de vida dos índios não é juntar patrimônio, consumir à farta, disputar com seus irmãos quem pode usufruir de mais bens, dinheiro e poder. O objetivo da vida é viver.

Lembro de uma história, da época da vinda dos franceses (invasão francesa, nos livros de história) para disputar o pau-brasil com os portugueses, pois era uma mercadoria altamente lucrativa na Europa, sobre o diálogo entre um ancião tupinambá com um oficial francês, onde ele questionava tantos esforços, riscos e sofrimentos dos europeus para levar aquela madeira pelo mar afora. “Não há madeira lá pra vocês se aquecerem?” O oficial esclareceu que não era pra queimar, mas fazer tinta. “E pra quê é preciso tanta tinta?” O francês explicou que havia homens riquíssimos, que produziam mais tecidos, contas, espelhos e outras coisas em tamanha quantidade que o velho índio não poderia imaginar. E que um só comerciante riquíssimo desses poderia comprar vários navios cheios de pau-brasil. O índio não compreendia. “Mas esse homem riquíssimo de que você fala... ele não morre?” Morria, claro, como todos os outros. “E quando ele morre, o que se faz com o que ele juntou?” Fica para os descendentes dele, como herança, para que possam viver e estar garantidos. Então o índio balançou a cabeça, em reprovação, e afirmou que agora entendia que os europeus eram mesmo loucos. Se submeterem a tanto esforço, tanto risco, tanto sofrimento, a uma vida de sacrifício e dor, por um motivo daquele... não fazia sentido. “Nós também temos parentes de quem gostamos, as crianças nascem e crescem e nós sabemos que a mesma terra que nos alimentou, também os alimentará. Então, vivemos a vida com gosto, sem nos preocupar com coisas inúteis como essa e sem precisar sofrer tanto sem necessidade”.

Então, os povos originários são um péssimo exemplo para a população desinstruída e condicionada aos valores falsos que a sociedade nos impõe de forma tão tirânica, e ao mesmo tempo, insidiosa, que impede o questionamento. Por repelirem o sistema de trabalho empregado e rejeitarem a forma de vida civilizada, são chamados de vagabundos. Por suas áreas demarcadas ficarem fora do mercado de terras e do alcance da cobiça empresarial e latifundiária, execra-se e se impede de todas as maneiras a reparação aos crimes cometidos cotidianamente contra esses povos desde o nascimento do Brasil como o conhecemos, reconhecendo e demarcando suas terras de acordo com suas necessidades. O extermínio prossegue, massacre após massacre, enquanto a mídia defende os agressores e ataca as vítimas. Os patrões os odeiam, os grandes e ricos patrões que os vêem como obstáculos para seus lucros exagerados.

Deveríamos ver o tal “dia do índio” como o dia da vergonha. Não há progresso que se justifique com o sangue, o saque e a dor de tanta gente. O Estado e a nação brasileira, na pessoa de cada brasileiro, sobretudo nas autoridades, deve reparação aos descendentes atuais de inúmeras gerações, por mais de quinhentos anos, que foram escravizadas, perseguidas, dizimadas e saqueadas, com detalhada e esmerada crueldade. Descendentes que conservam, heroicamente, tradições e sabedorias ancestrais, depuradas ainda com sofrimentos atrozes no cotidiano, fruto do preconceito, da discriminação e da exclusão, que poderiam perfeitamente melhorar nossa sociedade, nossos costumes e nossas relações, tanto sociais quanto com a natureza.


25 de abril de 2012

Desumanidade e injustiça nos crimes do sul da Bahia contra os originários índios pataxós.


Nota de denuncia da comunidade Pataxó Hã-Hã-Hãe contra as policias Federal, Militar, Civil e fazendeiros.


É preciso fazer barulho, passar adiante, se manifestar, denunciar. Está acontecendo agora, a qualquer momento, enquanto comemos, enquanto dormimos, isso está acontecendo. Relatos documentados da covardia criminosa contra comunidades inteiras, famílias como as nossas famílias. O sentimento preconceituoso contra os índios - como qualquer preconceito contra qualquer coisa ou pessoa - só revela o nível primário de consciência. O sentimento de superioridade revela a inferioridade. A busca da igualdade plena - em direitos e deveres - é uma das mais nobres, difíceis e valiosas buscas da humanidade, no caminho da sabedoria e do conhecimento pleno, infinita estrada por onde todos nós andamos, a família humana entre tantas vidas universo afora.
Esse caminho passa pela consciência de que somos uma única família e existimos como tal.


14 comentários:

  1. Ai Eduardo, segue um link de uma imagem que tem tudo a ver com o título do seu texto:
    https://fbcdn-sphotos-a.akamaihd.net/hphotos-ak-prn1/537896_222986561141013_100002890119484_347488_1731126718_n.jpg

    Fraterabraço

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    1. Tem razão. Eu conhecia, mas não me veio à mente. Obrigado.

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  2. O pessoal que faz missões evangélicas em aldeias diz que indio é preguiçoso e que eles tentam modificar. Confundem preguiça e vida de verdade. Nao sei por que, em nome de cristo, tentam aculturar os indios. Católicos, protestantes, todos... é triste.

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  3. Eduardo,
    muito bom seu texto, como de costume!
    Dá uma olhada nesse texto que escrevi, pois acho que tem uma relação direta com este teu.

    http://arrieguamachovei.blogspot.com.br/2012/04/o-mundo-visto-do-lado-de-ca.html

    Saudações Xinguanas

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  4. Que puta reflexão, Edu!!
    O tempo todo são empurradas mentiras para cima da população, para criar aversão aos indígenas e apoiar aqueles que os agridem.

    Boa demais a conversa do ancião tupinambá com o oficial francês. Mostra o quanto os europeus criaram coisas desnecessárias que geravam a violencia, guerra... enquanto os índios, com simplicidade, sabiam valorizar o que era realmente necessário para a vida.

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  5. Muito bom o seu blog, velho. Depois dá uma fragada no meu www.fatossurreais.com.br, tem um conteúdo ´´anárquico´´ tbm.

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  6. "Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história". Marçal de Souza, o banguela dos lábios de mel.
    Vale lembrar dele e da sua luta incansável pelas causas indígenas.
    Parabéns pelo texto!

    http://www.youtube.com/watch?v=Nf9SVXpAeiA&feature=channel&list=UL

    https://fbcdn-sphotos-a.akamaihd.net/hphotos-ak-snc6/149461_272804716143438_221511584606085_582851_341819879_n.jpg

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  7. Concordo com cada palavra!

    É triste quando vejo guerrilhas entre índios e fazendeiros mafiosos das mais terríveis espécies, por uma simples razão: TERRA.

    Me parece que enquanto a vida é vida isso será até o infinito assim.

    Parabéns Eduardo, seu blog é canal assinado no meu leitor de feed!

    Abraços

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    1. Não alcançamos a idéia de infinito. Mas se tudo muda o tempo todo, sem parar, num fluxo universal, como acreditar que qualquer coisa será sempre assim? Não fomos o que somos, nem seremos. Cabe a cada um escolher como participar da caminhada.

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    2. O problema é que ninguém escolhe mais seu caminho, ele é imposto à grande maioria. A pressão social e por parte da família por essa busca de conforto e status está acabando com o senso "índio". É preciso retardar esse processo pra acelerar acelerar o outro.

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  8. Todos somos índios, todos os povos um dia foram nativos, se brancos druidas, se vikings, se aborígenes, indígenas, são todos humanos em estado natural. Dá pra voltar é só ter atitude.

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  9. As veias abertas da América Latina continuam bem abertas.

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