Eu o conheci via internet. Textos
denunciadores, indignados, verdadeira metralhadora giratória, atirando pra
todos os lados. Dei uma opinião, fui recebido com agressividade, me expliquei,
ele se desculpou por ter sido “meio grosso”. Havia identidade na percepção do
mundo, apesar da diferença de temperamentos – o que não dificultou em nada a afeição espontânea que rolou. O
que ele exigia, (sim, exigia), era sinceridade e boa fé. Nada mais. E tão raro...
Assim ficamos amigos, por identidade
pura. Lia seus textos, muitas vezes achando um exagero pela quantidade de
insultos – devo admitir que compreensíveis –, de denúncias, desqualificações e
acusações. Ele começou a ler uns meus, certamente me achando por demais cordial
e ameno. Ele gostava de dar nome aos bois e de adjetivar os mesmos bois sem
piedade. Quadrilheiro, cheirador de pó, ladrão safado, camarilha eram expressões
corriqueiras nos seus escritos. E nas suas falas, bastava por a mão num
microfone, pra terror dos hipócritas, desses “revolucionários” em causa própria.
Ele nunca advogava em causa própria e emanava seu caráter e disposição ao
combate, de forma irresistível.
Um dia ele me convidou pra defender o
cine Icaraí, prédio histórico em área cara – se diz “nobre” –, e nos
encontramos pela primeira vez. Com seus pelos brancos, cabelo e barba, tinha
olhos de menino e coração de anjo. Um anjo ateu. Ou agnóstico, ele dizia,
talvez a única concessão que fazia para evitar confronto com gente boa, de
luta, sincera e que tem religião. Com uma caixa de som e um microfone, meio no improviso, ele ligou sua metralhadora. Eu ali, do lado, olhando as pessoas se juntarem pra ouvir. Alguém que estendia uma faixa atrás teve dificuldade e ele não titubeou. Passou o microfone pra mim, sem aviso, "vai falando aí" e foi ajudar o cara. Pego de surpresa - nunca tinha falado num microfone -, comecei a falar qualquer coisa a respeito das mentiras que somos obrigados a engolir, entre o espanto e o improviso. Depois reclamei com ele, "comé que cê faz uma coisa dessa, meu", ele riu, "sabia que cê ia falar bem". É assim o meu amigo, amorosamente autoritário.
Na segunda vez, ele me convocou pra
ajudar a construção de uma favela cênica que seria montada na praia de Icaraí,
praticamente em frente à manifestação do cinema, só que na areia. O chamado foi
feito às dez da noite, fui de bicicleta. Estava lá um grupo da Associação dos
Desabrigados das Chuvas de Niterói, já havia um ano sem casa nem solução por
parte da prefeitura, que exercia requintes de crueldade com as famílias desabrigadas. Ele havia chegado de uma viagem
longa, sem dormir, estava meio zumbizando, acabou indo dormir numa barraca
montada lá com essa finalidade, dar descanso a quem precisasse. Quando
amanheceu o dia, o cenário estava pronto, ele acordou a tempo de providenciar
um modesto café da manhã para todos. Pela cara das pessoas que passavam,
lotando os ônibus, nos carros, correndo no calçadão, deu pra sentir que a coisa
chamava a atenção e teria repercussão.
A associação havia pedido ajuda a uma dessas siglas de esquerda, mas como não estava no programa desta sigla, não houve apoio. O manifesto foi feito sem nenhum revolucionário de carteirinha e chamou tanta atenção que saiu em vários jornais, inclusive no exterior. Aí a sigla se animou e armou a arapuca, ligando pra associação e oferecendo uma sala no DCE da UFF pro pessoal se reunir. Fui convidado e, ao ouvir o endereço, senti cheiro de armação. Questionei mas, sem fazer parte da associação, não me senti no direito de insistir, acabei indo. E lá estava o Ray. Ele compartilhava da mesma impressão. Aliás, ele não tinha impressão, tinha certeza. E viera pro combate.
Os "revolucionários" da sigla já estavam
com o circo montado. Inclusive se pensavam preparados pra encarar a
metralhadora, vã ilusão de inexperientes. Com o Raymundo eles só podiam jogar
deslealmente, porque na razão eles não tinham condições. Não tinham sinceridade
nem boa fé e várias vezes pensei que ia sair porrada, já tinha até escolhido
uma cadeira mais pesada pra rodar, caso aqueles caras atacassem o Raymundo,
estimulados por sua superioridade numérica e a magreza atrevida e insultante do
oponente grisalho. Na verdade eu queria tirar o cara dali, mas ele parecia tomado por
algum exu caveira e espalhava brasa pra todo lado. Creio que sua razão inibia
qualquer iniciativa mais truculenta. E ele estava coberto de razão, via claro
todo o processo de cooptação, conhecia as estratégias, denunciou até o
procedimento ensaiado – procedimento torpe – da turminha siglesca e doutrinária.
Escrevi um texto na época, “Os desabrigados e os revolucionários”, contando o
acontecido, com tristeza. A associação sucumbiu, os melhores saíram, a cooptação aconteceu. Mas a amizade se solidificou depois daquilo.
Raymundo veio à minha casa várias vezes,
trocávamos idéias, concordávamos e discordávamos, sentia nele um respeito que não
via ele usar com os outros. Era, concluí muito depois, o tributo à sinceridade,
à boa fé, à resistência ao sistema, à não rendição aos padrões condicionados de
comportamento. Atrás daquela turbulência toda, um coração enorme, um olhar de
criança, um amor irrestrito pela humanidade, pelos animais, pela justiça. Sentia
por ele um respeito que relevava sua forma acadêmica de falar, sua prática política
de confronto, sua agressividade, sua posse de verdades. Quando ele exercia
essas coisas pra cima de mim, eu ria sem expor minha discordância, ele percebia
e amenizava. Fora do confronto, ele era o amor em pessoa.
Lembro de ter falado com ele, depois de
um desses confrontos em que parecia que ele ia se atirar no pescoço do
oponente, “tu inda vai ter um treco por conta dessas raivas, desse estado de
nervos que tu fica”. Ele respondeu que era teatro, tava tudo sob controle. Não
era e não tava. Seu ódio era por amor e ele não sabia resistir aos sentimentos.
Costumo dizer que vou morrer do coração,
por ter amado demais, ou com um tiro na testa, por ter falado demais. Pro Ray,
o amor chegou antes. Cedo demais.
Senti um baque quando o Francisco me
avisou, no portão. Nem quis entrar. Acho que não acreditei, deu um formigamento
no corpo, a vontade me disse “é engano”. Mas não era. Raymundo Araujo Filho, a
metralhadora, parou de atirar. Ou melhor, parou de produzir tiros, porque os
petardos que ele lançou estão por aí, acendendo luzes, inflamando consciências.
Levei dois dias pra digerir o acontecimento. Lembrei do enterro de um outro lutador,
quilombola, na Bahia, há muitos anos, assassinado por jagunços. Seu pai,
um velho sábio, disse a uma mulher que chorava, “chora de saudade, fia, não
chora por ele. Bom como era, cheio de amor por todo mundo, ele agora tá melhor
que nós tudo”.
Por tudo que fez, por tudo que era, por
tudo que deixou, o Ray agora tá melhor que nós tudo. Nós choramos de saudade,
pela perda que o mundo teve. Não lamento por ele. Lamento por nós. Mas,
lembrando que por essa porta passamos todos, acendo a esperança e mando a
mensagem – boa viagem, irmão, até o dia em que nos abraçaremos de novo.