Avisados que na estrada principal havia barreiras policiais,
que uma ponte havia sido derrubada, que não se chegava mais em Bento Rodrigues,
fomos por uma estradinha de terra, secundária. Muito antes de chegar já se via
o tamanho da onda venenosa, na marca quase horizontal no alto dos montes. Dali
pra baixo era só lama, as árvores foram arrancadas, ficaram as do alto, as
primeiras manchadas do vermelho-lama em seus troncos, marcando o nível da maré.
Seguimos vários quilômetros pelos vales secundários, a onda havia subido,
atingido inúmeras nascentes rios acima, o sentimento da gravidade nos
silenciava.
Devastação. Explosão atômica. Imagens de Marte. Destruição.
Morte no ar. Difícil descrever a combinação de sentimentos. Dona Edir voltava
quando a gente ia. Veio com a família ver o povoado devastado, mas só de ver o
vale destruído, desistiu. A família seguiu pela estradinha, ela voltou
chorando. Um helicóptero dos bombeiros patrulhava o ar, passou por cima de nós
com uma luz forte embaixo, fez uma volta grande e pousou do outro lado, na
parte alta do povoado, onde havia algumas construções não atingidas. As cores
da lama química ocupavam a paisagem dos vales todos, a perder de vista, sumindo
na direção do vale do rio Doce. Avistamos Bento Rodrigues do outro lado do vale
enlameado, ruínas cobertas de marrom. Lá embaixo corria um fluxo líquido
avermelhado. Parecia impossível chegar na área das casas. Algumas pessoas na
estrada de terra olhavam em silêncio pasmo, triste, doloroso. Passamos a cerca,
descemos o vale.
O chão afundava em muitos pontos, era preciso cuidado ao
pisar. Descemos até a beira da corrente vermelha, a sensação de veneno no ar.
Rafael armou o tripé e começou a tomar imagens. Luísa, Kenny e eu ficamos
circulando por ali, olhando, subindo, descendo, procurando sem saber o quê. Eu
tirava fotos com minha maquininha. Ambiente pesado, clima opressivo. Uma
catástrofe, uma calamidade pública não declarada oficialmente. Sinal do poder
das mineradoras sobre o poder público. “Oficialmente”... palavra cada vez mais
desmoralizada, sinônimo de mentira. Declarações públicas, mentiras deslavadas.
De repente vi do outro lado do vale, vindo da direção das ruínas,
uma figura minúscula pela distância. Era um sujeito com uma foice nas costas,
pernas vermelhas daquela “lama”, descendo em direção à correnteza líquida. “Ele
vai atravessar”, pensei, e comecei a andar na mesma direção, pra ver onde. Ele
continuou descendo até sumir numa parte profunda atrás de uma curva e não pude
ver o local exato, mas ele subiu na minha direção e pudemos conversar. Era
Danilo, nascera e crescera ali, tinha 40 anos, agora estava morando em Santa
Rita. Mas tinha parentes na área e acabara de resgatar alguns documentos sujos.
Nosso grupo se reuniu em torno dele. O irmão dele apareceu, Altiéris. Ele não
foi perturbado pela segurança da mineradora? “Eu conheço cada caminho, cada
trilha disso aqui, eles não têm como me impedir, pode fechar tudo que eu entro”.
Ele tinha passado por um tronco ali embaixo, descemos
também, ele resolveu voltar e seu irmão foi conosco. Atravessamos, subimos a
encosta e alcançamos o que restou da estrada que chegava a Bento Rodrigues. Era
uma única curva, demos de cara com a paisagem da devastação do povoado
desolado, coberto de lama. Impacto. Alguns cachorros latiram, estavam
defendendo suas “casas”, sem entender a ausência das famílias, esperando uma
volta impossível. As famílias certamente davam seus animais por mortos.
Sentimento denso andar entre os escombros do povoado, com
todas as marcas de vida, de cotidiano e até da fuga apressada. Havia panelas
nos fogões, cimentadas pelo material seco, pastas de dentes e xampus colados no
teto, carros sobre e dentro de casas, geladeiras fedendo a comida podre,
viradas, nos altos das casas, uma revirada geral em tudo.
Ao passar por uma moita, ouvi barulho. Galinhas. Ironia de
vida e morte, encontramos uma galinha chocando seus ovos dentro de um cesto.
Perto, um saco de milho, abri peguei uns punhados, joguei perto da galinha, ele
não se mexia, estava choca. Ficou tensa com nossa presença, saímos logo de
perto. Danilo, desolado, deu um depoimento emocionado, falou da vida na
comunidade, “ali tinha uma pracinha, as crianças brincavam ali todo dia”, “ali
ficava a casa da minha irmã, não ficou uma telha, nada, não dá pra saber que
tinha uma casa ali... melhor ela nem vir aqui pra ver isso...”
Alguns lugares tinham um cheiro insuportável de putrefação,
de repente percebi ao longe uma caminhonete parada na encosta da montanha, nos
observando. Avisei os outros. Os irmãos já tinham ido embora, nós estávamos um
bom tempo colhendo o que queríamos, demos por encerrado e tomamos o caminho de
volta. Rafael e Kenny iam na frente, ouvimos o barulho
do motor. “Os seguranças tão vindo aí”. Atrasei o passo, o material que tava
com o Rafa era importante pra nós. Os caras chegaram por trás, caminhonete da
Samarco, “que que cê tá arrumando aí?” Parei, “nada, tava só olhando...” Rafa
percebeu o jogo, apressou o passo, disse a Kenny “nem olha pra trás, vambora”.
Eles já tavam na área devastada, desceram numa fenda e sumiram de vista. Os
caras tiveram que se contentar comigo. Um deles exibia um trinta e oito de
tambor na mão... nooooffa, que imprefionante... veio falando a papagaiada
genérica, área proibida, tava tendo saque, que que tem nessa mochila, mostrei,
ele viu que não tinha nada alheio, falou em perigo de vida, eu podia morrer e
dar trabalho pra eles, eu tava muito velho pra me arriscar daquele jeito... eu
não respondi mais nada, só tá certo, tá certo, ele gastou tudo o que tinha pra
dizer e se calou. Rafa e Kenny apareceram lá longe, do outro lado do vale, a
câmera e o tripé a salvo. Os caras viraram de costas pra mim, olhando
impotentes. Segui andando, não olhei mais, eles não tentaram me impedir. Já
tinham feito sua figura, pareceram um pouco desconcertados com a minha calma e
não tinham mais nada pra fazer.
Segui meu caminho, desci o vale, atravessei os troncos sobre
a química empesteada, reencontrei Kennyo e Rafael. Luísa tinha voltado pra Kombi,
não havia atravessado, baqueada em seus sentimentos com a paisagem desolada, bastava ver de longe, sentir o
ar pesado de química e sofrimento, o astral de apocalipse. "Senti em mim a dor das pessoas", ela disse depois.
|
Deixamos a kombi longe e seguimos a pé. A curva da estrada foi coberta com os detritos em lama. |
|
Chegando em Bento Rodrigues. As estradas estavam bloqueadas. |
|
Nascendo tóxico. Uma camada dura por cima, parecia mica. |
|
Descendo pro vale do rio Doce... aqui paramos a kombi e seguimos a pé. |
|
O contraste entre vida e morte. Lá no fundo, o nível alcançado pela maré dos rejeitos da mineração. |
|
Visto do outro lado do vale, era uma cidade fantasma, vítima de uma explosão atômica. |
|
A cor da lama, a lama na galocha, a galocha tava furada... |
|
Não dá pra sentir o cheiro, o clima, o peso do ar. |
|
A nossa ponte. Danilo e Kenny, antes de atravessar. |
|
Segue o caminho pro vale do rio Doce... |
|
A aridez da alma dos que dispõem dos poderes sobre a sociedade... deve ser pior que isso. |
|
A força da lama levantou muita coisa, como se fosse isopor, cortiça. |
|
O surreal se torna real quando se vê de perto. |
|
Heróica resistência inútil. O lugar será inabitável. |
|
Hoje não é preciso lavar as panelas. |
|
A delicadeza em meio à brutalidade. |
|
Simbolismo puro. |
|
A força da corrente levantou os fogões, os fogões levantaram o telhado. |
|
A galinha chocava. Dá pra ver um ovo embaixo dela. |
|
Os cães defendem suas casas, esperando uma volta que não virá... |
|
O sentimento é de apocalipse. |