sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Raymundo Araújo Filho





      Eu o conheci via internet. Textos denunciadores, indignados, verdadeira metralhadora giratória, atirando pra todos os lados. Dei uma opinião, fui recebido com agressividade, me expliquei, ele se desculpou por ter sido “meio grosso”. Havia identidade na percepção do mundo, apesar da diferença de temperamentos – o que não dificultou em nada a afeição espontânea que rolou. O que ele exigia, (sim, exigia), era sinceridade e boa fé. Nada mais. E tão raro...
      Assim ficamos amigos, por identidade pura. Lia seus textos, muitas vezes achando um exagero pela quantidade de insultos – devo admitir que compreensíveis –, de denúncias, desqualificações e acusações. Ele começou a ler uns meus, certamente me achando por demais cordial e ameno. Ele gostava de dar nome aos bois e de adjetivar os mesmos bois sem piedade. Quadrilheiro, cheirador de pó, ladrão safado, camarilha eram expressões corriqueiras nos seus escritos. E nas suas falas, bastava por a mão num microfone, pra terror dos hipócritas, desses “revolucionários” em causa própria. Ele nunca advogava em causa própria e emanava seu caráter e disposição ao combate, de forma irresistível.
      Um dia ele me convidou pra defender o cine Icaraí, prédio histórico em área cara – se diz “nobre” –, e nos encontramos pela primeira vez. Com seus pelos brancos, cabelo e barba, tinha olhos de menino e coração de anjo. Um anjo ateu. Ou agnóstico, ele dizia, talvez a única concessão que fazia para evitar confronto com gente boa, de luta, sincera e que tem religião. Com uma caixa de som e um microfone, meio no improviso, ele ligou sua metralhadora. Eu ali, do lado, olhando as pessoas se juntarem pra ouvir. Alguém que estendia uma faixa atrás teve dificuldade e ele não titubeou. Passou o microfone pra mim, sem aviso, "vai falando aí" e foi ajudar o cara. Pego de surpresa - nunca tinha falado num microfone -, comecei a falar qualquer coisa a respeito das mentiras que somos obrigados a engolir, entre o espanto e o improviso. Depois reclamei com ele, "comé que cê faz uma coisa dessa, meu", ele riu, "sabia que cê ia falar bem". É assim o meu amigo, amorosamente autoritário.
      Na segunda vez, ele me convocou pra ajudar a construção de uma favela cênica que seria montada na praia de Icaraí, praticamente em frente à manifestação do cinema, só que na areia. O chamado foi feito às dez da noite, fui de bicicleta. Estava lá um grupo da Associação dos Desabrigados das Chuvas de Niterói, já havia um ano sem casa nem solução por parte da prefeitura, que exercia requintes de crueldade com as famílias  desabrigadas. Ele havia chegado de uma viagem longa, sem dormir, estava meio zumbizando, acabou indo dormir numa barraca montada lá com essa finalidade, dar descanso a quem precisasse. Quando amanheceu o dia, o cenário estava pronto, ele acordou a tempo de providenciar um modesto café da manhã para todos. Pela cara das pessoas que passavam, lotando os ônibus, nos carros, correndo no calçadão, deu pra sentir que a coisa chamava a atenção e teria repercussão.

      

      A associação havia pedido ajuda a uma dessas siglas de esquerda, mas como não estava no programa desta sigla, não houve apoio. O manifesto foi feito sem nenhum revolucionário de carteirinha e chamou tanta atenção que saiu em vários jornais, inclusive no exterior. Aí a sigla se animou e armou a arapuca, ligando pra associação e oferecendo uma sala no DCE da UFF pro pessoal se reunir. Fui convidado e, ao ouvir o endereço, senti cheiro de armação. Questionei mas, sem fazer parte da associação, não me senti no direito de insistir, acabei indo. E lá estava o Ray. Ele compartilhava da mesma impressão. Aliás, ele não tinha impressão, tinha certeza. E viera pro combate.
      Os "revolucionários" da sigla já estavam com o circo montado. Inclusive se pensavam preparados pra encarar a metralhadora, vã ilusão de inexperientes. Com o Raymundo eles só podiam jogar deslealmente, porque na razão eles não tinham condições. Não tinham sinceridade nem boa fé e várias vezes pensei que ia sair porrada, já tinha até escolhido uma cadeira mais pesada pra rodar, caso aqueles caras atacassem o Raymundo, estimulados por sua superioridade numérica e a magreza atrevida e insultante do oponente grisalho. Na verdade eu queria tirar o cara dali, mas ele parecia tomado por algum exu caveira e espalhava brasa pra todo lado. Creio que sua razão inibia qualquer iniciativa mais truculenta. E ele estava coberto de razão, via claro todo o processo de cooptação, conhecia as estratégias, denunciou até o procedimento ensaiado – procedimento torpe – da turminha siglesca e doutrinária. Escrevi um texto na época, “Os desabrigados e os revolucionários”, contando o acontecido, com tristeza. A associação sucumbiu, os melhores saíram, a cooptação aconteceu. Mas a amizade se solidificou depois daquilo.
      Raymundo veio à minha casa várias vezes, trocávamos idéias, concordávamos e discordávamos, sentia nele um respeito que não via ele usar com os outros. Era, concluí muito depois, o tributo à sinceridade, à boa fé, à resistência ao sistema, à não rendição aos padrões condicionados de comportamento. Atrás daquela turbulência toda, um coração enorme, um olhar de criança, um amor irrestrito pela humanidade, pelos animais, pela justiça. Sentia por ele um respeito que relevava sua forma acadêmica de falar, sua prática política de confronto, sua agressividade, sua posse de verdades. Quando ele exercia essas coisas pra cima de mim, eu ria sem expor minha discordância, ele percebia e amenizava. Fora do confronto, ele era o amor em pessoa.
      Lembro de ter falado com ele, depois de um desses confrontos em que parecia que ele ia se atirar no pescoço do oponente, “tu inda vai ter um treco por conta dessas raivas, desse estado de nervos que tu fica”. Ele respondeu que era teatro, tava tudo sob controle. Não era e não tava. Seu ódio era por amor e ele não sabia resistir aos sentimentos.
      Costumo dizer que vou morrer do coração, por ter amado demais, ou com um tiro na testa, por ter falado demais. Pro Ray, o amor chegou antes. Cedo demais.
      Senti um baque quando o Francisco me avisou, no portão. Nem quis entrar. Acho que não acreditei, deu um formigamento no corpo, a vontade me disse “é engano”. Mas não era. Raymundo Araujo Filho, a metralhadora, parou de atirar. Ou melhor, parou de produzir tiros, porque os petardos que ele lançou estão por aí, acendendo luzes, inflamando consciências. Levei dois dias pra digerir o acontecimento. Lembrei do enterro de um outro lutador, quilombola, na Bahia, há muitos anos, assassinado por jagunços. Seu pai, um velho sábio, disse a uma mulher que chorava, “chora de saudade, fia, não chora por ele. Bom como era, cheio de amor por todo mundo, ele agora tá melhor que nós tudo”.
      Por tudo que fez, por tudo que era, por tudo que deixou, o Ray agora tá melhor que nós tudo. Nós choramos de saudade, pela perda que o mundo teve. Não lamento por ele. Lamento por nós. Mas, lembrando que por essa porta passamos todos, acendo a esperança e mando a mensagem – boa viagem, irmão, até o dia em que nos abraçaremos de novo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fuga da Escravidão




Amazônia, rodovia Belém-Brasília, 1980. Noite. Debaixo do telhado aberto em frente à borracharia fechada, uma lata quadrada sobre o fogo cozinha a mandioca, a água borbulhando frenética. Sentado numa tábua, olho o fogo e escuto o silvo dos pingos das grandes bolhas que estouram caindo sobre as brasas, encostado na única parede do telhado quadrado, a porta da frente da borracharia. À esquerda era a estrada, na frente o posto de abastecimento mal iluminado a uns cem metros, à direita a floresta, com árvores enormes fazendo a silhueta da escuridão.

Distraído olhando o fogo, tomei um susto quando o vulto surgiu, justo do escuro, amenizando a surpresa com voz humilde, “louvado seja nossinhô jesus cristo, co’a sua licença”. “Se achegue moço”, tratei de responder na lei da hospitalidade, “se é de paz, bem-vindo seja". Apontei a lata no fogo, ele já tava olhando pra ela, "tô cozinhando uma macaxeira com sal, tem bastante, se quiser.” Eu tinha posto a mandioca toda pra cozinhar, era um pé que tava maduro, na beira da estrada, uns quilômetros atrás. Pensava em levar pra comer também no dia seguinte, mas dividia de bom grado, ele estava mesmo com fome, tanto que respondeu na hora, “vou aceitar sim, desde ontem que não como”.

O sujeito era pequeno e magro, mas parecia ágil e rígido, dava pra ver a musculatura fina e resistente aí nos seus trinta anos. Tava sujo, roupas rasgadas, as marcas de andar pela floresta, pelo jeito ele se escondia de alguma coisa. Era melhor não fazer assunto disso.

No princípio arredio às duas perguntas mais comuns nesses encontros – de onde se vem e pra onde se vai – ele relaxou depois que viu o painel de brincos, pulseiras e colares, “ah, tu é ripe”. E contou ser do sertão de Pernambuco, um povoado perto da fronteira com o Ceará, “esquecido pelos governo”. Apareceu um “gato” procurando trabalhador pra colheita numa fazenda no Pará, os dias estavam ruins, seca braba, a roça não dava nada, a criação pra morrer de sede. O acerto parecia bom, em três meses voltaria pra família com um dinheirinho, era mulher e dois filhos que ficavam. Embarcou no caminhão do "gato" e levou uma semana pra chegar na tal fazenda, foi enchendo com mais contratados pelos caminhos, chegou lotado.

Só que ele já chegou devendo, passagem, hotel, refeições, “até as ferramenta de trabalho eles cobravam, moço, tá certo isso?” Tinha guarda armado, “a gente era tratado como preso, não tinha banheiro, a água de beber era a mesma dos animais, tinha que pegar no cocho”. O salário do primeiro mês não pagou as dívidas. E não dava pra largar o serviço, eles falavam que tinha que pagar tudo antes de pensar em ir embora. Passou a comer dia sim, dia não, pra economizar. O corpo pesava, começaram a dizer que ele era preguiçoso, um dia desmaiou no meio da tarde e teve o dia descontado. Era de lascar.

Pra encurtar a história, já ia pra oito meses e ele devendo. A saudade remoia por dentro, a mulher (como estaria se virando?), “os filhinho crescendo longe da gente...” e enxugou as lágrimas com os pulsos, como se não pudesse tocar as lágrimas do sentimento mais puro com aquelas mãos deformadas de tão grossas. Pensou em fugir, mas temia ser pego. Vários fugiram enquanto ele esteve lá. “Mas os cabra ia atrás e quando pegava era uma judiaria, pra dar o exemplo, pra dar medo de fugir, estropiava o sujeito.” Com o tempo foi dando um desespero maior que o medo e ele se atirou na mata numa noite, decidido a fugir ou morrer, o resolvido era não ser pego vivo. Encarou dias e noites na mata, comendo frutas e folhas, uma que outra tanajura viva, já ia cinco dias sem comer um cozido. 

Ele comia com gosto a mandioca sobre uma tábua improvisada e perguntou pra que lado era o Cariri, quando os faróis de um jipe viraram da estrada em direção à borracharia, iluminando o telhado e indo na direção do posto pra parar de lado, junto a nós. Dois na frente e um atrás. O motorista pergunta “cadê o borracheiro?”, eu respondo “foi embora faz tempo”. “Essa porra não é vintequatro horas?” Só então percebo escrito na parede, 24 H. Dou uma risada, “é, tá escrito aí”. Ele quer saber se eu sei onde mora o cara, eu explico ser viajante, "tô só me abrigando à noite, sigo viagem de manhã, do borracheiro só sei que me deu licença pra dormir aqui e cozinhar essa mandioca, tá servido?” Ele virou pro cara de trás, “e agora?” “Toca pro posto”, disse o outro. E saíram levantando poeira.

Olhei pro lado, o cara tinha sumido, junto com a tábua cheia da macaxeira cozida. Não demorei pra entender. Fiquei olhando o jipe, lá no posto. Os três estavam no balcão do bar, conversando com o que me pareceu ser o dono. Beberam alguma coisa, pagaram e foram embora. Terminei de comer, levantei e fui até o lado da floresta. Olhei a escuridão cheia de sons, grilos, rãs, sapos, corujas e outras aves noturnas, às vezes um guincho de caça na hora da morte,  ou um canto distante, respondido por outro canto mais distante ainda. Gritei “eles já foram embora!” e nenhuma resposta. Mais alto um pouco, “eles já foram, pode voltar, parceiro!” e nada.

Fui até a mochila, peguei a escova de dentes, toda descabelada – "tem que trocar essa merda" – e me aproximei da banheira que servia pra meter a câmera de ar e achar o furo pelas bolhas. Olhei a água na luz precária do posto à distância, “nem tá tão turva assim”, com a concha da mão pus duas mãozadas na boca, pra bochechar. Enfiei a escova na banheira e limpei os dentes, fazendo uma careta depois de cuspir a última água – “borracha pura!”.

O cara não voltou. Enquanto arrumava a mochila como travesseiro e me ajeitava de lado na tábua, pensei “será que ele tá correndo até agora?” Cansado e sem fome, dormi logo, um sono sem sonhos, desses de apagar.

Acordei começava a clarear. O ex-escravo tava dormindo em cima de uns pneus, todo torto, as pernas sujas de lama pelas calças acima, passando dos joelhos. Descalço ele já estava ontem. Mexi nas cinzas debaixo da lata, vi brasa, juntei uns gravetos que tavam do lado, acendi o fogo pra esquentar o resto da mandioca. O pernambucano acordou com o movimento e sentou rápido, a cara amarrotada de sono lhe dava um ar zangado. “Tu podia ter voltado, rapaz, os caras foram embora logo, acho que era só um pneu furado, mesmo.” Ele sacudiu a cabeça, sem encarar, “nunca se sabe”.

Quando ferveu a água eu perguntei, “cadê aquela tábua que tu usou ontem?” Ele foi até uns vinte metros na direção da mata e pegou no chão. Estranhei, “ué, como é que isso foi parar aí?” Ele quase riu, “foi o tempo de meter a macaxeira todinha na boca e largar a tauba.” Eu ri alto, ele justificou, tava com fome, dois dias que não comia.

Acabamos de comer na chegada do borracheiro, já dia claro, perto do sol nascer. Ele trazia café e ofereceu com um sorriso branco de fazer contraste com a pele preta, seu Nicanor era de um tamanhão que dava medo, mas com uma expressão de bondade calma e sábia. O pernambucano, entretanto, murchou na sua chegada e ficou mudo, olhos baixos. Aceitou o café com um “deus lhe pague” e mais não falou. Nem precisou, eu conversei com o negão todo o tempo, área de garimpo é área de muitas histórias, de muita vivência, muito risco e muita sabedoria.

Agradeci por nós dois e, por um instante, pensei que o sertanejo ia comigo, pois saiu junto e foi andando ao meu lado, na direção da estrada. Mas ele parou de repente na beira do acostamento e perguntou, “sabe pra que lado é o Cariri?” Lembrei da noite, ele tinha acabado de fazer essa mesma pergunta antes do jipe aparecer e ele desaparecer na noite sem a resposta.

Eu pensei um pouco e disse “acho que tu vai ter que ir pra Imperatriz ou pra Açailândia, de lá deve ter estrada que vá praquelas bandas". Ele me olhou como se eu não estivesse entendendo e tentou de novo, “não, eu digo... sabe apontar com a mão pra que lado é?” Olhei um pouco pra ele, o sol começava a despontar, do outro lado da pista. Estendi o braço, “tá vendo onde o sol tá nascendo? Põe três dedos do lado dele, fecha um olho pra marcar o ponto, tá vendo?” Ele esticou o braço, pôs os três dedos, marcou o ponto no horizonte, “o Cariri é pra lá”. Ele baixou o braço e continuou olhando na direção. Quase pra si mesmo, perguntou “o Cariri é pra lá, mesmo?” Eu disse “é, mas o Cariri é grande”. Ele tinha um sentimento forte quando falou “chegando lá eu me acho, fácil”. E me olhou com felicidade nos olhos, “do outro lado do Cariri tá minha família”, e sorriu um sorriso rápido, antes de perder o olhar de novo naquela imensidão.

Eu carregava mochila, cobertor – que me servia de colchão, naquele clima quente – e violão. Ele só tinha a roupa do corpo, meio em frangalhos. Desejei boa sorte e comecei a caminhar pelo acostamento. Ele chamou, “ô ripe!” Eu parei e virei, ele vinha na minha direção, as mãos estendidas seguraram a minha, “agradeço a Deus ter lhe encontrado”, olhando profundamente nos meus olhos. Sorri, apertei suas mãos sem saber o que dizer, os olhos arderam, encheram, respirei fundo, retomei a caminhada, lembrando quantos desamparados no mundo, quanta sujeira e injustiça dos poderosos, um nó na garganta, uma raiva surda misturada com uma tristeza imensa.

Olhei uma vez pra trás e ele estava lá, em pé junto do acostamento, olhando na direção do Cariri, no horizonte do outro lado da “rodage”*. Bem mais na frente, já a uns quinhentos metros, virei pra olhar de novo, ele não estava mais.

Rodage – estrada de asfalto.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Porto do Açu, mais um empreendimento com X

A OSX está construindo o porto e todo o complexo industrial no norte do Estado do Rio. Desde o princípio, tem sido uma pressão miliciana sobre os moradores. Há tempos venho acompanhando o processo, semelhante a inúmeros outros pelo país e pelo mundo. É evidente o que significa a expressão globalização, chamada por Milton Santos de "globaritarismo", pelo extremo autoritarismo sobre a imensa maioria das populações. Eike Batista, o dono da empresa, é filho de Eliezer Batista, que foi ministro das minas e energia durante a ditadura, e fez fortuna entregando o mapa das minas para mineradoras internacionais, mega empresas exploradoras do mundo todo.

O método é velho conhecido. Os megaultrahipermultinacionais fazem cúmplices do saque as elites locais, com privilégios, poder e riquezas, em troca. Elites econômicas, patrimoniais, políticas e, quando possível, raciais, cuja função é trair miseravelmente as populações, entregando as riquezas e as milhões de vidas à exploração.



Mais uma evidência da guerra das empresas contra os povos. As empresas dependem dos servidores diretamente, e da mentalidade alienada, consumista, competitiva, superficial, preconceituosa, egoísta, indiferente ao sofrimento alheio, que foi implantada no modo de vida da gente, de forma gradativa e implacável, com o papel principal da mídia alienante que induz valores e comportamentos, além de distorcer a realidade e de fazer tudo pra que não se enxergue o que realmente acontece.

Foram naturalizados os maiores absurdos, a desumanidade é a regra geral. No entanto, a humanidade permanece em nossos corações. Os que a ignoram sofrem as conseqüências, interna e externamente, em angústias "inexplicáveis", em desamor, em desafeto, em peso na alma, em escuridão espiritual. Os carrascos constróem seu próprio inferno, espalhando infernos pelo mundo.

É preciso enxergar a realidade como ela é. Humildade não é sinônimo de pobreza, falta de conhecimento escolar não é falta de sabedoria, falta de formação não é falta de personalidade. A humildade, a vivência, a sabedoria dos que fazem a base da sociedade humana deveria ser matéria de academia. Deveria quebrar pedestais e criar solidariedade real na formação de uma sociedade onde existam todos por todos e onde os representantes representem a coletividade, e não os interesses empresariais perversos e egoístas. Quando o empresário diz que dá empregos, ele mente. Ele precisa dos empregados para explorar, atropelando leis trabalhistas, leis penais e até a constituição federal. E precisa da miséria para chantagear os empregados, a fim de que aceitem sem reclamar toda a situação horrível que é imposta, hoje, pelas empresas aos trabalhadores.

O porto do açu é mais uma demonstração do poder econômico sobre a sociedade, dispondo de vidas como quem trata de lixo. Mais uma batalha nessa guerra onde as empresas tomaram o poder político, legislativo e judiciário. Todo apoio aos lutadores que não se conformam com isso.



http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=RA9h2AKGlSc

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Tradução da Miséria - documentário

Em Santa Cruz do Sul, onde estive falando na UNISC, fui abordado por Joe Nunes, com um grupo de "contra-correntistas"*, falando sobre a voz inaudível da parte de baixo da sociedade, que a sustenta sob o desprezo dos poderes e dos preconceitos de grande parte das pessoas. Eles me presentearam com um documentário chamado "A Tradução da Miséria", que mostra exclusivamente a voz e as opiniões dos catadores de material reciclado, capaz de surpreender os preconceituosos que mantêm um resquício de boa-fé e isenção. Os empedernidos, esses não têm condições de assimilar nem respeitar nada que não lhes sirva à própria conveniência, à sua visão distorcida e egoísta da realidade. Aqueles que conseguem ter alguma sensibilidade social, nesta sociedade embrutecedora, hão de se emocionar e surpreender com a clareza que esses "desprezados" têm, em sua visão de mundo. Acho que, olhando de baixo, a sociedade se mostra mais sinceramente do que na visão de cima, dos pedestais acadêmicos ou de classes médias abastadas. Ninguém finge ser bom pra mendigo, para os pobres a cara vampiresca da sociedade se mostra sem máscara. Fiz um estágio de alguns meses na mendicância e sei muito bem do que estou falando. Mendicância esta que revisitei várias vezes ao longo do meu percurso pela vida, inclusive com filhos, dormindo sobre papelão e sob marquises, em casas abandonadas, construções, ruínas, e todo tipo de improviso.


Os entrevistados do filme mostram sua lucidez comovente, desenvolvida nas adversidades da vida rueira e das relações com a sociedade. Gilmar fala com propriedade - que, para alguns, pode ser espantosa - sobre a tendência ao julgamento sumário e despropositado, condenando os mais pobres por sua própria tragédia sem perceber ou procurar saber das causas na produção de miséria em nossa sociedade. Acusam o "pau-dágua", sem questionar sua decepção com a sociedade, seus sonhos sabotados de inclusão, sua dor em viver na miséria e na marginalidade, desprezado por um Estado criminoso, tomado por interesses empresariais, sobretudo financeiro-industriais, que não cumpre os artigos mais importantes da sua própria constituição - assim mesmo, com minúsculas, porque só se cumprem os artigos que favorecem os interesses dos mais ricos e não garante, como deveria, alimentação decente, moradia digna e ensino de qualidade, só pra ficar nesses três. É uma constituição estuprada e prostituída a serviço das elites egoístas, perversas, covardes e desumanas, em sua arrogância e seu apego a privilégios que roubam os direitos da maioria.


Tugira revela parte dessa perversidade, quando relata que os comerciantes, donos de supermercados e restaurantes, enchiam os sacos de lixo com restos de comida - onde os sabotados iam buscar seu alimento - de detergente, pra impedir o proveito pelos miseráveis. Perversidade velha conhecida, e que não surtiu efeito, como nada surte efeito contra a atitude dos famintos que não têm outra fonte de alimentos além do lixo. Então passaram a encher de creolina, também sem efeito. Os famintos comiam com creolina e tudo, o que levou o prefeito à bizarra afirmação de que assim os miseráveis "não tinham vermes". Tugira foi à assembléia legislativa denunciar o fato e pegou tão mal sua aparição inesperada e sua denúncia constrangedora que a própria câmara recomendou aos comerciantes parar com essa desumanidade. Então esses abastados, em seu ódio contra as vítimas da sociedade, começaram a guardar o lixo por dias, para que deteriorasse até ficar impossível de comer. Em vão. Eles não conhecem a miséria. E a mim, parece que se borram de medo, daí sua agressividade e seu ódio implacável contra quem não lhes faz nenhum mal. Devem considerar que sim, fazem, apenas por se acercar do lixo que seus estabelecimentos descartam, nas horas mortas da noite.


Elisa relata sua experiência como funcionária de uma empresa, em condições tão enlouquecedora que viver de catar material reciclável se revelou bem mais saudável, tranqüilo e rentável. No emprego, passou fome, não tinha dinheiro pra comprar comida nem pros filhos, enquanto como catadora nunca lhe faltou o que comer. Uma indicação do que reserva o famigerado "mercado de trabalho" a quem não teve a oportunidade de estudar e se qualificar numa escola decente. É a angústia de milhões de vidas submetidas a esse sistema paranóico, da qual a catação livrou Elisa, que vive em paz da sua maneira.


O Movimento Nacional dos Catadores estima em um milhão o número de catadores no Brasil, cuja atividade recolhe apenas 13% dos 90 milhões de toneladas de lixo por ano. Só com essa fração são movimentados 12 bilhões de reais por ano. Isso explica a entrada de empresários na atividade, de olho nos lucros. Em São Paulo, vitrine nacional do preconceito, catadores foram expulsos, queimados, sabotados por essas empresas que, na busca de lucro e em seu desprezo pelo ser humano, fazem de tudo pra "eliminar a concorrência", o último recurso dos miseráveis urbanos, antes de se conformarem com a morte da alma e, por inanição, do corpo. A miséria é, a meu ver, a vergonha maior de uma sociedade, tenha ela olhos fechados ou abertos. Não ver a realidade não a elimina, nem a modifica. Apenas revela a vitória, até agora, do mau-caráter dos poderes que se proclamam, falsamente, públicos. A miséria material é conseqüência de outra e mais profunda miséria. A miséria da alma, a miséria moral.


Um belo trabalho de Joe Nunes e sua turma de ativistas. O documentário se inscreve entre os imprescindíveis para a formação de consciência social e humana. Na minha opinião, é claro, que ninguém precisa considerar, embora alguém possa.

* Aqueles raros que vão contra a corrente predominante. Raros, mas contagiantes e cada vez mais numerosos.


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Fogo nas Favelas de São Paulo




Em todas as cidades os mais pobres são obrigados a flutuar para as periferias, à medida em que as cidades vão crescendo e "se desenvolvendo". Remoções, expulsões, pressões de todos os tipos, ameaças, coações, os mais pobres são tratados a cacete, quando estão no caminho dos poderosos, da especulação imobiliária, da indústria do turismo, do lucro de qualquer tipo.

No Rio de Janeiro, a pretexto do projeto "Porto Maravilha", virou rotina a sinistra incursão noturna das forças públicas nas ocupações da região, onde famílias desabrigadas ocuparam, ao longo de décadas, os prédios abandonados pelo poder público e por grandes empresários, que se dedicavam à exploração do desenvolvimento da zona oeste, Barra da Tijuca, São Conrado, Recreio dos Bandeirantes... onde há um enorme e triste histórico de remoções. Agora os olhos cobiçosos se voltam para o centro "histórico" e seu potencial turístico e cultural. Milhares de famílias atiradas à própria sorte, algumas poucas com ridículas indenizações ou absurdas instalações feitas de qualquer maneira, lá longe, apenas pra sair na mídia como prova de que o poder público estava cumprindo o seu papel. A área portuária só pôde conservar sua arquitetura por causa do desinteresse, do abandono a que foi relegada essa região da cidade, enquanto se explorava o "potencial imobiliário" das valorizadas terras do litoral oeste. Se sua cobiça estivesse no centro, certamente não haveria mais nada a preservar - a consciência cultural, histórica, social e humana dessas pessoas está em seus bolsos, em suas contas bancárias, em seu patrimônio e seu poder sobre as instituições públicas.

Em São Paulo, nos últimos governos, foi aberta a temporada caça aos pobres. Desabrigados do centro foram obrigados a sumir de vista, debaixo de pancadas, prisões, jatos de água no frio do inverno. As remoções de comunidades pobres evoluíram até a sucessão de incêndios nas favelas. Foram 79, no ano passado. Este ano, já se contam 32. Ontem, no bairro Campo Belo, a favela do Piolho queimou. Foram trezentas casas, mais de mil pessoas desabrigadas. O bairro é valorizado, pertinho do aeroporto de Congonhas. Um fenômeno paulistano, essa freqüência de incêndios em favelas. Paulistano e contemporâneo. Claro, já houve incêndios em comunidades pobres, alguns não criminosos, acidentes de verdade. Mas a seqüência de São Paulo me dá conta da segurança esquizofrênica da promiscuidade público-privada, tratando descaradamente a população como mercadoria, como gado ou como entulho.





No blog do Miro, Altamiro Borges faz dez perguntas sobre os incêndios nas favelas, muito bem colocadas.  http://altamiroborges.blogspot.com.br/2012/09/incendios-em-favelas-dez-perguntas.html

São Paulo ilustra o massacre promovido pelos poderes "privado-públicos" em cima das populações mais pobres, extensas massas humanas, por todo o planeta, com algumas poucas exceções. Onde existe resistência, como em vários países da América Latina, há mudanças, devidamente escondidas ou deformadas pela mídia comercial - em combate frontal a qualquer sociedade onde empresas não controlem os governos, mentindo, difamando, debochando, caluniando, desinformando, plantando alienação e criminalizando qualquer movimento de esclarecimento, conscientização e defesa da maioria das populações.


A existência da pobreza, da miséria, da ignorância, do abandono deixa claro o nível da sociedade em que vivemos e faz das suas pompas e solenidades ridículos rituais sem conteúdo, encenações de falsas superioridades e honrarias sem significado. Títulos e graduações são responsabilidades sociais, mas são vistos pelos medíocres de espírito como fator de superioridade pessoal. E assim aplicados na vida prática, construindo, consentindo e colaborando com essa estrutura social injusta, perversa, covarde, ecocida, genocida e suicida.

Quem trabalha em sua própria consciência, conscientiza o mundo. Quem quer, ou diz querer conscientizar, sem começar por si próprio, só atrapalha e desacredita o processo de conscientização.

Eduardo Marinho.

Complementado em 28 de setembro

Em 27 de setembro, Carta Maior divulga a CPI dos incêndios nas comunidades pobres de São Paulo, formada por parlamentares financiados por grandes empresas do setor imobiliário. É um deboche. Os incêndios que favorecem a especulação imobiliária serão investigados por "representantes públicos" que, na prática, são funcionários informais dos próprios interesses da especulação imobiliária. Aliás, a esmagadora maioria dos parlamentares brasileiros é financiada em suas campanhas por grandes empresas que, logicamente, condicionam suas gordas contribuições à defesa dos seus interesses em lucros, mesmo (e geralmente) em prejuízo da maioria, dos mais pobres, da população, incluindo as classes médias.

Quem quiser ler o artigo, clique abaixo.


sábado, 1 de setembro de 2012

Mais um crime de estado contra a população pobre

(Postagem acrescentada do desdobramento, depois da ação criminosa do Estado, que concretizou os temores das vítimas. O manifesto pouco adiantou - como nada adianta com essa "gerência" elitista e sem caráter, egoísta e desumana. Em 10 de setembro de 2012)  

Devia haver um blogue dedicado a enumerar os crimes de Estado contra a população mais pobre, pelo menos os grandes, que são demais, em toda parte. Os menores, como espancamento por policiais, achaque no trânsito, extorsão miúda, expulsões de famílias mais pobres de áreas de interesse econômico, agressões a varejo, ataques a manifestações de todo tipo, esses não dá, são numerosos demais e muito poucos são registrados. Os maiores já dariam trabalho demais.

Aqui um manifesto que me pediram pra divulgar, quem estiver por perto e puder fazer alguma coisa, qualquer coisa, pode crer que nesta situação, tudo é necessário e útil. Fazer alguma coisa não é uma caridade soberba e benevolente, é o privilégio e o prazer de exercer um dever moral, social e humano. Não só cobertas, alimentos, agasalhos e medicamentos, mas idéias, informações, sentimentos, trocas outras, entre seres humanos que se apóiam e se respeitam.

Não resisti a dar uma pinceladinha aqui, outra ali, no texto da carta aberta. Espero que a rapaziada não se aborreça, o conteúdo foi mantido intacto e as pinceladinhas foram insignificantes.

Abraços a todos,
                            Eduardo.

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Quem puder colaborar levando algum alimento ou roupa no Carnificina Fest 7 ajudará muito! Confiram a carta aberta aberta que os moradores passaram para nós:

CARTA ABERTA - FAMÍLIAS DA OCUPAÇÃO IPIRANGA VÃO PARA RUA:


Que tristeza.


O Judiciário ordena que as forças 
armadas joguem na rua famílias moradoras de duas ocupações no centro de São Paulo. E os governantes assistindo de camarote a violação dos direitos de crianças, adultos e idosos.


São 217 famílias na Av. Ipiranga, 908 - prédio abandonado por mais de 5 anos, e na Av. São João, 578/588 - prédio abandonado há mais de 15 anos, ocupados pelas famílias hoje ali residentes. Todos esses pais e mães de família já estão trabalhando e têm os filhos nas escolas das imediações.

Serão obrigados pela força a desocupar os prédios, totalmente fora da lei. Eles não cumprem a função social. Seu pretenso proprietário não exerce o domínio definido pelo Código Civil. Desrespeita o meio ambiente e mesmo assim, vergonhosamente, o Judiciário e demais autoridades favorecem o fora da lei.

Por outro lado, o direito elementar de moradia - das crianças, dos idosos, mulheres, trabalhadores que constroem esta cidade, com o seu suor - está sendo violentamente desrespeitado. Não se respeita os princípios elementares do nome "Estado Democrático de Direito" para garantir a dignidade da pessoa humana, a proteção da criança, o direito à casa e às conquistas da civilização moderna. E joga-se ao relento as famílias para atender os interesses do mais rico, à revelia da lei e da Constituição.

Não aceitamos esses desmandos ilegais. Precisamos restabelecer a ordem de respeito às pessoas. Queremos continuar morando onde estamos. Caso contrário vamos nos acomodar no meio da rua.

COORDENADORES:

Osmar Silva Borges - 11 9 8302-8197
Maria do Planalto - 11 9 5203-9797
Antônia Nascimento - 11 9 8272-5648


Do blog Carnificyco - 
http://carnificyco.blogspot.com.br/



 

Para manter família unida, sem-teto preferem calçada aos albergues em SP

Após reintegração de posse de edifício abandonado no centro de São Paulo, famílias se mudam para a calçada em frente à Secretaria Municipal de Habitação. Segundo Maria do Planalto, uma das coordenadoras do acampamento, opção dada pela prefeitura seria ida a albergues, onde famílias, muitas com crianças, seriam separadas. Em entrevista, ela cobra soluções do poder público.

São Paulo – Desde o início do ano, pelo menos 14 reintegrações de posse de edifícios ocupados por famílias sem-teto foram realizadas na cidade de São Paulo. Entre as mais recentes, na última semana de agosto, está a desocupação de um prédio abandonado no número 908 da avenida Ipiranga, na região central.

Depois de serem desalojadas após dez meses no local, as famílias decidiram acampar em frente à Secretaria Municipal de Habitação. Isso ocorreu, explica Maria do Planalto, uma das coordenadoras da ocupação, porque a única opção oferecida pela prefeitura foi levar os sem-teto a albergues, onde só existe pernoite e as famílias, muitas com crianças, não permaneceriam unidas.

“É onde ficam os moradores de rua. Onde só existe o pernoite. A gente chegaria à noite, mas às 6 horas da manhã teria que sair com os filhos, passar o dia na rua e voltar para dormir. Além do que homens iriam pra uns, e mulheres iriam pra outros”, disse ela. O caso permanece sem solução.

A Carta Maior entrou em contato com a prefeitura, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Uma das opções apresentadas por Maria do Planalto trata-se de um projeto de moradia no bairro de Guaianazes.

A assessoria da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), que poderia responder sobre o assunto, não tinha informações sobre as negociações relativas ao terreno. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Carta Maior Em que circunstâncias se deu a reintegração de posse da ocupação Ipiranga?
Maria do Planalto – Aconteceu em 28 de agosto. Um dia antes, tivemos uma reunião com a prefeitura e ela nos deu duas alternativas: ou albergue, ou a calçada. Aí nós ficamos com a calçada. Os caminhões levaram nossas roupas, alimentos. Nós viemos para cá com a cara e a coragem, e algumas coisas que a gente conseguiu pegar para ficar aqui. Mas eles levaram para o galpão que fica longe, e para trazer as coisas de volta tem que pagar. Como a gente não tem dinheiro, estamos pegando caixote na rua. Nós viemos sem alimento, sem roupa. Tem uma menina aqui que está com a roupa do corpo, ela toma banho e coloca a mesma roupa. Estamos numa situação precária, então, se alguém puder ajudar com alguma roupa, leite para as crianças, copo descartável, a gente agradece muito. Na hora da reintegração, a própria polícia deu quatro horas a mais, aguardando alguma solução. Mas a prefeitura não mandou assistente social, não mandou nada. Os soldados da PM foram mais humanos do que o próprio poder público.

CM Quais são as condições do alojamento oferecido pela prefeitura?
MP – Se eles tivessem nos oferecido um alojamento, seria uma coisa. Nossa mudança iria toda para um mesmo lugar. Mas não, eles nos ofereceram albergue ou calçada.

CM O que são exatamente os albergues?
MP – É onde ficam os moradores de rua. Onde só existe o pernoite. A gente chegaria à noite, mas às 6 horas da manhã teria que sair com os filhos, passar o dia na rua e voltar para dormir. Além do que homens iriam pra uns, e mulheres iriam pra outros. A prefeitura, no dia 27, deixou bem claro que não tinha verba. Então nós falamos: não cumpra a reintegração, nos deem mais tempo. Mas não, só tivemos duas opções.

CM Vocês estão sendo assistidos juridicamente?
MP – A defensoria conseguiu a liminar do alojamento, mas a prefeitura não cumpriu, não obedeceu a liminar. Ou seja, teria a reintegração caso houvesse o alojamento, só que a prefeitura não cumpriu. A liminar não foi nem sequer derrubada, tanto que aqui, na calçada, está valendo. Como eles não deram alojamento, eles não podem nos tirar daqui.

CM E como está o dia-a-dia das pessoas no acampamento?
MP – O pessoal trabalha. As crianças estudam aqui na Estação da Luz. Estão indo na escola com a roupinha que tem. Se der para tomar banho, toma, se não der, vai assim mesmo, porque não pode perder a aula, né?

CM Vocês tem alguma reivindicação específica? O que vocês estão pleiteando junto a prefeitura neste momento?
MP – Ou que oferecesse o alojamento, para que as famílias pudessem sair dessa situação, ou então que a CDHU desse autorização para começar nosso projeto em Guaianazes. São 640 unidades que as famílias já negociaram em 2008.

CM Você poderia falar mais sobre esse projeto?
MP – A primeira reintegração enfrentada por essas famílias ocorreu no dia 23 de novembro de 2008, lá na comunidade em que elas moravam, no Alto Alegre. De lá pra cá, foram feitos cinco acordos, só que nenhum dos três níveis de governo os cumpriu. Em 11 de agosto, lá na CDHU, nos foi oferecido um terreno em Guaianazes onde cabem as 640 famílias do Alto Alegre. Neste terreno, já existe a opção de compra e venda, mas falta a CDHU autorizar que a Caixa Econômica Federal comece o projeto. O problema é fácil resolver, falta ter vontade política e política pública para famílias de baixa renda.


Fotos: Trecho de foto de Renata Bessi (rbessi@yahoo.com.br)

observar e absorver

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